Conjugação
A construção dos poemas é uma vela aberta ao meio e coberta de bolor
é a suspensão momentânea dum arrepio num dente fino
Como Uma Agulha
A construção dos poemas
A CONS
TRU
ÇÃO DOS
POEMAS
é como matar muitas pulgas com unhas de oiro azul
é como amar formigas brancas obsessivamente junto ao peito
olhar uma paisagem em frente e ver um abismo
ver o abismo e sentir uma pedrada nas costas
sentir a pedrada e imaginar-se sem pensar de repente
NUM TÚMULO EXAUSTIVO.
"Ossóptico e Outros Poemas", António Maria Lisboa
(António Maria Lisboa nasceu no dia 1 de Agosto de 1928. Morreu em 1953.)
sexta-feira, 31 de julho de 2015
António Maria Lisboa 3
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António Rebordão Navarro
As janelas abriam-se às manhãs coruscantes, às salobras manhãs em que um mar leitoso de névoa ia do chão ao céu, descia dele, entrava nas narinas, picava a pele com pontinhas invisíveis de sal. As pessoas saíam das casas vestidas de costumes úteis ou necessários. Às vezes, as gaivotas sulcavam os espaços habitados, pouco seguras dos seus voos, transtornadas. O ar, subtil ou de roldão, agitava cortinas, cortinados, dissipava os aromas confundidos, os inúteis vapores, as profundas, misteriosas, emanações dos corpos que a noite acumulara. De súbito, podia ouvir-se uma cantiga, um repicar de trálá-lás, a melopeia plangente de um fragmento de auto ou de comédia trazida dos longes da província, a cançoneta trauteada de um filme português, de um quadro de revista, misturada aos rumores de pregas alisadas, sacudir de panos, desfraldar de colchas, abanar de colchões, roupa a lavar nas pias. Podia, também, inopinadamente, escutar-se um borborigmo penetrado de silvos, de alguma telefonia demorando a aquecer, a transmitir vozes e ritmos sobrelevando, por instantes breves, os demais.
As ruas começavam a mexer-se nos perfis indecisos das manhãs, fazendo explodir em centelhas vibrantes os azulejos das fachadas, brilhar as suas tintas, incendiar a sua cal, ou enredando-as num véu pardo, inconsútil, abafando vozes, gritos, ruídos.
"A Praça de Liège", António Rebordão Navarro
(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu no passado mês de Abril.)
As ruas começavam a mexer-se nos perfis indecisos das manhãs, fazendo explodir em centelhas vibrantes os azulejos das fachadas, brilhar as suas tintas, incendiar a sua cal, ou enredando-as num véu pardo, inconsútil, abafando vozes, gritos, ruídos.
"A Praça de Liège", António Rebordão Navarro
(António Rebordão Navarro nasceu no dia 1 de Agosto de 1933. Morreu no passado mês de Abril.)
O off-side e outras coisas que dão que pensar
Foto Hernâni Von Doellinger |
O off-side, por exemplo: não seria mais limpo acabar com a lei do fora-de-jogo nos jogos de futebol? Quem quisesse ficar à mama, que ficasse, são onze contra onze e quem está num sítio há-de absolutamente faltar noutro. Haveria de certeza mais golos e a decisão dos resultados deixaria de passar pelas mãos dos árbitros-assistentes. Por outro lado: e os Rolling Stones? Se os gajos fossem carecas, como mandaria a mais elementar coerência e até o decoro em criaturas de tão provecta idade, ainda alguém os quereria ver?
Na próxima lição falaremos da problemática do paradigma.
quinta-feira, 30 de julho de 2015
quarta-feira, 29 de julho de 2015
O despertar do filósofo
- A vida é uma imensa linha recta cheia de curvas, e cada subida concomita-se numa irrefutável descida, vice-versando - disse o filósofo, ao pequeno-almoço.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.
- Chega-me o açúcar - disse a mulher do filósofo.
Mário Quintana 3
Soneto XVII
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
"A Rua dos Cataventos", Mário Quintana
(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)
Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!
"A Rua dos Cataventos", Mário Quintana
(Mário Quintana nasceu no dia 30 de Julho de 1906. Morreu em 1994.)
terça-feira, 28 de julho de 2015
"Mudar Portugal", por Orlando Castro
Orlando Castro apresenta Marinho e Pinto. Em livro, que terá a sua primeira sessão de lançamento no próximo dia 7 de Agosto, em Lisboa. Orlando Castro é jornalista e chefe de redacção do jornal angolano Folha 8. O livro - "António Marinho e Pinto, Mudar Portugal" - será o resultado de uma série de "longas conversas" entre o autor e o agora líder partidário. Mais informação, aqui.
segunda-feira, 27 de julho de 2015
Salvador Golpe
Meus amores
Dous amores a vida
Gardar me fan:
A Patria, y-o que adoro
No meu fogar,
A familia y-a terra
Onde nacín...
¡Sin esos dous amores
Non sei vivir!
Cando xa no meu peito
Non sinta amor;
Canda da miña terra
Non vexa o sol...
Ven, morte, ven axiña
Cabo de min,
¡Qué sin amor nin Patria
Non sei vivir!
"A Nosa Terra", Salvador Golpe
(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)
Dous amores a vida
Gardar me fan:
A Patria, y-o que adoro
No meu fogar,
A familia y-a terra
Onde nacín...
¡Sin esos dous amores
Non sei vivir!
Cando xa no meu peito
Non sinta amor;
Canda da miña terra
Non vexa o sol...
Ven, morte, ven axiña
Cabo de min,
¡Qué sin amor nin Patria
Non sei vivir!
"A Nosa Terra", Salvador Golpe
(Salvador Golpe nasceu no dia 27 de Julho de 1850. Morreu em 1909.)
domingo, 26 de julho de 2015
Francisco Bugalho
Caminhos
Para quê, caminhos do mundo,
Me atraís? - Se eu sei bem já
Que voltarei donde parto,
Por qualquer lado que vá.
Pra quê? - Se a Terra é redonda;
E, sempre, tem de cumprir-se
A sina daquela onda
Que parece vai sumir-se,
Mas que volta, bem mais débil,
Ao meio do lago, onde
A mãe, gota de água flébil,
Há muito tempo se esconde.
Pra quê? - Se a folha viçosa
Na Primavera, feliz,
Amanhã será, gostosa,
Alimento da raiz.
Pra quê, caminhos do mundo?
Pra quê, andanças sem Fim?
Se todo o sonho profundo
Deste Mundo e do Outro-Mundo,
Não está neles, mas em mim.
