domingo, 30 de abril de 2017

Caminho 330

Foto Hernâni Von Doellinger

José de Alencar 5

D. Antônio de Mariz, adiantando-se até à beira da esplanada para o lado do ocaso, tirou o chapéu e ajoelhou.
Ao redor dele vieram grupar-se sua mulher, as duas moças, Álvaro e D. Diogo; os aventureiros, formando um grande arco de círculo, ajoelharam-se a alguns passos de distância.
O sol com o seu último reflexo esclarecia a barba e os cabelos brancos do velho fidalgo, e realçava a beleza daquele busto de antigo cavalheiro.
Era uma cena ao mesmo tempo simples e majestosa a que apresentava essa prece meio cristã, meio selvagem; em todos aqueles rostos, iluminados pelos raios do ocaso, respirava um santo respeito.
Loredano foi o único que conservou o seu sorriso desdenhoso, e seguia com o mesmo olhar torvo os menores movimentos de Álvaro, ajoelhado perto de Cecília e embebido em contemplá-la, como se ela fosse a divindade a quem dirigia a sua prece.
Durante o momento em que o rei da luz, suspenso no horizonte, lançava ainda um olhar sobre a terra, todos se concentravam em um fundo recolhimento, e diziam uma oração muda, que apenas agitava imperceptivelmente os lábios.
Por fim o sol escondeu-se; Aires Gomes estendeu o mosquete sobre o precipício, e um tiro saudou o ocaso.
Era noite.

"O Guarani", José de Alenca

(José de Alencar nasceu no dia 1 de Maio de 1829. Morreu em 1877.)

Um casa portuguesa, com certeza

Foto Hernâni Von Doellinger

Afonso Arinos

O sol estava querendo sumir, quando eu encostei a porteira. Pulei da sela e amarrei, no moirão, o ruço pedrês - bicho malcriado, reparador, mas de espírito. No lombo desse pagão eu comia doze léguas, de uma assentada. Olhei a frente da casa, pus a mira no alpendre e não vi ninguém. - Uai, Joaquim, aí tem coisa! - Entrei bem sutil, reparando duma banda e outra.
"- Patrão velho, na hora em que eu estava arreando o pedrês, tinha chegado perto de mim, dizendo: - Olha lá, Mironga, não me vás sair um perrengue!
- Perrengando, perrengando, meu branco, eu entrei lá dentro. Vossemecê há de ver, com o favor de Deus."
- Olha o café, Joaquim, sem te cortar a conversa - disse um caboclo meão, de chapéu de couro e sisigola. E estendeu o coité fumarento, onde parecia ainda borbulhar o líquido.
Na varanda da frente, a gente do retiro estava reunida para ouvir o Joaquim. Era tempo de vaquejada e todo o dia havia um caso novo, uma chifrada de marruá, uma passagem bem feita com algum garrote bravo. A varanda era comprida, defendendo-a do mau tempo a grande cimalha, apoiada em colunas de madeira lavrada. Presas a estas, duas ou três redes, tecidas de seda de buriti, embalavam o sono da camaradagem, que ruminava o jantar depois de um dia fadigoso, em que o gado na verdade dera que fazer.
Demais, esse gado de beira do rio Preto não era caçoada. E nesse dia, no cerrado do Periquito, os vaqueiros toparam uma rês alevantada, que fez o diabo.

"Pelo Sertão", Afonso Arinos

(Afonso Arinos nasceu no dia 1 de Maio de 1868. Morreu em 1916.)

Se bem me lembro 20

Foto Hernani Von Doellinger

Mário Beirão

Aleluia

Se cantas, nasce o dia;
A luz segreda à flor: Ave, Maria! 

Tudo é silêncio, espanto,
Quando vaga no azul o teu encanto...

Passas e deixas no ar
O perfume das rosas de toucar!

Creio em ti, como em Deus;
Viver à tua luz é estar nos Céus!

Verdes enleios de hera
Cingem de amor teu vulto, ó Primavera!

Nos perdidos caminhos,
Voam gorjeios, músicas dos ninhos...

A Terra em névoas de ouro
Ascende a Deus em teu olhar de choro!

Senhora da Harmonia,
Em ti a minha vida principia!

Se voas pela altura,
Gravas no azul a tua formosura! 

Teu voo é um longo adeus:
O caminho das almas para os Céus...

Longe, saudosa, adejas,
E pairas sobre mim... bendita sejas!

Mário Beirão

(Mário Beirão nasceu no dia 1 de Maio de 1890. Morreu em 1965.)

