sábado, 4 de março de 2017

Eugénio de Castro 3

O Amor e a Saudade

O Amor teve uma filha à qual chamou Saudade.

Vendo-a crescida
Vendo-a na idade
De entrar na vida,
Disse-lhe assim um dia:

"Envelheci; no meu jardim cai neve...
Já sinto a alma fria,
E no corpo entrará também o frio em breve...

De noite vejo só negrumes de ataúdes;
Tudo é Inverno para mim; Abril, acho-o grisalho...
Velho e doente, é justo, filha, que me ajudes
No meu trabalho.

Auxilia-me, pois! Quando os amantes,
O seio contra o seio,
Enleados estão em tão suave enleio,
Que as longas noites tomam por instantes,
Ao pé deles me querem sempre, e assim,
Se para deixá-los, já cansado estou,
Começam a chamar por mim,
A perguntar-me para onde vou...
Nunca me deixam, nunca estou tranquilo!

Como o trabalho é rude, de hoje em diante.
Devemos reparti-lo,
Que eu já me sinto fraco e vacilante...
De hoje em diante, irei deitar os namorados,
Mas tu, Saudade, junto deles ficarás,
E ao chamarem por mim, em gritos sufocados,
Fingindo a minha voz, tu lhes responderás...

Fazem-me louco as noites mal dormidas,
E assim já poderei dormir um pouco,
E recobrar até as minhas cores perdidas...
Vamos! O velho sol já se extinguiu
E a lua branca rompendo vai..."

E a Saudade partiu
Atrás do Pai...

Desde essa noite azul, ébrios de pasmo e dor,
Os que se beijam com ansiedade
Adormecem ao pé do Amor
E acordam junto da Saudade... 

Eugénio de Castro 

(Eugénio de Castro nasceu no dia 4 de Março de 1869. Morreu em 1944.)

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