"Paisagem", Francisco Bugalho
(Francisco Bugalho nasceu no dia 26 de Julho de 1905. Morreu em 1949.)
Para quê, caminhos do mundo,
Me atraís? - Se eu sei bem já
Que voltarei donde parto,
Por qualquer lado que vá.
Pra quê? - Se a Terra é redonda;
E, sempre, tem de cumprir-se
A sina daquela onda
Que parece vai sumir-se,
Mas que volta, bem mais débil,
Ao meio do lago, onde
A mãe, gota de água flébil,
Há muito tempo se esconde.
Pra quê? - Se a folha viçosa
Na Primavera, feliz,
Amanhã será, gostosa,
Alimento da raiz.
Pra quê, caminhos do mundo?
Pra quê, andanças sem Fim?
Se todo o sonho profundo
Deste Mundo e do Outro-Mundo,
Não está neles, mas em mim.
"Paisagem", Francisco Bugalho
(Francisco Bugalho nasceu no dia 26 de Julho de 1905. Morreu em 1949.)
sexta-feira, 24 de julho de 2015
No meu tempo havia respeito
As crianças hoje em dia só aprendem porcarias. É a televisão, é o computador, é a internet, é o face, é o tablet, é o android, é o ipod tudo. Mas só aprendem porcarias, é uma pouca-vergonha. Não há educação, não há respeito, não há tabuada, não há catequese. No meu tempo era outra louça, vinho de outra pipa: jogávamos à macaca, ao moche e ao mamã-dá-licença, brincávamos ao esconde-esconde e aos médicos, levávamos umas reguadas, rezávamos padre-nossos, cantávamos os reis de porta em porta, os mais velhos ensinavam-nos coisas bonitas, apresentáveis, lengalengas e versinhos didácticos, alguns até com música, para ficarem no ouvido, e ficaram. Lembro-me, por exemplo:
- Preta, mulata, nariz de batata, rouba galinhas e mete prà saca.
- Ruço de mau pêlo, quer casar, não tem cabelo.
- Viva quem tem pêlos na barriga, e quem os abaixo tem que viva também.
- Enganei-te, enganei-te, com uma pinga de leite, à porta da missa, a comer uma chouriça.
- Três vezes nove, vinte e sete, quem morreu foi o valete, enterrado na retrete.
- Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, encontrei um burro morto a cagar e a mijar prò primeiro que falar.
- Pipa nova, pipa velha, foi ao mar, não afogou, com licença, meus senhores, aqui está quem se cagou.
- O Manel e a Maria foram ambos passear, o Manel deu um peido e mandou a Maria ao ar.
- Vinho na pipa, couves na horta, se não nos der nada, cagamos na porta.
- Cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto foi grosso, fica o cu o fumegar.
- Ó Mila, o teu pai tem pila; se não fosse a pila, não havia a Mila.
- Sanica o cu, sanica a gaita; sanica o cu e a serigaita.
- Afina a guitarra, a viola toca, afina a guitarra e também a piroca.
- Quem te fosse ao cu e não te pagasse.
- Sexta-feira, sexta-feira, tararam tararam, sexta-feira da paixão, tararam tararam, foram dar com os padres todos, tararam tararam, a ir ao cu ao sacristão. Tararam tararam. Eram sete matulões, tararam tararam, com bigodes no colhões. Tararam tararam. Pontapés e bofetadas, tararam tararam, nas parrecas das criadas. Tararam tararam.
- A puta da minha amiga não tinha que pôr na mesa, cortou as beiças da cona, fez cozido à portuguesa.
Ai que saudades, rapaziada! No meu tempo havia respeito, educação, aprendia-se...
- Preta, mulata, nariz de batata, rouba galinhas e mete prà saca.
- Ruço de mau pêlo, quer casar, não tem cabelo.
- Viva quem tem pêlos na barriga, e quem os abaixo tem que viva também.
- Enganei-te, enganei-te, com uma pinga de leite, à porta da missa, a comer uma chouriça.
- Três vezes nove, vinte e sete, quem morreu foi o valete, enterrado na retrete.
- Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu, encontrei um burro morto a cagar e a mijar prò primeiro que falar.
- Pipa nova, pipa velha, foi ao mar, não afogou, com licença, meus senhores, aqui está quem se cagou.
- O Manel e a Maria foram ambos passear, o Manel deu um peido e mandou a Maria ao ar.
- Vinho na pipa, couves na horta, se não nos der nada, cagamos na porta.
- Cagarim, cagarou-se, há dois modos de cagar, se o cagalhoto foi grosso, fica o cu o fumegar.
- Ó Mila, o teu pai tem pila; se não fosse a pila, não havia a Mila.
- Sanica o cu, sanica a gaita; sanica o cu e a serigaita.
- Afina a guitarra, a viola toca, afina a guitarra e também a piroca.
- Quem te fosse ao cu e não te pagasse.
- Sexta-feira, sexta-feira, tararam tararam, sexta-feira da paixão, tararam tararam, foram dar com os padres todos, tararam tararam, a ir ao cu ao sacristão. Tararam tararam. Eram sete matulões, tararam tararam, com bigodes no colhões. Tararam tararam. Pontapés e bofetadas, tararam tararam, nas parrecas das criadas. Tararam tararam.
- A puta da minha amiga não tinha que pôr na mesa, cortou as beiças da cona, fez cozido à portuguesa.
Ai que saudades, rapaziada! No meu tempo havia respeito, educação, aprendia-se...
Corsino Fortes (1933-2015)
Pecado original
Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.
Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.
Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.
E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...
"Claridade", Corsino Fortes
(Corsino Fortes nasceu no dia 14 de Fevereiro de 1933. Morreu hoje.)
Passo pelos dias
E deixo-os negros
Mais negros
Do que a noute brumosa.
Olho para as coisas
E torno-as velhas
Tão velhas
A cair de carunchos.
Só charcos imundos
Atestam no solo
As pegadas do meu pisar
E fica sempre rubro vermelho
Todo o rio por onde me lavo.
E não poder fugir
Não poder fugir nunca
A este destino
De dinamitar rochas
Dentro do peito...
"Claridade", Corsino Fortes
(Corsino Fortes nasceu no dia 14 de Fevereiro de 1933. Morreu hoje.)
quinta-feira, 23 de julho de 2015
Guilherme de Almeida
Soneto IX
Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, eu sei que esse canto te consola.
E, lá na rua, o povo tumultuário,
ouvindo o canto que daqui se evola,
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.
Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.
E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.