Vida de cão 216

Foto Hernâni Von Doellinger

Otto Lara Resende

Gato gato gato

Familiar aos cacos de vidro inofensivos, o gato caminhava molengamente por cima do muro. O menino ia erguer-se, apanhar um graveto, respirar o hálito fresco do porão. Sua úmida penumbra. Mas a presença do gato. O gato, que parou indeciso, o rabo na pachorra de uma quase interrogação. Luminoso sol a pino e o imenso céu azul, calado, sobre o quintal. O menino pactuando com a mudez de tudo em torno - árvores, bichos, coisas. Captando o inarticulado segredo das coisas. Inventando um ser sozinho, na tontura de imaginações espontâneas como um gás que se desprende.
Gato - leu no silêncio da própria boca. Na palavra não cabe o gato, toda a verdade de um gato. Aquele ali, ocioso, lento, emoliente - em cima do muro. As coisas aceitam a incompreensão de um nome que não está cheio delas. Mas bicho, carece nomear direito: como rinoceronte, ou girafa se tivesse mais uma sílaba para caber o pescoço comprido. Girafa, girafa. Gatimonha, gatimanho. Falta um nome completo, felinoso e peludo, ronronante de astúcias adormecidas. O pisa-macio, as duas bandas de um gato. Pezinhos de um lado, pezinhos de outro, leve, bem de leve para não machucar o silêncio de feltro nas mãos enluvadas.
[...]

"O Elo Partido e Outras Histórias", Otto Lara Resende

(Otto Lara Resende nasceu no dia 1 de Maio de 1922. Morreu em 1992.)

Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora 3

Foto Hernâni Von Doellinger

Nísia Nóbrega

Onde foi rio

Onde foi rio, era chão,
duro, lavado, sem brio.
Nenhuma flora para espera,
rachando ao sol,
chão de estio.
Onde foi rio, corri,
lágrima e sal de esperança.
Espera e anseio perdi
de me rever em criança.
E já não cri, já não cri.
Por onde os grilos da infância?
Quem de buscar não se cansa?

Nísia Nóbrega

(Nísia Nóbrega nasceu no dia 1 de Maio de 1928. Morreu em 2000.)

Gostava mais quando havia burros em Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger

Vou direito ao assunto: a corrida de jericos faz falta. Olho para os destaques das Feiras Francas de Fafe, que arrebentam já daqui a quinze dias, e o que se segue? Vinhos e petiscos, fados, rusgas de concertinas, ranchos folclóricos, concurso pecuário e chega de bois. Também Emanuel e corridas de cavalos a passo travado. Passo travado. Só faltava dizerem-me que as cavalgaduras vão de salto alto e concorrem ao Vestido de Chita, no Jardim do Calvário. Mas burros é que nada, e logo nos tempos que correm e em Fafe, tempos e sítio de fartura, não consigo perceber...
Até parece: deixei a terra e agora não há burros em Fafe, é? Seria eu o último?

Lembro-me muito bem como era. Havia a corrida de cavalos, sim senhor, coisa amadora, com montadores e montadas da terra e arredores, que mediam forças por entre um mar de gente cheia de entusiasmo, chapéus e vinho, na mais nobre rua da vila, o empedrado - ou pavê, como dizem agora os especialistas - onde costuma terminar a etapa da Volta a Portugal em Bicicleta. Partiam em frente ao Café Império e iam dar a volta na Cafelândia, ainda não havia rotunda nem banco, com as ferraduras novas a chisparem por todos os lados e alguns animais, de travões bloqueados, a espargatarem contra vontade para um 10 de nota artística nos Jogos Olímpicos e os donos irremediavelmente de focinho no chão. Ao Império regressavam apenas três ou quatro conjuntos completos e o pódio era discutido já depois de cortada a meta, à força de varapau, ameaças de tiros e polícia, com a multidão a tomar diferentes partidos, de cabeça e chapéus perdidos, mortinha por também molhar a sopa. Isto eram as pessoas, os cavalos não se metiam. Mesmo os cavalos que tinham terminado a prova sozinhos, apesar de um tudo-nada desorientados, mantinham o fair play, viravam as costas à confusão e iam procurar os donos mercurocromados para pedirem desculpa pelo mau jeito. Quanto ao júri, ponderava criteriosa e responsavelmente todos os argumentos em discussão, sobretudo os argumentos que metiam pistola, e depois entregava a taça às primeiras mãos que a agarrassem.
O melhor vinha a seguir. Era a corrida de burros, que não era bem uma corrida, porque os burros recusavam-se terminantemente a correr. Davam uns passos, nem sempre no sentido correcto, e se calhar às vezes não havia vencedor. Mas o povo ria-se. É preciso que se note, porém, que os burros portavam-se assim não por serem burros mas por serem ignorantes. Na verdade, naquele tempo eles ainda não sabiam do estudo da Universidade de Londres que aqui atrasado descobriu que os burros não são animais estúpidos nem teimosos. Serão surdos ou não compreendem inglês, quando muito, mas agora já sou eu a extrapolar.
O Reigrilo tinha uma burra que se chamava a burra do Reigrilo. O Reigrilo era tão teimoso como a burra, portuguesa e analfabeta, mas bebia muito mais. Eu nunca na vida vi o Reigrilo sóbrio. A sorte dele, quando saía do tasco do Paredes em adiantado estado de fermentação, era exactamente a burra, que o levava a casa, submissa e em piloto automático, debaixo de um chorrilho de insultos e chibatadas absolutamente imerecidas. Eu tinha medo do vinho do Reigrilo e a burra parecia que também.
Creio não cometer nenhum erro histórico se afirmar que a burra do Reigrilo só fazia frente ao dono pelos "16 de Maio", na corrida que nunca era. O Reigrilo, altamente decilitrado, aparecia sempre, para incómodo da organização e gáudio da populaça. Podiam dar a partida quantas vezes quisessem: a burra do Reigrilo não saía do sítio, apesar das bordoadas impiedosas que apanhava, e se se mexia era apenas para deitar o dono de cangalhas, uma e outra vez, numa vingança anual e certamente bem amadurecida, ali mesmo à frente de todos, onde a humilhação do homem podia ser maior.

