sexta-feira, 31 de janeiro de 2014
Memórias da Guerra Colonial em Vila do Conde
A Biblioteca Municipal José Régio, em Vila do Conde, acolhe esta noite, pelas 21h30, uma "Evocação de Memórias da Guerra Colonial Portuguesa". Iniciativa da Câmara Municipal de Vila do Conde e da Associação de Ex-Combatentes de Vila do Conde, com a participação de António Carmo Reis, Jaime Froufe Andrade e Manuel Nascimento Azevedo.
Concepción Arenal
El sobrio y el gloton
Había en un lugaron
Dos hombres de mucha edad,
Uno de gran sobriedad
Y el otro gran comilon.
La mejor salud del mundo
Gozaba siempre el primero,
Estando de Enero á Enero
Débil y enteco el segundo.
"¿Por qué, el tragon dijo un día,
Comiendo yo mucho mas,
Tu mucho mas gordo estás?
No lo comprendo á fé mia."
- Es, le replicó el frugal,
Y muy presente lo ten,
Porque yo digiero bien,
Porque tu digieres mal.
Haga de esto aplicacion
El pedante presumido,
Si porque mucho ha leido
Crée tener instruccion,
Y siempre que á juzgar fuere
La regla para sí tome:
- No nutre lo que se come
Sino lo que se digiére.
"Fábulas en Verso - Originales", Concepción Arenal
(Concepción Arenal nasceu no dia 31 de Janeiro de 1820. Morreu em 1893.)
Había en un lugaron
Dos hombres de mucha edad,
Uno de gran sobriedad
Y el otro gran comilon.
La mejor salud del mundo
Gozaba siempre el primero,
Estando de Enero á Enero
Débil y enteco el segundo.
"¿Por qué, el tragon dijo un día,
Comiendo yo mucho mas,
Tu mucho mas gordo estás?
No lo comprendo á fé mia."
- Es, le replicó el frugal,
Y muy presente lo ten,
Porque yo digiero bien,
Porque tu digieres mal.
Haga de esto aplicacion
El pedante presumido,
Si porque mucho ha leido
Crée tener instruccion,
Y siempre que á juzgar fuere
La regla para sí tome:
- No nutre lo que se come
Sino lo que se digiére.
"Fábulas en Verso - Originales", Concepción Arenal
(Concepción Arenal nasceu no dia 31 de Janeiro de 1820. Morreu em 1893.)
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Castelao
Semellante a un frade de madeira
Semellante a un frade de madeira mal pintada; tiña un nariz bermello de antroido e unha calva esvaída de difunto reseso, e non sabía un por onde tomalo para moufarse da súa cativeza. Malasisado coma os sinos, que repenican con tolería de festa e logo tanxen a morto. Tan amigo de beber que sendo pequeno foise ó augardente dun feto, que era tío seu, e deixouno sequiño de todo. Para gana-la vida chegou a ouvear coma un can no tempo das uvas.
Pero certo día topouse cunha muller nun camiño de romería. A muller ía de promesa, cun faroliño na man. Faloulle, namorouna e casáronse deseguida.
Ela é un ananuxo que gana diñeiro nos mercados como regateira de roupa vella. El fíxose borracho de solenidade. E os dous xuntos son a risa do pobo nos domingos e días de gardar.
Cómpre decirvos que tiveron un fillo tan forte de corpo e de alma, tan desemellante dos seus pais, que parecía un neno roubado. O neno medrou e fíxose home de proveito e largou para fóra.
O pai anda decindo:
- Non volve porque como a nai é así…
E a nai anda decindo:
- Non volve porque como o pai é así…
Pero eu sei que non volve porque aínda non é dabondo rico para mata-las risas dos que se moufan dos seus pais; que con diñeiro pódese chegar a Excelentísimo Señor, según xa ten pasado e aínda pasará.
"Cousas", Castelao
(Alfonso Daniel Manuel Rodríguez Castelao nasceu no dia 30 de Janeiro de 1886. Morreu em 1950.)
Semellante a un frade de madeira mal pintada; tiña un nariz bermello de antroido e unha calva esvaída de difunto reseso, e non sabía un por onde tomalo para moufarse da súa cativeza. Malasisado coma os sinos, que repenican con tolería de festa e logo tanxen a morto. Tan amigo de beber que sendo pequeno foise ó augardente dun feto, que era tío seu, e deixouno sequiño de todo. Para gana-la vida chegou a ouvear coma un can no tempo das uvas.
Pero certo día topouse cunha muller nun camiño de romería. A muller ía de promesa, cun faroliño na man. Faloulle, namorouna e casáronse deseguida.
Ela é un ananuxo que gana diñeiro nos mercados como regateira de roupa vella. El fíxose borracho de solenidade. E os dous xuntos son a risa do pobo nos domingos e días de gardar.
Cómpre decirvos que tiveron un fillo tan forte de corpo e de alma, tan desemellante dos seus pais, que parecía un neno roubado. O neno medrou e fíxose home de proveito e largou para fóra.
O pai anda decindo:
- Non volve porque como a nai é así…
E a nai anda decindo:
- Non volve porque como o pai é así…
Pero eu sei que non volve porque aínda non é dabondo rico para mata-las risas dos que se moufan dos seus pais; que con diñeiro pódese chegar a Excelentísimo Señor, según xa ten pasado e aínda pasará.
"Cousas", Castelao
(Alfonso Daniel Manuel Rodríguez Castelao nasceu no dia 30 de Janeiro de 1886. Morreu em 1950.)
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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014
Kafka à beira-mar
Entro no metro. Viagem curta, de Matosinhos Sul até à Senhora da Hora, quinze minutos bem medidos, antes de mudar de linha para a minha vida em Vila do Conde. Sento-me num daqueles bancos frente com frente, éramos quatro, dois de cada lado e, se fosse futebol, a bola era redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte, cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe - sempre a destoar, eu.
terça-feira, 28 de janeiro de 2014
António Feliciano de Castilho
Os treze anos (cantilena)
Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.
Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já bailo ao domingo.
coas mais no terreiro.
Já não sou Anita,
como era primeiro,
sou a senhora Ana,
que mora no outeiro.
Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.
Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda
de cima do outeiro;
E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho coas patas
ao pé do salgueiro.
Miro-me nas águas
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.
Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.
Em tudo, madrinha,
já por derradeiro,
me vejo mui outra
da que era primeiro.
O meu gibão largo
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,
Dizendo-lhe: "Toma
gibão domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.
A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas coas outras
e eu danço em terreiro".
Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já tenho treze anos,
que os fiz em Janeiro.
Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.
Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras,
e olhar sobranceiro.
O mineiro é velho;
não quero o mineiro;
mais valem treze anos
que todo o dinheiro.
Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.
Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro;
Que em ele assomando
co tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro;
Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.
E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.
Ai, vida de gostos!
ai, céu verdadeiro!
ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!
Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.
"Escavações Poéticas", António Feliciano de Castilho
(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)
Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.
Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já bailo ao domingo.
coas mais no terreiro.
Já não sou Anita,
como era primeiro,
sou a senhora Ana,
que mora no outeiro.
Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.
Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda
de cima do outeiro;
E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho coas patas
ao pé do salgueiro.
Miro-me nas águas
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.
Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.
Em tudo, madrinha,
já por derradeiro,
me vejo mui outra
da que era primeiro.
O meu gibão largo
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,
Dizendo-lhe: "Toma
gibão domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.
A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas coas outras
e eu danço em terreiro".
Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já tenho treze anos,
que os fiz em Janeiro.
Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.
Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras,
e olhar sobranceiro.
O mineiro é velho;
não quero o mineiro;
mais valem treze anos
que todo o dinheiro.
Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.
Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro;
Que em ele assomando
co tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro;
Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.
E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.
Ai, vida de gostos!
ai, céu verdadeiro!
ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!
Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.
"Escavações Poéticas", António Feliciano de Castilho
(António Feliciano de Castilho nasceu no dia 28 de Janeiro de 1800. Morreu em 1875.)
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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
domingo, 26 de janeiro de 2014
Praxistas: e se lhes chegássemos a roupa ao pêlo?
Cruzo-me com as manadas da "praxe" e digo-lhes bestas, bestas quadradas. Aos capados e aos encabados. Eles já me conhecem, passo por tolo. Há anos que lhes digo bestas, bestas quadradas - no Parque da Cidade, na praia de Matosinhos. Na praia, exactamente. Sou eu.
E têm razão, os capados e os encabados: fui tolo. As palavras não adiantam contra a estupidez institucionalizada, mas infelizmente um homem já não argumenta de vara de lódão em riste como fazia o meu querido avô Bernardino no seu tempo de gente tesa e honrada. Não argumenta, mas devia - penso agora. Em vez do remoque, eu devia era ter bordoado.
No lombo. No lombo é que eles precisavam.
P.S. - Sobre a inteligência das alegadas tradições "universitárias", já escrevi aqui, aqui, aqui e aqui.
E têm razão, os capados e os encabados: fui tolo. As palavras não adiantam contra a estupidez institucionalizada, mas infelizmente um homem já não argumenta de vara de lódão em riste como fazia o meu querido avô Bernardino no seu tempo de gente tesa e honrada. Não argumenta, mas devia - penso agora. Em vez do remoque, eu devia era ter bordoado.
No lombo. No lombo é que eles precisavam.
P.S. - Sobre a inteligência das alegadas tradições "universitárias", já escrevi aqui, aqui, aqui e aqui.
sábado, 25 de janeiro de 2014
sexta-feira, 24 de janeiro de 2014
A teia da Leya
Novembro de 2006 bateu-me à porta com uma grande notícia: todos os livros do escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán
(1939-2003) com o detective privado Pepe Carvalho iam ser publicados,
ou republicados, em português. Era um projecto das Edições ASA e, ao que
foi então tornado público, uma aposta pessoal do seu director-geral,
Manuel Alberto Valente, confesso admirador do autor de "Eu Matei
Kennedy".
Montalbán tinha-me sido ensinado pelo meu amigo Luís Lopes, que me emprestara tudo o que Portugal conhecia da série Pepe Carvalho, que eram para aí uns cinco ou seis títulos, isto, se bem me lembro, lá pelos finais da década de 1980, princípios da década de 1990. E foi tiro e queda, tiro limpo, bem no meio do coração: tornei-me vázquez-montalbanista. Em 1999, pelos meus anos ou pelo Natal, alguém que sabia da minha paixão e que se me varreu fez o favor de me oferecer "O Quinteto de Buenos Aires". A esse respeito, aqui vai o meu mais sentido muitíssimo obrigadíssimo não sei a quem.
Com a minha mania de devolver ao dono o que me é emprestado, "O Quinteto" era tudo o que eu tinha de Pepe Carvalho quando soube da magnífica novidade. Fui logo a correr fazer a reserva de toda a colecção, 22 livros que deveriam ir saindo ao longo de uma meia dúzia de anos.
Saíram "Milénio I" e "Milénio II", trabalho que Montalbán revia quando foi acometido de um fulminante ataque cardíaco em Banguecoque, cenário de outro título da série que também foi publicado, "Os Pássaros de Banguecoque"; saíram ainda "Assassinato no Comité Central" e "Os Mares do Sul"; e não saiu mais nada.
Nos inícios de 2008, a Leya, de Miguel Pais do Amaral, abocanhou a ASA e mais não sei quantas editoras nacionais, Manuel Alberto Valente foi-se embora e o Pepe Carvalho de Manuel Vázquez Montalbán, que já passara por tantas e de todas se safara, morreu mesmo ali, sem direito a notícia no jornal, quanto mais missa de sétimo dia.
Fui às livrarias, procurei saber o que acontecera. Se vissem como eu vi o desconsolo com que as caras e os silêncios dos livreiros me falaram da Leya, do mal que o quase-monopólio da Leya está a fazer ao mercado do livro em Portugal, do sufoco imposto pela teia da Leya, então perceberiam porque me inquietei.
Passei dois anos a questionar directamente a Leya, por e-mail. Perguntava, respeitosa e repetidamente: vão retomar a publicação da série? Quando? Nunca me responderam. Dois anos, até desistir. Mas nunca me responderam. Os mesmos que, abusando do conhecimento do meu endereço electrónico, ainda ontem me enviaram o seu habitual folheto de supermercado livreiro, cheio de inutilidades editoriais mas "com descontos até 40%".