"Nós", Guilherme de Almeida
(Guilherme de Almeida nasceu no dia 24 de Julho de 1890. Morreu em 1969.)
Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, eu sei que esse canto te consola.
E, lá na rua, o povo tumultuário,
ouvindo o canto que daqui se evola,
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.
Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.
E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.
"Nós", Guilherme de Almeida
(Guilherme de Almeida nasceu no dia 24 de Julho de 1890. Morreu em 1969.)
O erro de Luís Filipe Vieira
Numa entrevista de trezentas e sessenta e duas páginas ao jornal Record, Luís Filipe Vieira afirma, a dado passo, que "Pinto da Costa não é a melhor pessoa para falar de arbitragens". Lapsus linguae do presidente do Benfica. Vieira está farto de saber que Pinto da Costa é, pelo contrário, a melhor pessoa para falar de arbitragens.
Feira Medieval de Leça do Balio 2015
Os Hospitalários no Caminho de Santiago - Feira Medieval de Matosinhos, à roda do Mosteiro de Leça do Balio, de 10 a 13 de Setembro de 2015. Mais informação, aqui e aqui.
P.S. - Ler mais, com programa, aqui.
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quarta-feira, 22 de julho de 2015
Cavaco marca inauguração do terminal de Leixões
Foto Hernâni Von Doellinger |
A inauguração do novo edifício do terminal de cruzeiros do Porto de Leixões esteve prevista para o ano de 2013. Foi-me depois prometida (a mim, pessoalmente e por escrito - porque eu perguntei, também por escrito) para meados do primeiro semestre de 2014. Entrou na agenda para o primeiro trimestre de 2015, saiu nos jornais como possível a partir do mês de Março, foi oficialmente anunciada para o dia 20 de Maio - fazia até parte do programa das Festas do Senhor de Matosinhos -, mas desmarcaram-na em cima da hora, por ordens superiores e "razões imprevistas". O novo edifício do terminal de cruzeiros do Porto de Leixões está pronto e a funcionar praticamente deste o princípio do ano.
Cavaco Silva marcou as eleições para o dia 4 de Outubro. O velho novo terminal de cruzeiros do Porto de Leixões vai ser finalmente inaugurado.
terça-feira, 21 de julho de 2015
Festival de folclore em Fafe
No próximo sábado, dia 25 de Julho, XXXI Festival Nacional e Internacional de Folclore de Fafe. Na Arcada, a partir das 21h30. Mais informação, aqui.
segunda-feira, 20 de julho de 2015
Carlos Reverbel
Chamava-se Escolástica. No povoado ninguém sabia seu sobrenome, nem de onde viera. Ali morava desde tempos remotos, bem antes da fundação da charqueada que dera lugar ao lugarejo. Mas sua família, embora ignorada, devia ter alguma instrução. De outro modo ela não se chamaria Escolástica, nem teria boas maneiras. Ainda guardava, na sua humildade e penúria, traços delicados, gestos suaves, doçura. "A Escolástica não procura ninguém, mas é muito educada", diziam as vizinhas, a uma voz.
Seu rancho, de torrão, coberto de capim santafé, constava de uma única peça, dividida por uma parede de pau-a-pique. Três caixões de querosene marca Jacaré, superpostos e recostados num canto, faziam as vezes de armário. Uma trempe, colocada sobre duas linhas de tijolos, era o fogão. E ainda havia um banquinho desses mochos. Já cambaio. Embora olhada com bons olhos no vilarejo, Escolástica não recebia nem fazia visitas.
Mantinha soltas no terreiro umas poucas galinhas, que viviam do que encontravam ciscando nos arredores. Recolhiam-se à boca da noite, encarapitando-se nos galhos de um cinamomo, que ali nascera de semente jogada ao deus-dará. O lugarejo tinha no mínimo um cachorro "per capita", mas Escolástica dispensava essa companhia, preferindo a dos passarinhos, sem tirar-lhes a liberdade. Tico-ticos e canários-da-terra vinham comer no seu terreiro. E sabiás e cardeais, moradores nas margens arborizadas do rio que passava perto, ofereciam-lhe seus cantos. A ela e a uma caturrita, chamada Mimosa.
Muito asseada no seu rancho limpinho, Escolástica às vezes embirrava com a Mimosa, por causa da natural sujeira dos poleiros das caturritas, sempre bosteados por mais que se limpe. Mimosa era como as demais, no seu poleiro de bosta. Embora lhe quisesse bem e gostasse de sua companhia, Escolástica tratava Mimosa como empregada, fazendo-a conhecer o seu lugar. E tanto reclamara da sujeira do poleiro, sempre mencionando a mesma palavra, que a caturrita aprendeu a pronunciá-la, incorporando-a ao seu vocabulário: bosta.
Carlos Reverbel
(Carlos Reverbel nasceu no dia 21 de Julho de 1912. Morreu em 1997.)
Seu rancho, de torrão, coberto de capim santafé, constava de uma única peça, dividida por uma parede de pau-a-pique. Três caixões de querosene marca Jacaré, superpostos e recostados num canto, faziam as vezes de armário. Uma trempe, colocada sobre duas linhas de tijolos, era o fogão. E ainda havia um banquinho desses mochos. Já cambaio. Embora olhada com bons olhos no vilarejo, Escolástica não recebia nem fazia visitas.
Mantinha soltas no terreiro umas poucas galinhas, que viviam do que encontravam ciscando nos arredores. Recolhiam-se à boca da noite, encarapitando-se nos galhos de um cinamomo, que ali nascera de semente jogada ao deus-dará. O lugarejo tinha no mínimo um cachorro "per capita", mas Escolástica dispensava essa companhia, preferindo a dos passarinhos, sem tirar-lhes a liberdade. Tico-ticos e canários-da-terra vinham comer no seu terreiro. E sabiás e cardeais, moradores nas margens arborizadas do rio que passava perto, ofereciam-lhe seus cantos. A ela e a uma caturrita, chamada Mimosa.
Muito asseada no seu rancho limpinho, Escolástica às vezes embirrava com a Mimosa, por causa da natural sujeira dos poleiros das caturritas, sempre bosteados por mais que se limpe. Mimosa era como as demais, no seu poleiro de bosta. Embora lhe quisesse bem e gostasse de sua companhia, Escolástica tratava Mimosa como empregada, fazendo-a conhecer o seu lugar. E tanto reclamara da sujeira do poleiro, sempre mencionando a mesma palavra, que a caturrita aprendeu a pronunciá-la, incorporando-a ao seu vocabulário: bosta.