Pois agora nada. E tenho a certeza de que a malta nova havia de se divertir à brava com a corrida de asnos. Mas ao que eu vinha: não sei o que se passa com Fafe, que lhe deu para inventar tradições, como se as não tivesse, verdadeiras, antigas, genuínas e únicas. Fafe perdeu o sentido. Fafe da segunda década do século XXI tem uma linha de montagem de "novas" tradições, trabalha a todo o vapor, borbulha de "cosmopolitismo", e se calhar está a fazer bem, embora o povo não saiba ou não faça caso. Eu vejo as "iniciativas", eu vejo as fotografias oficiais e assassinas, e na plateia - apenas duas ou três filas mal vestidas - estão lá só e sempre os quinze do costume. Então onde está Fafe?
Por outro lado, dá-me pena que a minha terra (ou quem manda na minha terra) tenha vergonha da Justiça de Fafe. Dá-me pena que Fafe tenha vergonha dos seus burros. Como se alguém que de momento pode e manda quisesse varrer para debaixo do tapete de pelúcia a memória (e a história) mais terra-a-terra de Fafe, "para não parecer mal" aos senhores de fora e para parecer bem na televisão. Enfim, uma jericada...

P.S. - As eleições autárquicas em Fafe não me interessam. Fossem outras as pessoas candidatas, e talvez sim. Mas interessam-me os burros meus conterrâneos e a Justiça de Fafe. Muito! Por isso me repito, mas também é da idade. E, enquanto puder e a merda for a mesma, todos os anos por esta altura cá estarei a repetir-me outra vez. Quanto às moscas, é lá entre elas...

sábado, 29 de abril de 2017

Só destes, tenho sete 5

Foto Hernâni Von Doellinger

Como é que se escreve a palavra apartir?

A responsável pela empresa de condomínio, licenciada e Doutora de nome próprio, precisava de escrever um aviso para colocar nas entradas do prédio e nos elevadores. Perfeita dominadora da língua portuguesa, tinha apenas uma pequenina dúvida: como é que se escreve a palavra apartir? Perguntou ao seu pessoal, que era ela, e não duvidou segunda vez. Determinou então e mandou publicar: "A Adminsitração de Condomínio informa os Srs Condominos que no próximo, dia 2 de Maio de 2017, da parte da manha, vai-se proceder a uma lavagem na garagem coletiva. Solicitamos aos Srs Condominos que retirem as suas viaturas e os bens que se danificam com a agua, dos lugares de garagem, apartir das 8:30 horas, para a sua realização."
Exactamente, apartir. A palavra apartir escreve-se da mesma forma que as palavras asseguir e afeder. Tal como porcausa. A palavra porcausa escreve-se da mesma forma que as palavras porexemplo e poracaso. Todas estas palavras obedecem ao mesmo princípio - o da ignorância.

Está lá? 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Alda do Espírito Santo

Angolares

Canoa frágil, à beira da praia,
panos preso na cintura,
uma vela a flutuar…
Caleima, mar em fora
canoa flutuando por sobre as procelas das águas,
lá vai o barquinho da fome.
Rostos duros de angolares
na luta com o gandu
por sobre a procela das ondas
remando, remando
no mar dos tubarões
pela fome de cada dia.

Lá longe, na praia,
na orla dos coqueiros
quissandas em fila,
abrigando cubatas,
izaquente cozido
em panela de barro.

Hoje, amanhã e todos os dias
espreita a canoa andante por sobre a procela das águas.
A canoa é vida
a praia é extensa,
areal, areal sem fim.
Nas canoas amarradas
aos coqueiros da praia.
O mar é vida.
Para além as terras do cacau
nada dizem ao angolar,
"Terras tem seu dono".

E o angolar na faina do mar,
tem a orla da praia
as cubatas de quissandas
as gibas pestilentas
mas não tem terras.

Para ele, a luta das ondas,
a luta com o gandu,
as canoas balouçando no mar
e a orla imensa da praia.


"É nosso o Solo Sagrado da Terra", Alda do Espírito Santo 

(Alda do Espírito Santo nasceu no dia 30 de Abril de 1926. Morreu em 2010.)

Tocam os sinos da torre da... câmara municipal

Foto Hernâni Von Doellinger

Oliveira Martins

Em 1411, Castela, cinco anos depois da morte de Henrique III, assinara o tratado de paz connosco pela mão da rainha viúva, que sempre fora contra a guerra. A dinastia filha da revolução de 1383 ficava reconhecida. O período de crise aguda pode, porém, dizer-se que acabara logo em 1387, quando, aos trinta anos, D. João I desposou D. Filipa de Lencastre, que tinha vinte e nove.

"Os Filhos de D. João I", Oliveira Martins

(Oliveira Martins nasceu no dia 30 de Abril de 1845. Morreu em 1894.)

