sábado, 31 de dezembro de 2016

Um ano negro para os artistas (Portugal, 2016)

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

O mundo estremece de comoção. E, se o mundo estremece, Portugal abana. Que tragédia, que cataclismo, que ano negro! Em 2016 morreram, entre outros famosos mais-ou-menos, Prince, David Bowie, Leonard Cohen, George Michael, a Princesa Leia, e Bob Dylan ganhou o Prémio Nobel da Literatura.
A comunicação social portuguesa está em choque: um annus horribilis para os artistas, Deus nos abençoe e guarde! E escreve-se, e escreve-se, e escreve-se...
Ora, artistas - em bom e antigo português - são também os nossos trolhas, os nossos pedreiros e os nossos carpinteiros, por exemplo. Artistas, assim se dizia e eu continuo a dizer. Conversei há bocadinho com Albano Ribeiro, o eterno presidente do Sindicato da Construção de Portugal, que me contou o seguinte:
Trinta e nove (39) operários da construção civil morreram a trabalhar, em Portugal, no ano que hoje termina. E, em quatro meses, morreram seis (6) trabalhadores portugueses em obras por essa Europa fora, número grande em tempo de drástica redução de empreitadas.
Albano Ribeiro queria falar com os senhores jornalistas acerca deste e de outros assuntos relativos aos nossos artistas. Convidou a comunicação social portuguesa para uma conferência de imprensa que devia ter sido ontem. Ninguém apareceu.

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 23

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

A ignorância faz bem à pele e as bifanas também. Fui tratar da renovação do cartão do cidadão e, é preciso ter azar, correu tudo bem. Despacharam-me em menos de um quarto de hora. Eu contava passar a tarde inteira refastelado numa das cadeiras partidas das instalações de Alferes Malheiro, embora tivesse marcado para as catorze um encontro com o Lopes e com as bifanas da Conga, mas ainda não era meio-dia e já me despejava no meio da rua sem saber o que fazer com os seguintes cento e vinte e tal minutos da minha vida. É isto, desabituei-me de ir à Baixa do Porto...
Ameaçava ameaçar chover. Vi uma daquelas livrarias de campanha montada mesmo à frente do meu nariz, no largo da estação de metro da Trindade, e entrei. Lá dentro, o refugo do costume ao habitual preço da uva mijona, nada de razoavelmente interessante, mas às vezes nunca se sabe...
Uma simpática funcionária, diria entre os trinta e muitos e os quarenta e poucos, abeirou-se-me e perguntou, de sorriso engatilhado:

- Posso ajudá-lo?
- Ando só a ver, muito obrigado. Mas, já agora, diga-me, por favor: tem alguma coisa do Montalbán?
- De quem?
- Do Vázquez Montalbán, histórias do Pepe Carvalho...
- Quem?
- Pepe Carvalho.
- Saiu este ano?
- Não. No geral, são livros já com uns anitos...
- E o género?
- Policial, talvez. Mas dizer policial é dizer muito pouco. Policial literário e gastronómico, se for possível, e de repente não sei dizer melhor...
- Pepe Carvalho? Esse autor acho que não temos.
- Desculpe. O autor é Manuel Vázquez Montalbán. O herói dos livros é que se chama Pepe Carvalho, detective privado, uma espécie de Sherlock Holmes espanhol, mas versão séculos XX-XXI.
- Então é conhecido em Espanha...
- Acredito que sim, e em Portugal também. E no resto do mundo, se calhar. Não é que seja abonatório por aí além, mas até já fizeram filmes de um ou dois livros do Montalbán, quer ver?