Carlos Reverbel
(Carlos Reverbel nasceu no dia 21 de Julho de 1912. Morreu em 1997.)
domingo, 19 de julho de 2015
Heróis do mar, e da areia também
Foto Hernâni Von Doellinger |
Portugal é campeão do mundo de futebol de praia. We are the champions. Do mundo. Aqui em Matosinhos, terra abençoada, vamos assim dizer, por uma certa e determinada relação com o futebol e, vá lá, eventualmente também com a praia, ninguém apitou. E é preciso que se note: em Matosinhos apita-se por tudo e por nada, sobretudo se for por causa do Benfica e do Sporting, porque leixonismo acima de tudo.
Mas ninguém apitou. O título mundial foi recebido pelos portugueses em geral e pelos matosinhenses em particular com a indiferença diletante de quem ouve dizer que estamos em nonos ao nível do consumo de álcool no ranking da OCDE, porque realmente somos um bando de bêbados e não há novidade, ou que acabámos de ganhar o título de vice-campeões da emigração ao nível - repito, ao nível - dos países da União Europeia, sobretudo graças ao Governo que parimos, e honra lhe seja.
Futebol de praia também não é nome que se chame a um desporto a sério (à séria, se lido em Lisboa). Lembram-se do futebol de salão? O que é que nos vinha à cabeça quando se falava de futebol de salão? O salão. Uns cavalheiros vestidos de fraque e com um número nas costas e umas cavalheiras despidas nas costas e no resto, agarrados um ao outro e rodopiando pelo rinque árabe do Palácio da Bolsa como Fred Astaire e Ginger Rogers e uma bola pequenina no meio, um árbitro e o apito, um júri e tabuletas. Para evitar confusões, o futebol de salão passou a chamar-se futsal. É um sucesso.
Futebol de praia, e estou a olhar agora para os viciosos que espreitam o areal do Castelo do Queijo, vale desportivamente tanto como o bilhar de bolso. Mas o ser nada é
O McDonald's vai abrir aqui à porta de casa. Estou quilhado.
sexta-feira, 17 de julho de 2015
O amigo dos animais
quarta-feira, 15 de julho de 2015
Os louros a quem os merece
Que injustiça - queixou-se o velho pederasta -, os louros deviam ser para mim...
Mário Dionísio 2
Tanta gente sentada nesta sala deserta
Outros de pé encostados ao fogão de costas para a janela
Só se entendem é claro porque nunca se encontraram
Entram e saem pela porta sempre aberta
E eu recordo com eles coisas que não se passaram
o que a vida não foi que é o que brilha nela
"Terceira Idade", Mário Dionísio
(Mário Dionísio nasceu no dia 16 de Julho de 1916. Morreu em 1993.)
Outros de pé encostados ao fogão de costas para a janela
Só se entendem é claro porque nunca se encontraram
Entram e saem pela porta sempre aberta
E eu recordo com eles coisas que não se passaram
o que a vida não foi que é o que brilha nela
"Terceira Idade", Mário Dionísio
(Mário Dionísio nasceu no dia 16 de Julho de 1916. Morreu em 1993.)
O membro que vai ser pai
O membro, como muito bem ensina a sabedoria popular, é o pai de todos nós. Mas, cuidado, esta penetrante acepção não passa de malandrice, de truca-truca com a semântica. Não é a sério (à séria, se lido em Lisboa). Parece, porém, que o lisboeta DN não sabe disso, e então faz títulos como este que diz "Membro dos One Direction vai ser pai". Para o assunto em questão, a expressão One Direction também tem a sua piada, mas não é por aí que eu quero entrar. O essencial da coisa, para mim, é que o membro, por mais membro que seja, pode realmente ser o móbil da prenhez, mas não alcança ele próprio. Creio que está cientificamente provado. Bem sei que estamos em plena estação dos tolos, sobretudo nas redacções dos jornais, mas dizer tão simplesmente que fulano vai ser pai é, pelo menos, uma ligeiríssima desconsideração pela fulana que carrega a encomenda uma porrada de meses e que, ela sim, vai ser mãe. Quanto ao caso vigente, o jornal conta que "O cantor [isto é, o membro] conheceu Jungwirth no início do ano e foram vistos juntos em público várias vezes em Maio. Segundo fontes citadas pela revista People, o casal está feliz." E isso é bom. Terem sido vistos juntos em público várias vezes, e sobretudo em Maio, explica, por outro lado, a gravidez...
terça-feira, 14 de julho de 2015
António Quadros 2
Poética contraditória
Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.
"Viagem Desconhecida", António Quadros
(António Quadros nasceu no dia 14 de Julho de 1923. Morreu em 1993.)
Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.
"Viagem Desconhecida", António Quadros
(António Quadros nasceu no dia 14 de Julho de 1923. Morreu em 1993.)
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segunda-feira, 13 de julho de 2015
Follow me ou o fado do desgraçadinho 3
Foto Hernâni Von Doellinger |
Casámos de branco, os dois, ou cuidavas que eu me ficava? Tu parecias uma princesa de conto de fadas e eu parecia o Américo Tomás a inaugurar um chafariz. Mas que belo par de jarras, diziam os convidados, serão da Vista Alegre? E os néscios dos teus progenitores inchados de orgulho, "Vista Alegre, estás a ver António, estou farta de te dizer, não há nada como o branco", rejubilava a tua mãe, e o teu pai, "Fresquinho, se for fresquinho não digo que não, Maria"...
Vinte anos, como tão redondamente disse o tal Patxi Andión. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavrísssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintéctico, mas é mesmo assim, com cê e tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna, vai arrefecendo como a comida, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para toda a vida com esta tão injusta quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa lá, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho...
(Repito hoje o apontamento que escrevi e publiquei no passado sábado. Repito para acrescentar a foto que ontem apanhei em Fafe e que eu acho que lhe fica muito bem.)
Daniel Bastos apresenta "Terra" na Livraria Lello
Daniel Bastos vai à Livraria Lello, no Porto, promover o seu livro de poesia "Terra". Na próxima quinta-feira, dia 16 de Julho, pelas 19h30, com a apresentação a cargo de Filipe Larsen, director do Festival 6 Continentes. A sessão inclui uma prova de vinho verde.
"Terra" é a primeira incursão do fafense Daniel Bastos no campo da poesia. A obra, em edição bilingue (português e francês) e com tradução de Paulo Teixeira, conta com ilustrações originais de Orlando Pompeu.
domingo, 12 de julho de 2015
Orígenes Lessa 3
O trem bufou, entre cansado e contente, diminuindo a marcha. Deixei para um lado a revista, levantei-me, estirando os músculos. Alto da Serra. Sanduíche e café. Ou maçãs. Ganhei a plataforma, empurrado por gente com pressa, fim de semana de pequenos empregados, castigo de nervos para velhos jogadores, ainda esperançosos de arrebentar os cassinos do Gonzaga ou da Ilha Porchat. Uma criança passa-me por entre as pernas, com o salto imprevisto que dou, ao surpreendê-la quase embaixo de mim.