Nuno Brederode dos Santos (1944-2017)

O ogre e a sandes

Estacionei o carro no parque do hotel. Era cedo, havia mais de meia hora para matar. Passei ao "lobby", vi o bar e entrei. Sentei-me ao balcão, no único lugar disponível. Mas não pedi nada, aguardando que se resolvesse um qualquer contencioso entre um empregado contido, paciente e amável, e um feiíssimo cavalheiro que parecia um ogre da Tasmânia e que barafustava em voz alta contra não sei quê, num inglês que, porque rápido, chegava a parecer fluente, mas afectado de um sotaque tão carregado e estranho que o tornava ininteligível.
Aos poucos, fui começando a entendê-lo. Protestava - e com moderada razão - contra o facto de só haver sandes de queijo, fiambre e mistas. E começava já a olhar para mim de vez em quando, fugazmente, procurando porventura o meu apoio naquela guerra que me era alheia.
"Nem sequer têm sandes de pepino!" - disse-me de supetão, aproveitando a pausa proporcionada pelo empregado me estar a servir um "scotch" com água, que eu entretanto conseguira encomendar. Estava estabelecido o diálogo, mesmo que eu não o desejasse. Não se deixa sem resposta quem se nos dirige directamente.
[...] 

Nuno Brederode dos Santos (na Revista do Expresso)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

O Porto, e a mania que há-de ser artista

Foto Hernâni Von Doellinger

João Penha 3

Tradução

Risonho, disse eu a Inês,
Que num sofá se quebranta:
"Dormi mecum!" - "É francês?"
- "É frase da Bíblia santa." 

- "Vê-me nervosa e confusa:
Eu nada sei, meu amigo:
Não hesite, vá! Traduza"
- Quer? - "Quero…" - Dorme comigo.

- "Oh! Que indecência, que horror!
Dizer-me essa cousa, a mim!
O que lhe vale, senhor,
É ter-ma dito em latim."

João Penha

(João Penha nasceu no dia 29 de Abril de 1838. Morreu em 1919.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 27

Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco Bandeira de Mello

O equilibrista

Tocávamos clarinete na corda bamba
subíamos às altas torres do Egito
passeávamos de pára-quedas
no sol sem fim dos dias de fogo
subíamos à capota do avião
por cima das nuvens
recitávamos poemas à lua
tocando nela.

Andávamos nos parapeitos dos edifícios
de um pé só na balaustrada dos abismos
não caíamos dos fios metálicos do circo
andando de cabeça para baixo
nem do alto da torre Eiffel correndo sonâmbulo.

Só na vida é que não nos equilibrávamos.


Francisco Bandeira de Mello

(Francisco Bandeira de Mello nasceu no dia 29 de Abril de 1936. Morreu em 2011.)

Vai pela sombra 18

Foto Hernâni Von Doellinger

Osório Duque-Estrada

Esquecimento

Se queres ainda ver como escondida
Guardo no peito a tua imagem pura,
- Imagem que no céu da minha vida
É como um sol ardente que fulgura;

Convida o coração na sepultura
A viver e pulsar por ti; convida
Minha alma para amar de novo; cura
A, que lhe abriste, cáustica ferida...

Só pedira a paixão com que me iludo
Que um raio apenas dessa luz me desses,
E uma palavra do teu lábio mudo;

Mas nem ouves, sequer, as minhas preces;
E enquanto, para amar-te, esqueço tudo,
Tu, por um nada, o meu amor esqueces.


"Flora de Maio", Osório Duque-Estrada

(Osório Duque-Estrada nasceu no dia 29 de Abril de 1870. Morreu em 1927.)

Caminho 329

Foto Hernâni Von Doellinger

Jaime Cortesão 5

A mulher grávida

Eu sou a mulher pejada.
Minha boca apetecida,
Com outra boca colada,
Deu beijos para dar vida.

Em mim é santo o desejo,
É santo por ser fecundo:
Pus toda a alma num beijo,
E fui a origem do mundo.

Olhai: caminho por entre
Todo o povo sem receio,
Pois trago um filho no ventre
E uma fonte em cada seio.

Quem sentir vida tão alta
Não se furte, não a esconda;
Vêde-a... em meu ventre se exalta,
Sobe toda numa onda.

Um filho todas as vezes,
Que é de mãe enternecida,
Trá-lo o ventre nove meses
E o coração toda a vida.

Que imenso poder eu tenho
- Dar vida por ser o amor;
Não há poeta tamanho,
Nem génio mais criador!

E por meu ventre sagrado
Vou falar: escutai bem.
Fala o verbo revelado
No meu instinto de mãe.

Eu vejo para além da vista,
Ouço para além dos ouvidos:
Oh! Que terra nunca vista,
Que heróis jamais concebidos!

Ouço em mim vozes estranhas,
A minha alma deita luz…
Trago nas minhas entranhas
Outro menino Jesus.

Meu filho mostra-me a face,
Faz-te aurora nascida,
Embora a luz me queimasse, 
Ainda que eu perdesse a vida.

Sou o céu da madrugada,
A minha carne anda em brilho;
Sinto-me ébria de alvorada
Rompe o sol: nasce o meu filho!

"Glória Humilde", Jaime Cortesão

(Jaime Cortesão nasceu no dia 29 de Abril de 1884.  Morreu em 1960.)