Resolvi ser eu a ajudar a solícita porém desinformada funcionária. Ando exactamente a reler a Série Pepe Carvalho que as Edições ASA em boa hora começaram e em má hora interromperam, após a eucaliptal intervenção da Leya. Fui à mochila e saquei o "Assassinato no Comité Central", que por acaso acabei ainda na espera desse princípio de tarde. Expliquei à senhora:

- Vê?
- Ah! Montalbán é que é o autor. Eu estava a perceber que Pepe Carvalho é que...
- Esta era uma belíssima colecção da ASA que infelizmente...
- Ah! Livros da ASA não tenho.
- Mas Montalbán já foi publicado em português por outras editoras, pelo menos pela falecida Regra do Jogo e pela Caminho, se não me engano, há até uns livrinhos de bolso, tenho um, "As Termas"...
- "Assassinato no Comité Central", esse aí... 
- Olhe, foi um dos que deram filme. Neste, quem faz de Pepe Carvalho no cinema é, veja lá, o Patxi Andión...
- Quem?
- O Patxi Andión, o famoso cantor espanhol, o cantautor, o poeta, o escritor...
- Não estou a ver...
- Então, o Patxi Andión, ainda outro dia esteve aqui na Casa da Música...
- Não, não conheço. E até gosto de música espanhola, mas não da música pimba...
- Minha senhora, o Patxi Andión...

Ia gastar mais um pouco do meu atamancado latim para explicar à gentil funcionária quem é Patxi Andión, mas desisti. Preferi ser agradável e mentir com quantos dentes tenho, e são todos menos os sisos inferiores. Disse:
- ... Pois, evidentemente a menina é nova demais para conhecer o Patxi, o Pepe e o Montalbán. A menina é de uma geração tipo mais... tipo.
- Ai não se deixe enganar pela aparência. Estou é muito bem conservada... - devolveu-me a amável funcionária, enfim sorrindo, e corando de satisfação e vaidade.

Cientificamente provado: a ignorância faz bem à pele. Por outro lado, as bifanas estavam di-vi-nais, como diria o meu irmão Nelo. E o Lopes, que parece que é bruxo, trouxe-me "O Seminarista", de Rubem Fonseca. "O Seminarista"! Só tenho quem me goze...

Se um elefante...
- E tive assim tipo uma reacção pélvica, passei-me...
- Reacção quê?
- Pélvica. Tipo à flor da pele, tás a ver? Pélvica.
- Queres dizer epidérmica?
- Não, essa cena é dos elefantes. Pélvica. Diz-se pélvica. Dããããã!...

Depois contas-me...
- Vens ver o fogo-de-artifício?
- Não, vai tu. Depois contas-me... 

Lugares-comuns 488

                                                                                                            Foto Hernâni Von Doellinger

Junqueira Freire

O apóstata
(Canção do católico)

Não sentes por sobre a face,
Como um raio inopinado,
Esse anátema sagrado,
Essa férrea excomunhão?
Não sentes a espada nua
De Roma no teu semblante,
De Roma, - eterno gigante,
Sustendo infernos na mão?


Ah! triste, perjuro infame,
Que esqueces esse legado,
Santa herança do passado,
Santa crença de Jesus!
Que a negras voragens desces,
E julgas que ao céu te elevas!
Que por turbilhões de trevas
Trocas um reino de luz!


Ah! triste, que te abismaste
Num precipício insondável
Com esse orgulho execrável
Que Lusbel inspira aos seus!
Que duas vezes perdeste
Esse domínio sagrado,
Paraíso resgatado
Co’o sangue puro de Deus!


Ah! triste, que espedaçaste,
Com sacrilégio altanado,
O juramento prestado
Junto à fonte batismal!
Co’o perjúrio que fizeste,
Tu, infante estremecido,
Cravaste um punhal buído
No coração paternal!


Ah! triste, que te desgarras,
De queda em queda passando,
Como do monte rolando
Costuma a pedrinha vir.
Ah! onde, cristão perjuro,
Parará teu baque infindo?
Ou irás sempre caindo
De um em outro nadir?


Ah! triste, que insano clamas,
Com teus sofismas cruentos,
Que de livres pensamentos
Precisa o espírito teu!
E com Lutero te abraças,
Tu, apóstata ignorante,
Na convicção protestante,
Prelúdio certo do ateu!


Vai, apóstata, perjuro,
Com esse raio gravado,
Esse anátema sagrado,
Essa férrea excomunhão!
Não sentes a espada nua
De Roma no teu semblante,
De Roma, - eterno gigante,
Sustendo infernos na mão?