- Vem cá, Zequinha!
Aplicam-lhe uma palmada injusta, que o garoto não sente, já de olhos arregalados num baleiro. Mocinhas alvoroçadas que vão ver o mar compram revistas de cinema e de rádio.
- Olha o Orlando Silva como ficou ótimo. Que amor de voz, não?
Um homem que vinha quase a correr, cavaleiro andante a equilibrar uma xícara de café para a bem-amada, dá-me um encontrão, o café se perde, peço desculpas, ele pede também, sorrimos com esse ar superior dos homens civilizados que às vezes vão no sábado a Santos. Um outro come tranqüilo o seu sanduíche de queijo, com o ar e a roupa de quem não almoçou antes do embarque. Não tivera tempo, era muito caro o restaurante do trem. Chego ao café. Está apinhado. Vinte a trinta passageiros se abalroam junto ao balcão, gritando, pedindo sanduíches ou fatias de pão-de-ló (feitos com o Fermento Rochedo são muito mais saborosos e tenros). Há braços estendidos, já com a mercadoria na mão: tabletes de chocolate, maçãs, pacotinhos de balas.
"Omelete em Bombaim", Orígenes Lessa
(Orígenes Lessa nasceu no dia 12 de Julho de 1903. Morreu em 1986.)
- Vem cá, Zequinha!
Aplicam-lhe uma palmada injusta, que o garoto não sente, já de olhos arregalados num baleiro. Mocinhas alvoroçadas que vão ver o mar compram revistas de cinema e de rádio.
- Olha o Orlando Silva como ficou ótimo. Que amor de voz, não?
Um homem que vinha quase a correr, cavaleiro andante a equilibrar uma xícara de café para a bem-amada, dá-me um encontrão, o café se perde, peço desculpas, ele pede também, sorrimos com esse ar superior dos homens civilizados que às vezes vão no sábado a Santos. Um outro come tranqüilo o seu sanduíche de queijo, com o ar e a roupa de quem não almoçou antes do embarque. Não tivera tempo, era muito caro o restaurante do trem. Chego ao café. Está apinhado. Vinte a trinta passageiros se abalroam junto ao balcão, gritando, pedindo sanduíches ou fatias de pão-de-ló (feitos com o Fermento Rochedo são muito mais saborosos e tenros). Há braços estendidos, já com a mercadoria na mão: tabletes de chocolate, maçãs, pacotinhos de balas.
"Omelete em Bombaim", Orígenes Lessa
(Orígenes Lessa nasceu no dia 12 de Julho de 1903. Morreu em 1986.)
sábado, 11 de julho de 2015
Follow me ou o fado do desgraçadinho 3
Casámos de branco, os dois, ou cuidavas que eu me ficava? Tu parecias uma princesa de conto de fadas e eu parecia o Américo Tomás a inaugurar um chafariz. Mas que belo par de jarras, diziam os convidados, serão da Vista Alegre? E os néscios dos teus progenitores inchados de orgulho, "Vista Alegre, estás a ver António, estou farta de te dizer, não há nada como o branco", rejubilava a tua mãe, e o teu pai, "Fresquinho, se for fresquinho não digo que não, Maria"...
Vinte anos, como tão redondamente disse o tal Patxi Andión. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavrísssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintéctico, mas é mesmo assim, com cê e tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna, vai arrefecendo como a comida, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para toda a vida com esta tão injusta quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa lá, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho...
Vinte anos, como tão redondamente disse o tal Patxi Andión. Dávamo-nos bem, Glória, parecíamos mesmo um casal: eu não me metia contigo e tu não te metias comigo. O cuidado que eu tinha com o estore, de manhã, para não te incomodar. Os vagares com que eu andava pela casa, em pezinhos de lã, porque dizias que a minha presença te fazia corrente de ar. Fui ou não fui ao workshop de reeducação para mijadores sem ponto de mira que tanto me recomendaste? Íamos ou não íamos aquele domingo de Agosto à Póvoa de Varzim fazer as nossas ricas férias? Tu sabes, devias saber que eu nunca te enganei, Glória, palavrísssima de honríssima, desculpa-me o superlativo absoluto sintéctico, mas é mesmo assim, com cê e tudo. Fui-te fiel como só um bacalhau seco e posteriormente demolhado pode ser. Dei-te vinte anos da minha vida e tu recambias-mos resumidos e empacotados em dezassete sacos de plástico que me obrigaste a pagar e colocaste na parte de fora da porta de casa. Dezassete? Não mereço vinte, para ser conta certa? Eu sei que as coisas já não estavam como antigamente, esfriaram, mas não será essa a evolução natural de vida de casados? O amor funciona a coração e não a gás, Glória, o amor não é chama eterna, vai arrefecendo como a comida, e deixa-me tomar nota desta, que é muito boa...
Vinte anos de uso e nem me levaste à troca. E isso é o que mais me magoa, Glória. Dizes que me mandas embora porque eu não presto e não porque encontraste melhor. Não faças assim, Glória, ao menos põe-me os cornos, ainda estás a tempo, faz-me esse favor, dá-me essa alegria, põe-me os cornos. Se não for por mim, que seja pelos nossos queridos filhos, coitadinhos, que vamos desgraçar para toda a vida com esta tão injusta quanto politraumatizante separação. O quê? Não temos filhos? Pois não, desculpa lá, Glória, às vezes entusiasmo-me um bocadinho...
sexta-feira, 10 de julho de 2015
Meia de leite e um pãozinho com manteiga
- Bom dia!
- Faz favor de dizer...
- Bom dia!
- Diga, diga...
- Bom dia!
- Sim, sim, e o que vai ser?...
- Bom dia!
- E era só?...
- Para começar...
- Bom dia?
- Exactamente.
- Então bom dia...
- Muitíssimo obrigadíssimo.
- E que mais?...
- Meia de leite e um pãozinho com manteiga, se faz favor.
- Faz favor de dizer...
- Bom dia!
- Diga, diga...
- Bom dia!
- Sim, sim, e o que vai ser?...
- Bom dia!
- E era só?...
- Para começar...
- Bom dia?
- Exactamente.
- Então bom dia...