É para a televisão?... 3

Foto Tarrenego!

Microcontos & outras miudezas 41

Bacon
Antes de ser toucinho fumado ou gordura subcutânea do porco, Bacon tinha um primeiro nome: Francis. Foi político, estadista, filósofo e ensaísta inglês durante os séculos XVI e XVII, sendo considerado um dos fundadores da ciência moderna, e mais tarde, já no século XX, dedicou-se à pintura figurativa...

Vidro temperado, mas com parcimónia...
O vidro temperado é aproximadamente quatro vezes mais duro do que o vidro normal, tem maior resistência térmica e estilhaça-se em pequenos fragmentos quando é partido. Por outro lado, é uma das principais causas da hipertensão arterial...

O problema do bispo é o jogo...
O bispo foi chamado ao Vaticano e admoestado fraternalmente por Sua Santidade em pessoa. Por causa do jogo. O xadrez.

O homenageado
Fizeram-lhe rasgados elogios. O homenageado não gostou. Apanhou humildemente os papelinhos, reorganizou-os com fita-cola e foi para casa...

25 de Abril sempre!
É como diz Quitério: vinte e cinco de Abril sempre, nem que seja só às vezes!...

1.º de Maio, Dia dos Sem-Trabalho
Segunda-feira é 1.º de Maio, Dia dos Sem-Trabalho em Portugal. Os nossos mais de milhão e meio de desempregados estão todos de parabéns - os de papel passado, os compulsivamente desarriscados, os clandestinos e os condenados. E há canja na sopa dos pobres...

Páscoa é quando a mulher quiser
Olhei para o céu, estava estrelado. Mandei para trás. Eu pedira escalfado...

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Só destes, tenho sete 4

Foto Hernâni Von Doellinger

Eduardo Moreiras

A unha muller de Pedorne, que tivo un fillo e afogouno

¿Ti eras boa, muller?
Eras boa.

Pero mataches. E pagas.
¿Qué pagas?

Eu tamén pago. Todos temos
unha deuda inmensa.
Si soupéramos 
non poderíamos
co peso da vida.

Qué vas facer agora
co ise recanto
isa feble candea
que afogaches con bruteza.

¿Non sabías...?
Non.
Ninguén sabe.
Serás aldraxada
escarnida pra sempre
e ninguén saberá.
Mataches. E pagas
o erro arrepiante
sin piedade
que todos levamos connosco
deica ao fin:
millor matar que dar a vida.

"O Libro dos Mortos", Eduardo Moreiras

(Eduardo Moreiras nasceu no dia 3 de Janeiro de 1914. Morreu em 1991.)

Lugares-(in)comuns 255

Foto Hernâni Von Doellinger

Alberto de Oliveira 4

A alma dos vinte anos

A alma dos meus vinte anos noutro dia
Senti volver-me ao peito, e pondo fora
A outra, a enferma, que lá dentro mora,
Ria em meus lábios, em meus olhos ria.

Achava-me ao teu lado então, Luzia,
E da idade que tens na mesma aurora;
A tudo o que já fui tornava agora,
Tudo o que ora não sou me renascia.

Ressenti da paixão primeira e ardente
A febre, ressurgiu-me o amor antigo
Com os seus desvairos e com os seus enganos...

Mas ah! quando te foste novamente
A alma de hoje tornou a ser comigo,
E foi contigo a alma dos meus vinte anos.

"Poesias, 4.ª série", Alberto de Oliveira

(Alberto de Oliveira nasceu no dia 28 de Abril de 1857. Morreu em 1937.) 

Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Elisiário Pinto

À lua

Vem, ó lua, contar-me as tuas dores,
Teus segredos d’amor: deixa um instante
Essa louca estrelinha rutilante
Que desdenha cruel os teus amores.

Vem aqui derramar os teus palores,
Vem dizer-me qual é a tua amante,
Se é aquela menor, menos brilhante,
Ou aquela que tem mais esplendores.

Pobre lua! tu gemes, tu deploras
A sorte sempre avessa - a ingratidão
De uma linda estrelinha a quem namoras.

Mas eu, pobre de mim! louca paixão
Me tortura a existência! ah! se tu choras,
Eu sou mais infeliz, não choro, não. 

Elisiário Pinto 

(Elisiário Pinto nasceu no dia 28 de Abril de 1839. Morreu em 1897.)

Feiras Francas de Fafe 2017

Foto Hernâni Von Doellinger

Feiras Francas de Fafe, de 13 a 17 de Maio, com tenda montada no Parque da Cidade. Feira Rural, vinhos e petiscos, noite das colectividades, rusgas de concertinas, fado, festival de ranchos folclóricos, exibições de hipismo, passeio todo-o-terreno, actividades de treino e obediência canina, concurso pecuário, Bou à Xega e chega de bois, corrida de cavalos a passo travado e Emanuel. Mais informação, aqui.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Vida de cão 215

Foto Hernâni Von Doellinger

Cassiano Nunes

Os gatos

Os gatos,
delicados,
quando nos veem
fogem.
Eles sabem
de quanto é capaz
o Homem.

