Foto Tarrenego! |
Seminário de Braga. Lembro-me de uma Páscoa e a memória até é fácil - foi em 1974 e no sábado do Domingo de Ramos havia Festival da Eurovisão em Brighton, Reino Unido. Era a grande noite, a verdadeira, tempos outros. Os nossos "superiores", como impunham que lhes chamássemos, deixaram-nos ir para a sala da televisão: muito compostos, bico calado, ouvimos as cantigas a preto e branco. Paulo de Carvalho cantou "E Depois do Adeus". Esteve bem, muito bem, Paulo de Carvalho nunca soube cantar mal. Para mim, Portugal ia ganhar. Sem espinhas. Preparei-me para o melhor.
Só que. Já disse: era seminário, Braga e Semana Santa, véspera à noite do Domingo de Ramos. Portanto: só que, na hora da votação, a parte mais emocionante, os do orfeão, à inapelável voz de comando, desatámos a descer por umas escadas de que nem sabíamos e, num lampo, chegámos à rua. Ia passar a procissão. O Paulo de Carvalho que nos desculpasse, mas era a nossa vez de cantar. O estrado com degraus estava montado logo ao pé da porta, no cantinho do Largo de Santiago, defronte do Governo Civil. Cantámos o "Miserere", como mandava a tradição. E era digno de ser ouvido, minhas senhoras e meus senhores: nós cantávamos a cores.
Cantámos numa fervurinha mas como querubins, como querubins apressados, a procissão parou e passou, em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo amém, e toca a galgar a escadaria (que já não era secreta) com o coração aos saltos, quem é que ganhou, quem é que ganhou, mas afinal quem é que ganhou? Foi o Paulo de Carvalho? Foi Portugal? Evidentemente que foi Portugal. Ganhámos, de certeza que ganhámos...
(Ao contrário do que alguém possa ainda pensar, por causa da história das senhas radiofónicas do 25 de Abril, "E Depois do Adeus" é apenas uma notável balada de dor de corno, sem qualquer submensagem política. Muito bem cantada, isso sim, letra de José Niza e com uma orquestração - do maestro José Calvário, também autor da música - do melhor que alguma vez se fez ou virá a fazer no nosso país.)
Mas não. Não ganhámos. Portugal não ganhou e Paulo de Carvalho também não. Ganharam os Abba, com "Waterloo". A nossa canção, "E Depois do Adeus", desenrascou apenas três pontos e ficou em último lugar, empatada com a Alemanha, a Suíça e a Noruega. E vá lá, que a companhia podia ser pior...
Há quase cinquenta anos que ando com esta Páscoa no ouvido. E não por causa dos Abba nem pela bela canção do Paulo de Carvalho. É o "Miserere". O "Miserere" ensinado e dirigido pelo bom padre José Sousa Marques, se não erro no nome, entre nós o Galinhola por causa dos seus meneios e ademanes. O "Miserere" que ainda sei de cor aos retalhos e com o qual, volta e meia, puxando pelo lamentável baixo-barítono que sobrevive dentro de mim, atazano o orelhame do pessoal cá de casa.
As saudades fizeram-me isto: lancei-me à procura do meu "Miserere" no YouTube e não o encontrei. Quem sou eu para desgostar do sublime "Miserere" de Allegri, que está em todo o lado como Deus Nosso Senhor e o novo coronavírus, mas - deu-me para aqui -, de momento o "Miserere" bracarense, completo, integral, pungente, é que me convinha. E não sei dele.
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