- Muitíssimo obrigadíssimo.
- E que mais?...
- Meia de leite e um pãozinho com manteiga, se faz favor.
quinta-feira, 9 de julho de 2015
Follow me ou o fado do desgraçadinho 2
Tu eras uma jovem professora primária em princípio de carreira, eu vendia rifas, preservativos e canetas de tinta permanente. Estávamos tão bem um para o outro, que mais haveríamos de querer? Ainda por cima, eras a primeira que fazia de conta a esta minha peculiaridade, ao facto de eu dar um jeitinho nesta perna, a direita, que, por ironia do destino, me nasceu dez centímetros mais comprida do que a esquerda. As outras chamavam-me manquinho, as cagonas, gozavam-me, oh!, quem me dera que me gozassem, fosse de que maneira fosse, mas não, faziam era pouco de mim, chamavam-me deficiente motor, "Olha o Sobe-e-desce", diziam que eu lhes a arrastava a asa. E arrastava, que remédio. Por infelizmências assim é que, no que toca a mulheres, ando sempre de pé atrás...
Mas tua eras diferente, Glória.
Passei a ser visita dos Sousas, em Ermesinde, aos sábados à tarde, e a gramar o aeroporto, todos ao molho, aos domingos. Como quem não quer a coisa, tu sempre a mandar, metemos o namoro a cotio. Durante a semana, no final do vosso jantar, eu aparecia e namorávamos em família na sala de estar, eu, tu, o teu pai e a tua mãe, enquanto comíamos bolachinhas de sortido molhadas em vinho fino e discutíamos a telenovela brasileira. Com o andar do tempo, os teus velhotes atreveram-se a irem sozinhos ver pousar os aviões, o FC Porto lá aprendeu a desenrascar-se sem a minha presença, e nós ficávamos, eu, tu e mais ninguém, a tomar conta da casa, por assim dizer. Parafraseando o grande poeta norte-americano Bruce Springsteen, eram então os meus dias de Glória, como gostava de cocegar-te ao ouvido. Numa ânsia, num sufoco, com a cabeça à roda, voando, voando, "Ai professorinha, professorinha, ensina-me mais coisas", e tu de repente em contraciclo, a espernear aflita, "Tá queto, tira a mão, tira daí", não passávamos das primeiras letras. Querias casar de branco.
Mas tua eras diferente, Glória.
Passei a ser visita dos Sousas, em Ermesinde, aos sábados à tarde, e a gramar o aeroporto, todos ao molho, aos domingos. Como quem não quer a coisa, tu sempre a mandar, metemos o namoro a cotio. Durante a semana, no final do vosso jantar, eu aparecia e namorávamos em família na sala de estar, eu, tu, o teu pai e a tua mãe, enquanto comíamos bolachinhas de sortido molhadas em vinho fino e discutíamos a telenovela brasileira. Com o andar do tempo, os teus velhotes atreveram-se a irem sozinhos ver pousar os aviões, o FC Porto lá aprendeu a desenrascar-se sem a minha presença, e nós ficávamos, eu, tu e mais ninguém, a tomar conta da casa, por assim dizer. Parafraseando o grande poeta norte-americano Bruce Springsteen, eram então os meus dias de Glória, como gostava de cocegar-te ao ouvido. Numa ânsia, num sufoco, com a cabeça à roda, voando, voando, "Ai professorinha, professorinha, ensina-me mais coisas", e tu de repente em contraciclo, a espernear aflita, "Tá queto, tira a mão, tira daí", não passávamos das primeiras letras. Querias casar de branco.
quarta-feira, 8 de julho de 2015
O almocinho de dominguinho, graças a Deus
Um dominguinho como de costume. Missinha das onze, homiliazinha com palavrinhas a abater e um que outro puxãozinho de orelhas para temperar, uns acenozinhos, umas lambidelas na mão... e depois o almocinho. O almocinho de dominguinho: três pratos, tal qual a Santíssima Trindade e o outro assunto que não vem ao caso. Duas horas à mesa e sempre a dar-lhe, como se fosse castigo, penitência. - Ui! Comi que nem um abade - desabafou, num arroto final. - Nada de modéstias, Eminentíssimo e Reverendíssimo, afinal de contas sois Cardeal, Cardeal - acudiu o solícito secretário, com as maiúsculas numa mão e o bicarbonato de sódio na outra.
terça-feira, 7 de julho de 2015
Laurindo Rabelo
As rosas do cume
No cume da minha serra
Eu plantei uma roseira,
Quanto mais as rosas brotam
Tanto mais o cume cheira.
À tarde, quando o sol posto,
E o vento no cume adeja,
Vem travessa borboleta
E as rosas do cume beija.
No tempo das invernadas
Que as plantas do cume lavam,
Quanto mais molhadas eram
Tanto mais no cume davam.
Mas se as águas vêm correntes
E o sujo do cume limpam,
Os botões do cume abrem,
As rosas do cume grimpam.
Tenho pois certeza agora
Que no tempo de tal rega
Arbusto, por mais mimoso,
Plantado no cume, pega.
Ah! Porém o sol brilhante
Seca logo a catadupa;
O calor que a terra abrasa
As águas do cume chupa.
Laurindo Rabelo
(Laurindo Rabelo nasceu no dia 8 de Julho de 1826. Morreu em 1864.)
No cume da minha serra
Eu plantei uma roseira,
Quanto mais as rosas brotam
Tanto mais o cume cheira.
À tarde, quando o sol posto,
E o vento no cume adeja,
Vem travessa borboleta
E as rosas do cume beija.
No tempo das invernadas
Que as plantas do cume lavam,
Quanto mais molhadas eram
Tanto mais no cume davam.
Mas se as águas vêm correntes
E o sujo do cume limpam,
Os botões do cume abrem,
As rosas do cume grimpam.
Tenho pois certeza agora
Que no tempo de tal rega
Arbusto, por mais mimoso,
Plantado no cume, pega.
Ah! Porém o sol brilhante
Seca logo a catadupa;
O calor que a terra abrasa
As águas do cume chupa.
Laurindo Rabelo
(Laurindo Rabelo nasceu no dia 8 de Julho de 1826. Morreu em 1864.)
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Artur Azevedo
Plebiscito
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dous, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
- Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
- Papai?
Pausa:
- Papai?
Dona Bernardina intervém:
- Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
- Que é? Que desejam vocês?
- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
- Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
- Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
- Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
- Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
- Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
- A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
- A senhora o que quer é enfezar-me!
[...]
"Contos Fora de Moda", Artur Azevedo
(Artur Azevedo nasceu no dia 7 de Julho de 1855. Morreu em 1908.)