Cassiano Nunes

(Cassiano Nunes nasceu no dia 27 de Abril de 1921. Morreu em 2007.)

O Porto aponta ao céu 16

Foto Hernâni Von Doellinger

Francisco Cortegoso

En días de inverno, o ar calmo,
con gratitude ofrece instantes de vida
sentada na soleira que da súa casa para o sur
se estende.
En igual grao presta
unha actitude a falar de como
as súas pernas curtas, grosas e apertadas
en medias de algodón e unhas botas pretas,
se resenten e calma cada noite coas mans
aínda que, a modo da pel que suxeita o lóbulo,
parezan desprovistas de tacto e a inmediata excitación capilar.
E o grao que amosa é desposesión.
Esquece a cor azul desde o fondo da súa ollada.
Só iso parece velar para si, a permanencia.
Continúa cun aceno do rosto
mentres os tres dedos que centran a man dereita
sinalan unha liña de sangue callado
no dorso doutro estremo.
Contra a palma debuxa xestos como un principio de escrita.
Nos finais días da estación.
Mañá vereina no mesmo lugar.
Falarame das mans, das pernas, das súas botas.
Tamén me falará do almorzo e da cea.
Falarame do seu día. Do sol que centra o seu lugar.
Sentada na cadeira co seu tempo
e o sol que vindo do ollo a ocupa
con todo o real que a estrema.

"Memorial e Danza", Francisco Cortegoso

(Francisco Cortegoso, também conhecido como Fran Cortegoso ou Frank Euner, nasceu em 1985. Morreu em 2016.)

Caminho 328

Foto Hernâni Von Doellinger

Paco Souto

autorretrato
 
escribo
en folla impar
as tres cuartas partes
xustas
de min mesmo
a man acenando o universo
a viaxe impar de virme paradentro


escribo tolo
un sexto apenas da ousadía
do que calo


inspiro
e dialógome


o meu mundo sempre será varios


"e Caín", Paco Souto

(Paco Souto nasceu no dia 12 de Outubro de 1962. Morreu no passado dia 30 de Março.)

Já não há bernardinos assim...

Foto Hernâni Von Doellinger

Já sabem, eu não posso ver zés-pereiras, que me perco. Os "trampolineiros" da minha infância alegram-me os dias da madureza, descompassam-me o bater do coração, tornam-me a Fafe e à pureza original, comovem-me. Queria que houvesse discos pedidos para poder encomendar todos os dias o "Resineiro" cantado de mansinho mas bem picada de tasco em tasco. Queria pedir desculpa por ignorantemente lhes ter chamado "trampolineiros", coisa feia. Eram, são, tamborileiros. Os tamborileiros da minha alegria triste. E portanto cá vai mais uma vez, versão refinada e aumentada:
O meu avô Bernardino Neques, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria, tinha o seu lado musical. Desunhava-se satisfatoriamente com a concertina e o acordeão, e já velhinho veio-lhe a mania do violão, lembro-me que com alguma falta de jeito, Deus me perdoe se estou a ser injusto. Esqueçamos, porém, o violão, o acordeão e a concertina, que foram só para meter conversa. Tornemos aos bombos, à caixaria.
O Neques do meu avô Bernardino não era de baptismo. O verdadeiro nome do meu avô de Basto era Amigo Pereira - assim lhe chamava toda a gente por essas feiras e romarias ali à beira, a começar pela Lagoa, onde ele varria o terreiro com o varapau de lódão girando por cima da cabeça como ventoinha de helicóptero, e suponho que não é preciso dizer mais nada para que se perceba de que marca era o homem. (Mas vou dizer: quando fazia de jogador do pau e estava satisfatoriamente avinhado, o meu avô tinha um grito de guerra que era "Olraitecamoniésse!". E tinha um cão de pele e osso ao qual dera o nome de Tuísta, que queria dizer Twist. O meu querido avô era anglófilo americanado e não sabia. De americano, o Bô só conhecia o vinho, e talvez o João massagista, mas desta parte não tenho a certeza.) A alcunha que ficou famosa, Neques, veio-lhe do tempo de moço, contava-se, quando rufava a bom rufar na caixa, honesto instrumento por onde começou na arte. E tocava naquele ritmo que ele gostava de explicar como neque-neque-neque, neque-neque, neque-pum. Neques, pois.
O meu avô era apaixonante. Obviamente Banda Revelhe, por causa do meu pai e por bom gosto natural. E o toque de caixa, para o Amigo Pereira, tinha ciência, solfejo. Gostava de perguntar-me, por exemplo, "Quantas pranas tem uma rana?", como se estivéssemos a elaborar sobre fusas e semifusas. Eu dizia que não sabia, que era o que o velho Neques queria ouvir, para logo a seguir me ensinar, matreiro e mais uma vez, "Conta-as, rapaz: rana-catrapana-catrapana-pana-pum; quantas são?..."
Já não há bernardinos assim. E faz-me diferença. Pum.

Em Fafe, obviamente!


Rally de Portugal, de 18 a 21 de Maio. Para (vi)ver na catedral, na meca, na praça de são pedro dos ralis: em Fafe, obviamente. No último dia, o dia de todas as decisões. Mais informação, aqui.