(Texto escrito e publicado no dia 24 de Agosto de 2011. Não era embirração, estão ver? Quanto ao Miguel Sousa Tavares, sabe-a toda, e ainda bem para ele.)
Montalbán tinha-me sido ensinado pelo meu amigo Luís Lopes, que me emprestara tudo o que Portugal conhecia da série Pepe Carvalho, que eram para aí uns cinco ou seis títulos, isto, se bem me lembro, lá pelos finais da década de 1980, princípios da década de 1990. E foi tiro e queda, tiro limpo, bem no meio do coração: tornei-me vázquez-montalbanista. Em 1999, pelos meus anos ou pelo Natal, alguém que sabia da minha paixão e que se me varreu fez o favor de me oferecer "O Quinteto de Buenos Aires". A esse respeito, aqui vai o meu mais sentido muitíssimo obrigadíssimo não sei a quem.
Com a minha mania de devolver ao dono o que me é emprestado, "O Quinteto" era tudo o que eu tinha de Pepe Carvalho quando soube da magnífica novidade. Fui logo a correr fazer a reserva de toda a colecção, 22 livros que deveriam ir saindo ao longo de uma meia dúzia de anos.
Saíram "Milénio I" e "Milénio II", trabalho que Montalbán revia quando foi acometido de um fulminante ataque cardíaco em Banguecoque, cenário de outro título da série que também foi publicado, "Os Pássaros de Banguecoque"; saíram ainda "Assassinato no Comité Central" e "Os Mares do Sul"; e não saiu mais nada.
Nos inícios de 2008, a Leya, de Miguel Pais do Amaral, abocanhou a ASA e mais não sei quantas editoras nacionais, Manuel Alberto Valente foi-se embora e o Pepe Carvalho de Manuel Vázquez Montalbán, que já passara por tantas e de todas se safara, morreu mesmo ali, sem direito a notícia no jornal, quanto mais missa de sétimo dia.
Fui às livrarias, procurei saber o que acontecera. Se vissem como eu vi o desconsolo com que as caras e os silêncios dos livreiros me falaram da Leya, do mal que o quase-monopólio da Leya está a fazer ao mercado do livro em Portugal, do sufoco imposto pela teia da Leya, então perceberiam porque me inquietei.
Passei dois anos a questionar directamente a Leya, por e-mail. Perguntava, respeitosa e repetidamente: vão retomar a publicação da série? Quando? Nunca me responderam. Dois anos, até desistir. Mas nunca me responderam. Os mesmos que, abusando do conhecimento do meu endereço electrónico, ainda ontem me enviaram o seu habitual folheto de supermercado livreiro, cheio de inutilidades editoriais mas "com descontos até 40%".
(Texto escrito e publicado no dia 24 de Agosto de 2011. Não era embirração, estão ver? Quanto ao Miguel Sousa Tavares, sabe-a toda, e ainda bem para ele.)
Por cima do Douro-Abaixo
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quinta-feira, 23 de janeiro de 2014
Viriato Correia
No interior do Brasil a hospitalidade é um dever sagrado que se cumpre religiosamente. Nossa casa vivia apinhada de criaturas estranhas, vindas de longe.
Às vezes, tarde da noite, ouviam-se rumores no terreiro. Eram hóspedes pedindo pousada.
Ao hóspede que chega não se pergunta de que precisa. Quem vem de longe, através de caminhos difíceis e desertos, certamente tem cansaço e fome. Necessita de alimento e de cama.
À nossa porta, ora à meia-noite, ora mais tarde, chegavam freqüentemente dez, doze, quinze pessoas desconhecidas. A essa hora acordavam meu pai e minha mãe para mandar fazer comida para os hóspedes.
Em certos dias, ao amanhecer, eu despertava num quarto que não era o meu e no meio de um punhado de crianças. É que nem sempre havia redes, para todas as pessoas de fora. A família desalojava-se: dormiam duas ou três pessoas juntas, para que não faltasse boa acomodação aos estranhos.
Em outras ocasiões, quando os hóspedes chegavam o "gaiola" havia passado na véspera. Só havia outro, dez ou quinze dias depois.
Dez ou quinze dias ficavam famílias inteiras em nossa casa, morando e comendo tranqüilamente.
Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe, apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes "obrigado" e nada mais.
É que nada mais lhes era permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu.
A hospitalidade por lá é uma religião e ninguém se furta a um dever religioso.
"Cazuza, Memórias de Um menino de Escola", Viriato Correia
(Viriato Correia nasceu no dia 23 de Janeiro de 1884. Morreu em 1967.)
quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
terça-feira, 21 de janeiro de 2014
Os trolhas e o moço ou o Soares dos pequeninos
No tempo em que havia trolhas em Portugal, os trolhas tinham um moço.
Para além de levarem umas valentes e bem merecidas chapadas para
aprenderem nunca se soube o quê, os moços faziam os recados: Moço, traz a
massa!; Moço, vai ao tasco!; Moço, cata-me os chatos!; Moço, toma conta
se o mestre vem!; Moço, anda cá que já vais treinar!; Moço, agarra-me
este peido e põe-mo a corar! Era assim.
Hoje os trolhas chamam-se pintores de construção civil, como se trolha fosse defeito. Não sei. Mas os trolhas do PSD têm um moço: chama-se Hugo Soares. A criatura não me interessa para nada (confesso que só este fim-de-semana é que soube da sua triste existência) e o referendo que o rapaz alegadamente propôs interessa-me ainda menos, até porque, como todos sabemos, não vai haver referendo nenhum.
Importa é isto: querendo explicar o inexplicável, o Soares dos pequeninos voltou à carga no sítio onde os homens se mostram - a rede social. E inexplicavelmente explicou que só quis corrigir um gravíssimo erro de lesa-democracia: na altura em que o projecto de lei da co-adopção do PS foi aprovado na Assembleia da República, "o debate (…) não ultrapassou, como devia, os quatro muros do parlamento; (...) devia ser feito na sociedade."