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dous, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
- Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
- Papai?
Pausa:
- Papai?
Dona Bernardina intervém:
- Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
- Que é? Que desejam vocês?
- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
- Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
- Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
- Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
- Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
- Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
- A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...
- A senhora o que quer é enfezar-me!
[...]
"Contos Fora de Moda", Artur Azevedo
(Artur Azevedo nasceu no dia 7 de Julho de 1855. Morreu em 1908.)
segunda-feira, 6 de julho de 2015
Deixei o cego a falar sozinho
Por Matosinhos anda um cego que tem duas curiosas particularidades: é benfiquista e diz palavrões como a puta que o pariu. A cegueira poderá explicar a primeira curiosa particularidade, mas suponho que já não conseguirá justificar a segunda.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego ouve as notícias num transístor em voz alta e um destes dias, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imedita e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe dizendo os números dos autocarros que se aproximavam da paragem. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei... invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, querem saber?, não me arrependo.
Para além de ser pelo Benfica e campeão da malcriadez, o meu cego ouve as notícias num transístor em voz alta e um destes dias, estávamos na paragem de autocarro da Avenida Serpa Pinto, o aparelho falava da Grécia. A reportagem ainda ia a meio, mas o cego, sem que eu lho pedisse, resumiu-me imedita e cientificamente a questão: "Se se fossem mas é foder, filhos da puta do caralho, se querem chupar que chupem piças, era fodê-los, era fodê-los"...
Eu, para não mandar o cego à merda, ia-lhe dizendo os números dos autocarros que se aproximavam da paragem. Informei-o do 111. "A mim só me interessam o 500 e o 502", respondeu-me, com maus modos, como se a culpa fosse minha. Já agora, culpa de quê? "O 502 passou há um bocadinho, perdi-o por pouco", expliquei eu, a ver se amenizava a coisa. "Há um bocadinho não, que eu estou aqui há um pedaço e ele não passou", atirou-me o cego. Acreditem em mim, por favor: eu tinha chegado à paragem há cinco minutos, o cego chegara há três minutos. Fiquei... invisual com a desconfiança e com a falta de educação do homem, mas afastei-me, para não ter de lhe responder torto.
Deixei-o a falar sozinho, literalmente a falar sozinho, porque ele continuou a comentar as notícias, caralho acima, quem os fodesse abaixo, aparentemente virado para mim, imaginando-me ao seu lado, mas eu estava a mais de quinze metros de distância e, confesso, a começar a sentir-me ligeiramente mal com a situação. Não se faz, deixar um cego a falar sozinho.
Reaproximei-me quando chegava mais um autocarro. Um rapazinho avisa o cego, "É o 523". O rapaz confundiu-se, era o 123 da Resende, o 523 da STCP não existe, e o cego, que sabe os autocarros de cor e salteado, aproveitou para dar uma desanda ao miúdo. Vem finalmente o 500 e o jovem, ainda cheio de boas intenções apesar do raspanete, alerta, satisfeitíssimo, "É o 500, é o 500". O autocarro pára e abre a porta. O cego pergunta lá para dentro, ao motorista, "É o 500?", "É o 500", confirma o motorista. Da paragem, corado de vergonha e tristeza, o rapazinho queixa-se ao cego, "Não acredita em mim?", e o cego responde, "Acreditar em quem, caralho, tu até inventas números..."
Não renego o meu fardo judaico-cristão, mas os remorsos passaram-me de repente. Sim, deixei o cego a falar sozinho - e, querem saber?, não me arrependo.
Tomaz de Figueiredo
Sou um archote inútil de Poesia.
Queimo-me, puro fogo, em fogo puro.
Orfeu no Inferno, sou o palinuro
Duma nau que aberrada estrela guia.
E, cruel sempre, esta veloz porfia
de acender versos no luar escuro.
Obsesso da Beleza, o mais abjuro,
fiel lhe sou, matando a Alegria.
Não paro. Por um ano, por vinte anos,
hei-de parir sonetos desumanos
em que me firo como em lanças más.
Nisto, até nisto, e a viver de horror,
sempre me hei-de entregar. Hóstia de Amor,
hei-de morrer poeta e rapaz.
"Poesia I", Tomaz de Figueiredo
(Tomaz de Figueiredo nasceu no dia 6 de Julho de 1902. Morreu em 1970.)
Queimo-me, puro fogo, em fogo puro.
Orfeu no Inferno, sou o palinuro
Duma nau que aberrada estrela guia.
E, cruel sempre, esta veloz porfia
de acender versos no luar escuro.
Obsesso da Beleza, o mais abjuro,
fiel lhe sou, matando a Alegria.
Não paro. Por um ano, por vinte anos,
hei-de parir sonetos desumanos
em que me firo como em lanças más.
Nisto, até nisto, e a viver de horror,
sempre me hei-de entregar. Hóstia de Amor,
hei-de morrer poeta e rapaz.
"Poesia I", Tomaz de Figueiredo
(Tomaz de Figueiredo nasceu no dia 6 de Julho de 1902. Morreu em 1970.)
sábado, 4 de julho de 2015
sexta-feira, 3 de julho de 2015
O último pedido do condenado
Vinham o padre, o presidente da câmara, o chefe da polícia, o sargento da GNR, o Emplastro, o comandante dos bombeiros, a fanfarra dos escuteiros, uma gaiola com pombas brancas e o director da prisão. Parecia uma procissão. O carcereiro, que vinha também, desatarraxou a porta da cela e o director da prisão, solene, com voz de padre, informou o condenado: - Tens direito a um último pedido. O condenado pensou um bocado e disse: - Pode ser "Quem vem e atravessa o rio", do Rui Veloso?...
Emílio de Meneses
Noite de insônia
Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito.
Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;
Este leito que aí está revolto assim, desfeito,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto,
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito,
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...
Louco e só! Desvairado! A noite vai sem termo
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais,
Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.
E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo
Este horrível temor de que não voltes mais!...
"Poesias", Emílio de Meneses
(Emílio de Meneses nasceu no dia 4 de Julho de 1866. Morreu em 1918.)
Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito.
Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;
Este leito que aí está revolto assim, desfeito,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto,
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito,
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...
Louco e só! Desvairado! A noite vai sem termo
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais,
Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.
E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo
Este horrível temor de que não voltes mais!...