Feridas de guerra 9

Foto do arquivo pessoal do ex-pára-quedista fafense ÁLVARO MAGALHÃES

Manuel Teixeira, 42 anos, suicidou-se. João Silva, 41 anos, aguarda julgamento por homicídio. José Rodrigues, 45 anos, faz terapia de grupo. António Pereira, 51 anos, vive obcecado pelas "injustiças" e já pensou matar ou matar-se - convive desde 1963 com psiquiatras e tranquilizantes. Manuel, João, José e António têm em comum a Guerra Colonial e o medo dos seus medos. São casos à mostra dos cerca de 140 mil ex-combatentes portugueses atingidos pelo stress de guerra, essa doença camuflada numa espécie de clandestinidade.

"Doutora, vou-me matar!"
A verdade é que só agora a ciência arranca buscando explicações inteligentes para o sofrimento destes homens, e a estatística oficial, para além de referenciar os 25 mil feridos e os 10 mil mortos directos da Guerra Colonial, pouco mais adianta.
Quem está por dentro do assunto garante a existência de vários casos de suicídio (dois no último ano, só na área do Porto) e muitos de homicídio com raiz no stress de guerra. E falam-me de desesperança de vida, que faz com que "muitos se vão embora aos 40 anos", e de alcoolismo, e de cirroses, e de droga, e dos divórcios, e de sem-abrigo, e do homem que em apenas um ano correu mais de cem empregos, e da falta de coragem da Nação para encarar e assumir as suas obrigações. O que tem sobrado é o silêncio.
Porque, para começar, como denuncia Paula Frazão, a psicólogo clínica, o Exército tem de admitir que, excepção feita às chamadas forças especiais, "a maior parte da tropa ia para a guerra, técnica e psicologimente, mal preparada, e muitos acidentes aconteceram por causa dessa má preparação".
Está clinicamente provado: o DPTS pode ser prevenido - e foi-o recentemente na Guerra do Golfo - se o soldados forem esclarecidos de que o medo e a ansiedade fazem parte da guerra, são situações normais, humanas, e não sinais de cobardia ou de doença mental. Além disso, o desenvolvimento de  um DPTS crónico até pode ser evitado se o soldado, em plena fase aguda, for atendido próximo à frente de batalha, iniciando imediatamente os tratamentos e sendo mentalizado para a expectativa de retorno aos deveres normais e para a brevidade do contacto terapêutico.
Menos do que pensões, os traumatizados pela guerra reclamam atenção, atendimento, compreensão, apoio, tratamento. Há quem tema que, com o andar dos anos - porque a doença, não sendo tratada, tende a agravar-se -, os demónios de África venham a degradar inexoravelmente os restos de vida dos ex-combatentes envelhecidos. A Nação terá de estar preparada para o desmoronamento de toda uma geração...
Aos centros da ADFA chegam todos os dias, e cada vez mais, pedidos de socorro, lágrimas por uma "última tábua de salvação" para um filho, para um pai, para um marido, para um irmão, para um amigo. Gente à beira do abismo. O bom-dia que Paula Frazão ouve muitas vezes quando os seus doentes lhe entram no consultório é: "Doutora, vou-me matar!..."

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Vejo no DN que finalmente o País parece querer fazer alguma coisa...
Os nomes dos ex-combatentes são, aqui no Tarrenego!, fictícios.

terça-feira, 25 de abril de 2017

O manequim do primeiro-direito

Foto Hernâni Von Doellinger

Godofredo Filho

Soneto do vinho do Porto

Fruto em verde ou de ígneo e azul, tocado
da música da alva. Ó tessitura
de esférico sabor, lúdico aroma
de pomo etéreo. Os beijos que não são.

Desliza em rota insone. E eu te procuro,
ó domador do tédio. E, travo e mel,
de seu conúbio vegetal ressumbram
no liquefeito olhar das feras bravas.

Que do xisto azumbrado a fulva luz
tornada em sumo e veludoso gosto
por sobre a calcedônia do desejo.

Vinho que sabe a amor sem fim, ocíduo
clarão que incide às tardes sobre o Douro,
ou de Andrômeda o riso e o de Canopo.

"Sete Sonetos do Vinho", Godofredo Filho

(Godofredo Filho nasceu no dia 26 de Abril de 1904. Morreu em 1992.)

O Porto aponta ao céu 15

Foto Hernâni Von Doellinger

Caetano da Costa Alegre

Visão 

Vi-te passar, longe de mim, distante,
como uma estátua de ébano ambulante.
Ias de luto, doce, tutinegra,
e o teu aspecto pesaroso e triste
prendeu minha alma, sedutora negra.
Depois, cativa de invisível laço,
(o teu encanto, a que ninguém resiste)
foi-te seguindo o pequenino passo
até que o vulto gracioso e lindo
desapareceu, longe de mim, distante,
como uma estátua de ébano ambulante.


Caetano da Costa Alegre 

(Caetano da Costa Alegre nasceu no dia 26 de Abril de 1864. Morreu em 1890.)