Pois. Os quatro muros do Parlamento. E as subidas dos impostos foram debatidas na rua, com a sociedade? E os cortes nos salários foram discutidos com os trabalhadores, na sociedade? E os reformados foram ouvidos, na sociedade, antes de lhes roubarem as pensões? E o interminável roulement de ministros e secretários de Estado incompetentes e de moral abastadamente duvidosa foi devidamente referendado pelo povo, que suponho seja a sociedade? E alguém me perguntou se eu queria a jovem reformada Assunção Esteves como segunda figura do Estado? Eu não sou sociedade? Afinal, para que serve o Parlamento, se vota e desvota na maior das irresponsabilidades? Afinal, o que é que separa as coisas que podem ser feitas dentro dos quatro muros do Parlamento e as que têm de ser feitas cá fora, em sociedade, eventualmente contra os quatro muros do Parlamento? Tentando desvendar o inexistente raciocínio do Hugo, e após o vergonhoso espectáculo da passada sexta-feira, admito que apenas o urinol.
P.S. - Não esqueci o essencial. Omiti-o propositadamente, porque não quero misturar politiquice de retrete com coisas realmente sérias. Para além disso, o direito das crianças à co-adopção é assunto que, para mim, de tão obviamente justo, não tem sequer discussão.
Hoje os trolhas chamam-se pintores de construção civil, como se trolha fosse defeito. Não sei. Mas os trolhas do PSD têm um moço: chama-se Hugo Soares. A criatura não me interessa para nada (confesso que só este fim-de-semana é que soube da sua triste existência) e o referendo que o rapaz alegadamente propôs interessa-me ainda menos, até porque, como todos sabemos, não vai haver referendo nenhum.
Importa é isto: querendo explicar o inexplicável, o Soares dos pequeninos voltou à carga no sítio onde os homens se mostram - a rede social. E inexplicavelmente explicou que só quis corrigir um gravíssimo erro de lesa-democracia: na altura em que o projecto de lei da co-adopção do PS foi aprovado na Assembleia da República, "o debate (…) não ultrapassou, como devia, os quatro muros do parlamento; (...) devia ser feito na sociedade."
Pois. Os quatro muros do Parlamento. E as subidas dos impostos foram debatidas na rua, com a sociedade? E os cortes nos salários foram discutidos com os trabalhadores, na sociedade? E os reformados foram ouvidos, na sociedade, antes de lhes roubarem as pensões? E o interminável roulement de ministros e secretários de Estado incompetentes e de moral abastadamente duvidosa foi devidamente referendado pelo povo, que suponho seja a sociedade? E alguém me perguntou se eu queria a jovem reformada Assunção Esteves como segunda figura do Estado? Eu não sou sociedade? Afinal, para que serve o Parlamento, se vota e desvota na maior das irresponsabilidades? Afinal, o que é que separa as coisas que podem ser feitas dentro dos quatro muros do Parlamento e as que têm de ser feitas cá fora, em sociedade, eventualmente contra os quatro muros do Parlamento? Tentando desvendar o inexistente raciocínio do Hugo, e após o vergonhoso espectáculo da passada sexta-feira, admito que apenas o urinol.
P.S. - Não esqueci o essencial. Omiti-o propositadamente, porque não quero misturar politiquice de retrete com coisas realmente sérias. Para além disso, o direito das crianças à co-adopção é assunto que, para mim, de tão obviamente justo, não tem sequer discussão.
Em defesa do Parque Biológico de Gaia
Uma campanha que pode e deve ser acompanhada em https://www.facebook.com/joao.gaspardejesus e em http://gaspardejesus.blogspot.pt/.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014
domingo, 19 de janeiro de 2014
Eugénio de Andrade
Em Lisboa com Cesário Verde
Nesta cidade, onde agora me sinto
mais estrangeiro do que os gatos persas;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver as gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também,
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
o sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.
"Poesia e Prosa", Eugénio de Andrade
(José Fontinhas, que usava o pseudónimo literário de Eugénio de Andrade, nasceu no dia 19 de Janeiro de 1923. Morreu em 2005.)
Nesta cidade, onde agora me sinto
mais estrangeiro do que os gatos persas;
nesta Lisboa, onde mansos e lisos
os dias passam a ver as gaivotas,
e a cor dos jacarandás floridos
se mistura à do Tejo, em flor também,
só o Cesário vem ao meu encontro,
me faz companhia, quando de rua
em rua procuro um rumor distante
de passos ou aves, nem eu já sei bem.
Só ele ajusta a luz feliz dos seus
versos aos olhos ardidos que são
os meus agora; só ele traz a sombra
de um verão muito antigo, com corvetas
lentas ainda no rio, e a música,
o sumo do sol a escorrer da boca,
ó minha infância, meu jardim fechado,
ó meu poeta, talvez fosse contigo
que aprendi a pesar sílaba a sílaba
cada palavra, essas que tu levaste
quase sempre, como poucos mais,
à suprema perfeição da língua.
"Poesia e Prosa", Eugénio de Andrade
(José Fontinhas, que usava o pseudónimo literário de Eugénio de Andrade, nasceu no dia 19 de Janeiro de 1923. Morreu em 2005.)
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sábado, 18 de janeiro de 2014
O nosso fumeiro e o gourmet de carregar pela boca
Foto Hernâni Von Doellinger |
Do outro lado da minha estrada (já repararam que, nas nossas cidades, as ruas agora não são ruas, são estradas, e estradas com engarrafamentos e perigosas?), dizia: do outro lado da minha estrada há uma daquelas pequenas lojas tipo "regional gourmet". Azeitonas em frasco, cogumelos em frasco, meles em frasco, geleias em frasco, licores em frasco, frascos em frasco, dois presuntos em fraco, azeites e vinhos em caro, prateleiras em fiasco. Num benévolo gesto de boas-vindas, mal abriu o estabelecimento fui lá cheirar e avisar que o conceito é uma treta e que gourmet a sério é em minha casa, mesmo em frente, porque aqui a comida é muito boa, e gourmet deveria ser isso, mas não estamos abertos ao público. O gourmet - a ver se eu me sei explicar - quer-se da boca para dentro e não da boca para fora, mas não faço concorrência.