"Poesias", Emílio de Meneses
(Emílio de Meneses nasceu no dia 4 de Julho de 1866. Morreu em 1918.)
quinta-feira, 2 de julho de 2015
Uma boa parábola deve ser à prova de água
Foto Hernâni Von Doellinger |
- Se me dá licença, Luisinha, vou contar-lhe uma pequena história a propósito. Uma parábola, que também as conto bem. Era uma vez um velho pescador muito pobre, muito pobre, tão pobre que nem tinha moscas em casa. A sua amantíssima esposa era muito velhinha, muito velhinha, tão velhinha que sentia a falta das moscas. E não tinham filhos. Certo dia, quando andava na faina à faneca, o paupérrimo pescador foi surpreendido por uma violenta tempestade. Uma tempestade dantesca, se não fosse asneira dizê-lo. As ondas eram adamastores, o barco uma casca de noz (como se fosse possível...), uma esfera desgovernada numa máquina de flippers de gás a fundo. É hoje que me afogo, é hoje que me afogo, pensou o homem e calçou as galochas, sem fazer ideia do que é uma máquina de flippers. A aflição do velhíssimo pescador era do tamanho da borrasca: medonha. Graças a Deus, lembrou-se do Mártir São Sebastião e fez uma solene promessa: se Nossa Senhora do Leite e do Bom Parto lhe mandasse um filho, meteria imediatamente os sogros num asilo, livrando-os da fome de cão que passavam lá em casa, assim São Pedro o permitisse. Nessa noite de milagre, quando voltou são e salvo ao porto de abrigo do seu modesto porém honrado lar, a sua velhíssima e amantíssima esposa tinha-lhe guardado no borralho mortiço o fundo de uma malga com farinha-de-pau. O pescador despejou as galochas na pia de lavar a louça, para aproveitar, e ceou...
De braços teatralmente abertos, com a mão direita segurando a chávena do café e a esquerda agarrada ao pires, abanando compenetradamente a cabeça, em movimentos curtos, ritmados, de cima para baixo ou vice-versa a partir de uma certa altura, confirmando em absoluto a profundez da mensagem supra, Quitério fixava, inquiridor, num silêncio eloquente, uma estranha Luisinha que o olhava de boca aberta. Cansado de estar calado e de abanar a cabeça, Quitério perguntou finalmente:
- Percebeu?
- Olhe que não sei bem... - defendeu-se Luisinha, mais confusa era impossível.
- Pois aí tem, exactamente a esse ponto é que eu queria chegar - sentenciou Quitério, dando por encerrada a sessão.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Alberto Alves apresenta "Espelhos da Alma"
Alberto Alves estreia-se na publicação poética com "Espelhos da Alma". O livro será apresentado na próxima quarta-feira, dia 8 de Julho, pelas 21h30, na Biblioteca Municipal de Fafe. Mais informação, aqui.
(Talvez não venha ao caso, mas é preciso que se diga que, nas suas funções de responsável pela Biblioteca da Fundação Gulbenkian em Fafe, o professor Alberto Alves foi o farol que guiou uma ou duas gerações de fafenses até ao gosto pela boa literatura.)
Follow me ou o fado do desgraçadinho
Foto Hernâni Von Doellinger |
Foi em Setembro que te conheci, òs anos, quando o aeroporto de Pedras Rubras ainda nem se chamava aeroporto Praça Velásquez. Não havia chopingues como agora, o FC Porto jogava na Madeira, com o Marétimo, e a gente, eu mais o Sarafim, íamos passar um domingo de categoria a ouvir o relato no tijolo do Sarafim e a esgravatar engate nas Departures e Arrivals ou no terraço das excursões de nariz para o ar a verem aterrar e levantar aviões. Tu também lá ias com os parolos dos teus pais, que por acaso até me resultaram boas pessoas, e trazias a tua inseparável amiga Benilde, em quem o Sarafim se pôs numa fervurinha e como quem não quer a coisa. Adiante. Foi lá que te vi pela primeira vez em toda a tua excelsa Glória - Glória da minha terra, Glória de Sousa, Glória efémera -, no bar do aeroporto, que era só um e parecia um tasco. Foi tiro e queda: entrei caçador e saí caçado, apanhadinho de todo. Se calhar foi amor aquilo. Lembro-me como se fosse hoje: eras linda, num vestido justinho de chita às ramagens verdes estampadas, com umas sandálias rasas, pois, talvez estivesses de calças de ganga e botas de cano alto, mas toda coradinha e tão fresquinha. Tinhas uns olhos, uns olhos cor de, de que cor são os teus olhos, Glória? Eu bebia uma Super Bock e tu olhaste para mim mas eu não tive a certeza. Confirmaste-mo oito dias depois, eu sozinho, o Sarafim nas Antas e ver o jogo contra o Beira Mar e com a mão enfiada na parreca da Benilde, e eu para ali, aos caídos, abandonado como um cãozito sarnento, à espreita de um sinal, de um sorriso, perdoa-me a poesia. Deste-me ambos os dois, e confirmaste-mo. Mas nada de avanços, parte a parte, o respeito é muito bonito e os parolos dos teus pais, sem ofensa, gostavam muito, atenta e vigilantemente. Levava eu já perdida quase toda a primeira volta do campeonato, confortado pelos relatos do tijolo do Sarafim, "alô, Nuno!", quando te dignaste, muito dissimulada, num aceno de cabeça, dar-me sinal de Follow me. Alvorocei-me para vos levar as gasosas à mesa, a ti, minha riqueza, e aos parolos dos teus pais, não desfazendo.
Perguntaste-me o meu nome e eu disse-te a verdade, mostrando-te o cartão de sócio do FC Porto: Joaquim Maria dos Passos Eleutério, isto é, Quitério. Admiraste-te: Joaquim Maria dos Passos Eleutério, isto é, Quitério, que nome tão esquisito? E eu expliquei: quer-se dizer, o meu pai era Eleutério, minha mãe era dos Passos, o padrinho Joaquim e a madrinha Maria. Resulta realmente um nome de merda, desculpa-me a expressão, e confesso que tentei esconder o enxovalho nominal assinando Joaquim Eleutério, tinha esse direito, mas nem assim me convenci. Que se segue, agarrei no Joaquim e no Eleutério, espremi-os a ver o que davam, experimentei todas as combinações possíveis e imaginárias, e optei pela criação, inventei-me: aproveitei as sobras, casei-as e rebaptizei-me Quitério, que sempre é um nome assim mais coisa e tal. Mas chama-me Quim e beija-me na boca. Não, não ligues, é uma brincadeiras cá das minhas. Quê? O Sarafim e a Benilde, nunca mais os vi. Sim, fiquei com o tijolo do Sarafim, e o que é que essa merda interessa para a nossa conversa?...
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