Feridas de guerra 8

Foto do arquivo pessoal do ex-pára-quedista fafense ÁLVARO MAGALHÃES

Manuel Teixeira, 42 anos, suicidou-se. João Silva, 41 anos, aguarda julgamento por homicídio. José Rodrigues, 45 anos, faz terapia de grupo. António Pereira, 51 anos, vive obcecado pelas "injustiças" e já pensou matar ou matar-se - convive desde 1963 com psiquiatras e tranquilizantes. Manuel, João, José e António têm em comum a Guerra Colonial e o medo dos seus medos. São casos à mostra dos cerca de 140 mil ex-combatentes portugueses atingidos pelo stress de guerra, essa doença camuflada numa espécie de clandestinidade.

Seis tentativas de suicído: a sétima foi fatal. A ideia do suicídio passou a ser natural, e era com naturalidade que Manuel falava de matar-se. Tentou cinco vezes com sobredoses de comprimidos e uma com "remédio" de escaravelho, antes da definitiva. Seguiam-se, cíclicas, as desintoxicações no Hospital de São João e os internamentos no Conde Ferreira.
Tão grave era a situação que, caso singular, deu-lhe direito a pensão por incapacidade - o que, nos últimos quatro anos, viria a agravar a confusão no espírito de Manuel Teixeira. A cisma agora eram os sessenta e sete contos e setencentos escudos com que a Nação de desobrigava mensalmente pelo mal que lhe fizera. Manuel achava que a tença era "um roubo ao Estado". Aflito, temia pela chegada da GNR para o levar preso "por receber uma reforma que de certeza não era para ele"...
A 2 de Maio de 1990 terminou com tudo. Ingeriu o conteúdo de uma embalagem de "remédio" de escaravelho, lançou fora o recipiente e deitou-se calmente, como tantas vezes tinha avisado, à espera da morte. Que veio. No guarda-fatos o ex-combatente escondia mais quatro embalagens de veneno, pelo sim e pelo não...

Outras vezes a violência chama-se homicído. Poderá ser o caso de João Silva, ex-comando de 41 anos, que em Campanhã, Porto, na madrugada de 8 de Setembro de 1991, resolveu a tiro de pistola o seu diferendo com a vida, matando, num acerto de contas, um indivíduo de 42 anos.
João entregou-se à Polícia e confessou o crime. Está na cadeia de Custóias, aguardando julgamento. Diz quem o conhece que também ele deixou muito mais na guerra do que a perna que lá perdeu e que lhe garante o direito a pensão. E afirmam os estudiosos que os feridos na alma, convivas naturais de armas, sangue e morte, guardam causas para reacções extremas fora do entendimento comum.

(Continua)

P.S. - Escrevi em 1992 este exclusivo para a revista Grande Reportagem, então dirigida por Miguel Sousa Tavares. Foi, se não me engano, o primeiro trabalho jornalístico publicado em Portugal sobre o nosso stress de guerra. Vejo no DN que finalmente o País parece querer fazer alguma coisa...
Os nomes dos ex-combatentes são, aqui no Tarrenego!, fictícios.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

A ponte é uma passagem 13

Foto Hernâni Von Doellinger

João Cardoso de Meneses e Sousa

A uns olhos 

O que no azul fulgura
Cruzeiro sideral,
A luz, que pouco dura,
Da estrela matinal,

Os raios, com que esplende
O disco áureo do sol,
Se d'alva após, acende
Na esfera o seu farol.

O brilho, que irradia
Nas amplidões do céu,
Quer nele impere o dia,
Quer abra a noite o véu,

Quanto, a luzir, cintila,
Imerge na penumbra,
Se vibras da pupila
Clarão, que nos deslumbra.

Tu da mulher primeira
Herdaste a luz divina,
Que virginal, inteira,
Conservas na retina.

João Cardoso de Meneses e Sousa 

(João Cardoso de Meneses e Sousa nasceu no dia 25 de Abril de 1827. Morreu em 1915.)

Os homens do leme

Foto Hernâni Von Doellinger

Paulo Vanzolini


Quem me viu e quem me vê

Quem me viu e quem me vê
há de dizê certamente
que hoje me vê diferente.
Se essa vida é mesmo um circo,
paiaço dela sô eu.
Destino se riu de mim,
me deu muler que eu não quero,
muler que eu quero num deu.

Uma, coitada, me adora.
Se eu passo e num ligo, chora.
Sempre eu passo, nunca eu ligo.

A outra, veja você,
destino brinco comigo,
nem finge que não me vê,
si ri pra mim tudo dia,
não sorriso de bondade,
nem de amor nem de amizade,
de maldade e de ironia.

Quem me viu e quem me vê
hoje me vê deferente.
Onde eu to tem tempo quente,
tem tiro, tem punhalada,
tem sangue, tem entrevero.
Diz que eu não sô bom de gênio,
dissesse que é desespero.

Quem conhece um pouco a vida
Vê meu destino traçado:
vô acabá de madrugada
espichado numa carçada,
morrendo de morte matada.

E nesse dia de sangue
essa muler que eu não gosto,
me vendo morto se mata.
E essa que gosto, essa ingrata,
não há de chorar por mim,
só há de dizer assim,
com seu jeito de princesa:
- Era nego muito salafra,
morrendo até foi limpeza...
Paulo Vanzolini 

(Paulo Vanzolini nasceu no dia 25 de Abril de 1924. Morreu em 2013.)