Estas lojinhas abrem e infelizmente não vendem nada. São "regionais" porém franchising, very tipical e very vazias, de produtos e clientes. O toque de "qualidade" é dado em palavras "estrangeiras", o que só abona a favor do produto made in Portugal. A loja da minha estrada tinha primeiro uma menina, que passava a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar.
A loja não abria desde que o ano entrou. Pensei que tinha sido o fim. Mas graças a Deus enganei-me, que de desemprego já basta o que basta. A loja reabriu hoje: não está lá a menina, mas um rapaz. Que passa a vida na ombreira da porta a fumar, fumar, fumar. Nas costas, os dois presuntos pendurados no cabide tisicam e agradecem - assim se produz o genuíno fumeiro nacional.
José Duro
Em busca
Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
Ponho os olhos em mim, como se olhasse um estranho,
E choro de me ver tão outro, tão mudado...
Sem desvendar a causa, o íntimo cuidado
Que sofro de meu mal - o mal de que provenho.
Já não sou aquele Eu do tempo que é passado,
Pastor das ilusões perdi o meu rebanho,
Não sei do meu amor, saúde não na tenho,
E a vida sem saúde é um sofrer dobrado.
A minha alma rasgou-ma o trágico Desgosto
Nas silvas do abandono, à hora do sol-posto,
Quando o Azul começa a diluir-se em astros...
E à beira dum caminho, até lá muito longe,
Como um mendigo só, como um sombrio monge,
Anda o meu coração em busca dos seus rastros...
"Fel", José Duro
(José Duro morreu no dia 18 de Janeiro de 1899. Tinha 23 anos.)
sexta-feira, 17 de janeiro de 2014
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Ia morrendo por causa de quatro passadeiras
Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no quentinho do cinema. Mas estávamos em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na TVI, no YouTube, na medalha do 10 de Junho (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas é o menos. Graças a Deus. Respiro. A mãe grita, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada, Ai o carrinho, e o pai berra Olha o carrinho, e dá mais uma puxa no paivante.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.
O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. Mas qual criança?, dizem-me os dois, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem cadeira, Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que mantinha nas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta pelas quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.
quarta-feira, 15 de janeiro de 2014
Se um elefante
- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica.
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica.
terça-feira, 14 de janeiro de 2014
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
domingo, 12 de janeiro de 2014
Rubem Braga
O pavão
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
"Ai de Ti, Copacabana", Rubem Braga
(Rubem Braga nasceu no dia 12 de Janeiro de 1913. Morreu em 1990.)
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
"Ai de Ti, Copacabana", Rubem Braga
(Rubem Braga nasceu no dia 12 de Janeiro de 1913. Morreu em 1990.)
sábado, 11 de janeiro de 2014
Oswald de Andrade
A mulher automática
(De São Paulo) - Qual é o seu cargo?
- Esteno-dáctilo-serpente-contralto-secretária...
- Isso é novidade. Eu ouvi no rádio naquele debate sobre a mulher moderna: esteno-dáctilo-serpente-secretária - A mulher atual!
- Ainda tem mais! Ponha glamour!
- Que é isso?
- Glamour é assim como eu sou. De concurso!
O homem pálido que esperava há duas horas examinou com os olhos a morena iodada no coral solto do vestido, sandálias de purpurina, cabelo lustroso, brincos, balangandãs e pulseiras, um beiço em ciclamen por Salvador Dali.
- O senhor sabe? Comprei ontem um leque que cheira. É formidável! Da América!
A voz grossa trauteou "La vie en rose".
- Dei o fora no meu darling porque ele não me levou à boîte ver o Charles Trenet. Fui com Mister Ubirajara.
- Quem é Mister Ubirajara?
- Acho que é canadense. Um gordo do anúncio. Tem gaita e possui um guarda-roupa perfeito. Dois ternos por dia! Me levou a Santo Amaro num 1950 formidável. Tomámos muitos drinks.
Na ante-sala de móveis mecânicos o telefone ressoou.
- Aposto que é o turco! Deixa tocar... Ele fala "negócio". Quer saber do "negócio" dele. Como se eu estivesse aqui para dar informações!
O telefone insiste.
- O senhor sabe? Um marinheiro contrabandista foi ao meu apartamento levar uns cortes de tropical e uns relógios suíços. Não falava nenhuma língua. Disse por gestos que era marinheiro, da Suíça. Enquanto ele se distraiu bati um relógio-pulseira e pus ele pra fora. Começou gesticulando que faltava alguma coisa. Banquei a boba. O homem falou baiano: - Deixe de besteira moça! Não gosto disso não! Me dá o relógio!
O telefone continuava. Ela arrancou num gesto o fone e berrou:
- Não me encha! Não é aqui!
Desligou violentamente. A voz do outro lado ficou dizendo humildemente:
- Esbéra, mucinha!
- Que esbéra, nada! Se ele ligar outra vez dou o telefone do Cemitério do Araçá. Vou fazer ele falar com defunto!
Houve um silêncio rápido. O homem pálido perguntou:
- A senhora é contralto?
- Sou. O que a mulher tem de melhor é a voz! - gritou desaparecendo numa porta volante. - A voz e a saliva!
"Obras Completas-10", Oswald de Andrade
(Oswald de Andrade nasceu no dia 11 de Janeiro de 1890. Morreu em 1954.)
(De São Paulo) - Qual é o seu cargo?
- Esteno-dáctilo-serpente-contralto-secretária...
- Isso é novidade. Eu ouvi no rádio naquele debate sobre a mulher moderna: esteno-dáctilo-serpente-secretária - A mulher atual!
- Ainda tem mais! Ponha glamour!
- Que é isso?
- Glamour é assim como eu sou. De concurso!
O homem pálido que esperava há duas horas examinou com os olhos a morena iodada no coral solto do vestido, sandálias de purpurina, cabelo lustroso, brincos, balangandãs e pulseiras, um beiço em ciclamen por Salvador Dali.
- O senhor sabe? Comprei ontem um leque que cheira. É formidável! Da América!
A voz grossa trauteou "La vie en rose".
