O Secónego era uma sumidade arqueológica. Um sábio. Sabia das lendas,
da História, das pedras, das palavras, dos nomes e dos sítios, dos
livros. Sabia das origens todas. Sabia. Estão a ver o José Hermano
Saraiva na televisão? Pronto, o Secónego era a mesma coisa, mas sem
televisão e a sério, com base científica. Ainda por cima, tinha piada fina. O Secónego
comprazia-se em explicar aos seus alunos porque é que a terra de cada um
se chamava como se chamava e porque é que uns eram Silva e outros eram
Lopes. Explicou-me porque é que Fafe é Fafe e eu expliquei-lhe que não
tenho culpa de ser Von Doellinger.
Quando me chegou às mãos, o
Secónego já era um sábio intermitente, com apagões. Era um homem
precocemente envelhecido e debilitado. De vez em quando desligava e isso
fazia-me uma enorme impressão. Lembro-me que nessas alturas me apetecia
chorar. Que injustiça para uma cabeça assim. Filhadaputice que ele não
merecia, era o que eu achava e depois ia confessar-me, porque achar
filhadaputice, fosse de que espécie fosse, era pecado no seminário.
Por
falar em filhadaputice (e vão três), havia umas "brincadeiras"
institucionalizadas para as aulas do Secónego. E os coninhas, que,
borrados de medo, até respiravam pelas orelhas frente aos outros
professores, pintavam a manta com o Secónego, numa coragem cobarde que
ainda hoje me mete nojo. Eu também não era nenhum santo - e certamente
por isso (e por achar filhadaputices a torto e a direito) é que me
mandaram dar uma volta -, mas, para mim, as aulas do Secónego eram
sagradas. Eram as únicas em que eu não mijava fora do penico. Por pena.
Quem me dera que tivesse sido por respeito.
Um dia o Secónego
desligou-se o interruptor em plena aula. De repente ficou ali, sentado à
secretária, olhando o nada, obviamente esquecido de nós e dele, e dizia
apenas "Leia, menino", apontando para ninguém. E nós lemos, mandei eu, e
mandei também chamar quem o tirasse dali. Lemos: três ou quatro de nós,
uns atrás dos outros, passando a Selecta de mão em mão, Vaiamos, irmana, vaiamos dormir nas ribas do lago, u eu andar vi a las aves meu amigo.
E lemos a cantiga até ao fim e voltámos ao princípio, uma e outra vez,
numa lengalenga interminável, e tanto fazia quem lesse, eram as minhas
ordens, porque eu sentia que o som das nossas vozes apaziguava a alma
cansada e ausente do velho professor. E isso era preciso.
Depois levaram-no.
O Secónego tinha uma casa creio que à borda da estrada que sobe da
cidade de Braga para o Bom Jesus. Padres mais novos diziam-lhe, no gozo:
"Ó Secónego, que pena, uma casa tão bonita e quem por ali passa de carro só lhe vê o cume". E ele: "Pois, mas isso é à ida, menino. À vinda nem o cume vê"...
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Julho de 2013. O Secónego era o cónego Arlindo Ribeiro da Cunha, autor, entre outras obras, de "A Língua e a Literatura Portuguesa" e de uma "Gramática Latina" que chegou à sétima edição. Vimaranense de São Torcato, é nome de rua em Braga.
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