- Dei o fora no meu darling porque ele não me levou à boîte ver o Charles Trenet. Fui com Mister Ubirajara.
- Quem é Mister Ubirajara?
- Acho que é canadense. Um gordo do anúncio. Tem gaita e possui um guarda-roupa perfeito. Dois ternos por dia! Me levou a Santo Amaro num 1950 formidável. Tomámos muitos drinks.
Na ante-sala de móveis mecânicos o telefone ressoou.
- Aposto que é o turco! Deixa tocar... Ele fala "negócio". Quer saber do "negócio" dele. Como se eu estivesse aqui para dar informações!
O telefone insiste.
- O senhor sabe? Um marinheiro contrabandista foi ao meu apartamento levar uns cortes de tropical e uns relógios suíços. Não falava nenhuma língua. Disse por gestos que era marinheiro, da Suíça. Enquanto ele se distraiu bati um relógio-pulseira e pus ele pra fora. Começou gesticulando que faltava alguma coisa. Banquei a boba. O homem falou baiano: - Deixe de besteira moça! Não gosto disso não! Me dá o relógio!
O telefone continuava. Ela arrancou num gesto o fone e berrou:
- Não me encha! Não é aqui!
Desligou violentamente. A voz do outro lado ficou dizendo humildemente:
- Esbéra, mucinha!
- Que esbéra, nada! Se ele ligar outra vez dou o telefone do Cemitério do Araçá. Vou fazer ele falar com defunto!
Houve um silêncio rápido. O homem pálido perguntou:
- A senhora é contralto?
- Sou. O que a mulher tem de melhor é a voz! - gritou desaparecendo numa porta volante. - A voz e a saliva!
"Obras Completas-10", Oswald de Andrade
(Oswald de Andrade nasceu no dia 11 de Janeiro de 1890. Morreu em 1954.)
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sexta-feira, 10 de janeiro de 2014
José Américo de Almeida
Findo o almoço - podiam ser 9 horas - Dagoberto Marçau correu à
janela, que é uma forma de fugir de casa, sem sair fora de portas, como
se o movesse uma grande curiosidade. Mas, debruçado, apoiou o queixo na
mão soerguida e entrefechou os olhos, num alheamento de enfado ou
displicência.
Vivia ele, desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando pára, pára mesmo, como um motor parado.
Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma casa deserta.
Entrava afobado, comia, ou, antes, engolia, de cabeça descaída, o repasto invariável e ou saía de golpe ou ficava a espiar para fora.
A presença do filho recém-chegado, em férias, não lhe modificava essa impressão. Em vez de confortar-lhe o abandono, agravava-o, mais e mais, como uma sombra intrusa.
Lúcio voltou da cachoeira com a toalha enrolada na cabeça, como um turbante.
Levantou o braço num gesto de quem mais parecia dar do que pedir a bênção. E foi, por sua vez, sentar-se à mesa.
Não se defrontavam, sequer, nesse ponto de comunhão familiar, onde as almas se misturam numa intimidade aperitiva. Forravam-se, assim, ao constrangimento dos encontros calados ou das conversas contrafeitas e escassas.
A casa-grande, situada numa colina, sobranceava o caminho apertado, no trecho fronteiro, entre o cercado e o açude.
Num repentino desenfado, Dagoberto estirou o olhar, por cima das mangueiras meãs enfileiradas ladeira abaixo, para a estrada revolta.
Parecia a poeira levantada, a sujeira do chão num pé-de-vento.
Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos - esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam onde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos - doentes da alimentação tóxica - com os fardos das barrigas alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais.
"A Bagaceira", José Américo de Almeida
(José Américo de Almeida nasceu no dia 10 de Janeiro de 1887. Morreu em 1980.)
Vivia ele, desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando pára, pára mesmo, como um motor parado.
Como que cobrara medo ao vazio interior. Não há deserto maior que uma casa deserta.
Entrava afobado, comia, ou, antes, engolia, de cabeça descaída, o repasto invariável e ou saía de golpe ou ficava a espiar para fora.
A presença do filho recém-chegado, em férias, não lhe modificava essa impressão. Em vez de confortar-lhe o abandono, agravava-o, mais e mais, como uma sombra intrusa.
Lúcio voltou da cachoeira com a toalha enrolada na cabeça, como um turbante.
Levantou o braço num gesto de quem mais parecia dar do que pedir a bênção. E foi, por sua vez, sentar-se à mesa.
Não se defrontavam, sequer, nesse ponto de comunhão familiar, onde as almas se misturam numa intimidade aperitiva. Forravam-se, assim, ao constrangimento dos encontros calados ou das conversas contrafeitas e escassas.
A casa-grande, situada numa colina, sobranceava o caminho apertado, no trecho fronteiro, entre o cercado e o açude.
Num repentino desenfado, Dagoberto estirou o olhar, por cima das mangueiras meãs enfileiradas ladeira abaixo, para a estrada revolta.
Parecia a poeira levantada, a sujeira do chão num pé-de-vento.
Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos - esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam onde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.
Vinham escoteiros. Menos os hidrópicos - doentes da alimentação tóxica - com os fardos das barrigas alarmantes.
Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais.
"A Bagaceira", José Américo de Almeida
(José Américo de Almeida nasceu no dia 10 de Janeiro de 1887. Morreu em 1980.)
quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
João Cabral de Melo Neto
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
"O Cão Sem Plumas", João Cabral de Melo Neto
(João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de Janeiro de 1920. Morreu em 1999.)
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos povos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
"O Cão Sem Plumas", João Cabral de Melo Neto
(João Cabral de Melo Neto nasceu no dia 9 de Janeiro de 1920. Morreu em 1999.)
quarta-feira, 8 de janeiro de 2014
terça-feira, 7 de janeiro de 2014
À espera da onda. E depois ela vem.
Foto Hernâni Von Doellinger |
As pessoas gostam de "fotografar o mar quando está bravo e lança ondas furiosas contra o farol", conta o jornal. As pessoas vão de carro e estacionam, passam ali manhãs, tardes, noites, a vida inteira à espera da tal onda para a tal foto. A tal. Para mandar para a TVI e aparecer o nome em rodapé. Um dia a onda vem e é praticamente uma tragédia: "quatro feridos sem gravidade" e "duas dezenas de automóveis"... danificados.
As pessoas estão ali de merendeiro e máquina em punho à espera da onda colossal, do tsunami que arrase a cidade do Porto pelo menos até ao Alto da Maia e que a fotografia seja exclusiva. Vem uma onda mais entusiasmada, e dizem que "ninguém estava à espera que ela crescesse daquela maneira". Estavam, estavam - e gostam de falar aos jornais e às televisões.
Josué Guimarães
Quando Carlos Frederico Jacob Nicolau Cronhardt Gründling desceu o punho fechado sobre a mesa da bodega, fazendo saltar garrafas e copos, sacudindo o candeeiro de óleo de peixe que pendia do teto - berrando que toda a valia do mundo estava no dinheiro, nos patacões de ouro e em tudo aquilo que se pudesse comprar com eles - estava transtornado pela cerveja e certo de que nenhum dos seus compatriotas abriria a boca para contestá-lo. Mesmo porque todos já estavam bêbados. Gründling empinou, já de pé, uma outra talagada de cerveja mal fermentada, gesticulando sempre, com ouro se compra mulher, escrava, branca, mestiça, terra e carroças, se compra gado ou negro, delegado de polícia e até presidente. Sim, senhores, até presidente, sei de casos contados por gente de respeito, dinheiro tirado do bolso do colete e passado pela manga do casaco, feito burlantim. Por dinheiro se faz revolução. Sabem de alguma guerra que não tenha sido feita por dinheiro? Dinheiro corria até nos Tugendhund dos universitários alemães. Bem, vocês dirão, não se nasce com dinheiro. Mas eu pergunto - alguém já conseguiu sobreviver sem dinheiro?
Derreou-se no banco como um saco. Ria frouxo. O riso saía espremido por entre a barba ruiva e fechada, os olhos mortiços raiados de sangue, bigode agressivo bordado pela espuma amarela da cerveja.
- Ouro é o que vale - insistiu no seu bom alemão. - Digo a vocês agora que Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e carregar água. Não há sol que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles têm tais cascos que fazem a inveja de quanta mula existe por aí, da Feitoria às bandas do Uruguai.
"A Ferro e Fogo I - Tempo de Solidão", Josué Guimarães
(Josué Guimarães nasceu no dia 7 de Janeiro de 1921. Morreu em 1986.)
Derreou-se no banco como um saco. Ria frouxo. O riso saía espremido por entre a barba ruiva e fechada, os olhos mortiços raiados de sangue, bigode agressivo bordado pela espuma amarela da cerveja.
- Ouro é o que vale - insistiu no seu bom alemão. - Digo a vocês agora que Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e carregar água. Não há sol que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles têm tais cascos que fazem a inveja de quanta mula existe por aí, da Feitoria às bandas do Uruguai.
"A Ferro e Fogo I - Tempo de Solidão", Josué Guimarães
(Josué Guimarães nasceu no dia 7 de Janeiro de 1921. Morreu em 1986.)
segunda-feira, 6 de janeiro de 2014
Marques Rebelo
Andava, andava, esbarrando nos homens, nas mulheres, como se estivesse embriagada. Andava, andava. Veio-lhe claro como um clarim o desejo de humilhação. Queria se arrastar, pedir perdão, implorar. Lembrou-se da mãe, que fora buscar no recolhimento o consolo para a sua miséria humana. Lembrou-se da igreja do Rosário onde fora batizada, tão redonda, tão pequena, tão linda e dourada. Tinha ido qual fumaça o delírio místico da primeira comunhão aos doze anos... Caiu na realidade - estava perto da igreja. Caminhou contente, depressa, ansiosa por chegar. Sentia já nas narinas o ar confinado da igreja, morno e azedo, nos ouvidos o eco côncavo das naves desertas, nos olhos a obscuridade em que as almas se ajoelham ansiosas de luz. Não, não saberia rezar! Um vento ímpio, que soprou por anos, levara-lhe da memória as confortadoras, mecânicas orações. Mas comporia, inventaria, deixaria sair sem freio do coração as palavras mais espontâneas e humildes, os cantos mais sinceros de fé e de contrição. Deixar-se-ia arrastar pelo... Ah!, e estacou - a igreja estava fechada. [...] O céu não me quer! - e novamente mergulhou na onda humana, caudal de sofrimentos, inquietudes, aflições, incertezas, pecados. Fora arrastada. A tarde caía. A vida esperava-a, era preciso viver. E para viver, era preciso lutar, lutar, lutar - ia ganhando ânimo como um avião que toma impulso no campo para subir - lutar sempre! Um homem lhe sorriu, nos olhos o mesmo desejo de todos os homens. Ainda era moça, muito moça. Ainda...
"A Estrela Sobe", Marques Rebelo
(Eddy Dias da Cruz, que usava o pseudónimo literário de Marques Rebelo, nasceu no dia 6 de Janeiro de 1907. Morreu em 1973.)
"A Estrela Sobe", Marques Rebelo
(Eddy Dias da Cruz, que usava o pseudónimo literário de Marques Rebelo, nasceu no dia 6 de Janeiro de 1907. Morreu em 1973.)
domingo, 5 de janeiro de 2014
Morreu Nelson Ned
Foto Hernâni Von Doellinger |
(Peço desculpa por esta interrupção. Nelson Ned morreu. O programa pode seguir.)
sábado, 4 de janeiro de 2014
Casimiro de Abreu
Meus oito anos
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d’amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias de minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberto o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar!
...................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
"As Primaveras", Casimiro de Abreu
(Casimiro de Abreu nasceu no dia 4 de Janeiro de 1839. Morreu em 1860.)
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d’amor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias de minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberto o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar!
...................................
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
"As Primaveras", Casimiro de Abreu
(Casimiro de Abreu nasceu no dia 4 de Janeiro de 1839. Morreu em 1860.)
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Celso Emilio Ferreiro
Tí e máis eu
(Non falemos dos bobos
que tódolo adeprenden nos libros.
Non falemos dos parvos
con cara de domingo;
nin dos sapientes memos,
nin dos túzaros listos,
nin do eterno mal gusto
dos probes novos ricos).
Falemos de tí e min
xa que vivimos.
Tí i eu nos ventos
e nos solsticios.
Tí i eu nos bosques
e nos ríos.
Tí i eu, historia
de corpos nidios.
Tí i eu, saudade
de álbores íntimos.
Tí i eu sin tempo
polo tempo que imos.
Tí i eu cantando,
chorando e rindo.
Celso Emilio Ferreiro
(Celso Emilio Ferreiro nasceu no dia 4 de Janeiro de 1912. Morreu em 1979.)
(Non falemos dos bobos
que tódolo adeprenden nos libros.
Non falemos dos parvos
con cara de domingo;
nin dos sapientes memos,
nin dos túzaros listos,
nin do eterno mal gusto
dos probes novos ricos).
Falemos de tí e min
xa que vivimos.
Tí i eu nos ventos
e nos solsticios.
Tí i eu nos bosques
e nos ríos.
Tí i eu, historia
de corpos nidios.
Tí i eu, saudade
de álbores íntimos.
Tí i eu sin tempo
polo tempo que imos.
Tí i eu cantando,
chorando e rindo.
Celso Emilio Ferreiro
(Celso Emilio Ferreiro nasceu no dia 4 de Janeiro de 1912. Morreu em 1979.)
Fafe das pessoas
Foto Hernâni Von Doellinger |
Puta da mania dos rótulos, ainda por cima autocolados. Fafe parece que quer ser marca, é o que leio no Blog Montelongo, em mais um oportuno texto assinado pelo António Daniel. Fafe quer ser marca não sei porquê nem percebo com que vantagens. E, confesso, ignoro em absoluto o quer dizer ser marca. Mas Fafe quer ser marca, como se a cidade e o concelho não tivessem coisas sérias para fazer.
Fracativa novidade, é o que lhes digo. Fafe já foi várias "marcas", não se lembram? Foi "Sala de Visitas do Minho" - como se, por exemplo, Guimarães, Braga, Barcelos, Ponte de Lima, Viana do Castelo, Caminha, Ponte da Barca, Arcos de Valdevez, Valença, Melgaço ou Monção não existissem no mapa; foi "Fafe dos Brasileiros" - como se tivéssemos sido nós a descobrir o Brasil, lançando ao mar pelo caminho os incómodos torna-viagem de, por exemplo, Arouca, Ovar, Feira ou Famalicão; foi "Têxtil" por causa do Ferro e do Bugio, como se, por exemplo, Santo Tirso, Covilhã ou o Barreiro estivessem na Andaluzia; foi "da Vitela", até ao dia em que uns maduros que gostam de vestir-se de carnaval fizeram-se em confraria e, supinamente ignorantes, decretaram que a nossa carne deveria avinhar-se em tinto antes de ir ao forno; foi ainda agora "Cidade das Artes", mas foi para a seita do costume, consta-me que Fafe (os múltiplos Fafes dentro de Fafe) nem chegou a tomar conhecimento; as bandas de música tocam pouco e fazem muito barulho, não é só a de Revelhe; e Fafe não pode ser um rali que um maluco de Lisboa diz às vezes que vem e outras vezes que não.
A problemática da marca, se não me engano, é como as geminações: há-de dar para umas belas passeatas, sempre que possível ao estrangeiro, bem comidas e bem bebidas - ou não fôssemos nós fafenses. A imoralidade da coisa é que os moinas são sempre os mesmos.
A minha ideia alternativa é esta: Fafe, assim dito em quatro letras, não existe - os fafenses é que são Fafe. E não creio que se possa pegar nesta gente extraordinária e única, metê-la numa Bimby em truque de marketing e cozinhar a tal marca.
Fafe. Ninguém é dono destas quatro letras senão os fafenses. Os de nascença, os que escolheram, os que estão fora e se importam, mas sobretudo os que estão dentro, mesmo que não se importem. Os que são felizes ou infelizes por morarem em Fafe. Os que sonham e fazem memória em Fafe. O que é que interessa e a quem interessa que Fafe seja marca da boca para fora e com limite em Arões? A marca de que Fafe precisa, suponho, é coisa bem modesta e prática - "Fafe das Pessoas". Que lhes parece? "Fafe das Pessoas". Uma terra que dê aos seus: casa, água, luz, esgotos, saúde, educação, cultura, estradas, transportes, segurança, respeito, dignidade. Qualidade de vida. Isso é que era marca caralho! Emprego é outro assunto: depende da economia. Até porque os "políticos" locais, demagogos de pacotilha, continuam a prometer emprego para todos durante as campanhas eleitorais e depois cumprem a promessa chamando para a mama os respectivos lambe-cus.
P.S. - Se fiz bem as contas, escrevi dezoito vezes a palavra "Fafe", três vezes a palavra "fafenses" e uma vez a palavra "Fafes". É o meu modesto contributo para a marca.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
Mário-Henrique Leiria
Torah
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
"Contos do Gin-Tonic", Mário-Henrique Leiria
(Mário-Henrique Leiria nasceu no dia 2 de Janeiro de 1923. Morreu em 1980.)
Jeová achou que era altura de pôr as coisas no seu devido lugar. Lá de cima acenou a Moisés.
Moisés foi logo, tropeçando por vezes nas lajes e evitando o mais possível a sarça ardente.
Quando chegou ao cimo, tiveram os dois uma conferência, cimeira, claro. A primeira, se não estou em erro.
No dia seguinte Moisés desceu. Trazia umas tábuas debaixo do braço. Eram a Lei.
Olhou em volta, viu o seu povo aglomerado, atento, e disse para todos os que estavam à espera:
- Está aqui tudo escrito. Tudo. É assim mesmo e não há qualquer dúvida. Quem não quiser, que se vá embora. Já.
Alguns foram.
Então começou o serviço militar obrigatório e fez-se o primeiro discurso patriótico.
Depois disso, é o que se vê.
"Contos do Gin-Tonic", Mário-Henrique Leiria
(Mário-Henrique Leiria nasceu no dia 2 de Janeiro de 1923. Morreu em 1980.)
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