Junqueira Freire

(Junqueira Freire nasceu no dia 31 de Dezembro de 1832. Morreu em 1855.)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 22


O quinteiro. O meu querido tio Zé de Basto lembrou-me ontem a palavra quinteiro, e aos anos que eu já não a ouvia. Quinteiro. Querem saber o que é? De acordo com os melhores dicionários, quinteiro, entre outros significados que não vêm aqui ao caso, será uma recinto descoberto e com estrume, junto à casa do lavrador. Digamos: um eido. Evidentemente o meu acidental e citadino leitor também precisará de saber o que é estrume. Pois bem: estrume é, voltando ao dicionariozinho, a mistura fermentada dos dejectos dos animais domésticos com a palha, o mato, as ervas e as ramagens que lhes servem de cama. Esta mistura de merda fedia a olhos vistos e servia como adubo orgânico das terras. Creio também que, se exageradamente snifada, poderia ser mortal. Por outro lado, os frutos da terra que então comíamos eram bons e sabiam. E era só isso que eu queria dizer, não me esqueci de palavras nenhumas: sabiam.
Portanto, estrume é esterco e é feito na estrumeira. A estrumeira é o quinteiro, isto é, o eido ou aido, consoante a região, mas estejam descansados que eu não volto ao princípio da história...

O meu tio Al Pacino. Eu tenho um tio que se parece com o Al Pacino quando o Al Pacino parece bem. O meu tio Zé de Basto não é actor e nunca foi a Hollywood. É um mestre pedreiro de mão cheia, arte que herdou do pai, o meu avô Bernardino, e tentou duas vezes a emigração, em Inglaterra e em França, mas não se deu. As saudades matavam-no. Saudades da mulher, a querida tia Margarida, do sino da igreja de Passos, das leiras suadas mas generosas, da comida feita à lareira, dos amigos do peito, de uns tiros às perdizes, de umas boas malgas de vinho verde e sobretudo dos filhos, duas "moças" e dois "moços" que lhe enchem o coração.
Eu e o meu tio Zé de Basto, que trato por você e a quem peço a bênção, fazemos pouca diferença de idade. Ainda fomos parceiros de aventuras durante os dias das férias grandes que eu, em miúdo, passava na aldeia. Ele era já um rapazola. E juntos éramos um desastre.
Foi o meu tio quem me ensinou a andar de mota de pau, o que correu muito bem e até nem lhe deu grande trabalho, porque, se não sabem ficam agora a saber, nas motas de pau não se anda, cai-se. E eu nasci para aquilo: era trambolhão de criar bicho.
O meu tio largava-me carreiro abaixo e ao fim de dois metros eu já tinha deixado a mota para trás, enrodilhado em séries de espectaculares e descontrolados vira-cus que só acabavam lá no fundo da ribanceira, com as costas espetadas numa árvore e a mota a cair-me em cima e em cheio, de rodas para o ar, a girarem, a girarem, como nos filmes...
Eu punha-me a pé no meio de uma nuvem de pó, zonzo, pronto a chorar, com a boca cheia de sangue e de terra, os joelhos a discutirem com os cotovelos quem é que estava mais esfolado, e o meu tio só se ria lá de cima. O que é que eu havia de fazer? Ria-me também. Vinham buscar a mota para o local de partida e lá ia eu outra vez de cangalhas até bater na árvore que já me conhecia de ginjeira, e quando íamos dois ainda era pior.

O Al Pacino não conhece o meu tio Zé de Basto. Calha bem, porque o meu tio Zé de Basto também não conhece o Al Pacino. Por aí, estão ela por ela. Onde o meu tio fica a ganhar ao americano é no alambique. Exactamente. O meu tio tinha um extraordinário alambique, onde queimava o vinho estragado da vizinhança, e fazia uma aguardente tão medonha que era um sucesso. As autoridades fecharam-lhe o alambique. Acho que mais do que uma vez. E sendo certo que, no seu tempo, Al Pacino também não destilava nada mal, a verdade é que não me consta que tivesse um alambique.
Ao contrário do outro Al Pacino, o meu tio Zé de Basto nunca ganhou um Óscar. Mas merece o Nobel. Foi ele quem inventou uma talhadura de infalibilidade papal para curar bebedeiras, sejam elas de que tamanho forem. O revolucionário método, experimentado e comprovado pelo meu próprio tio, consiste basicamente em arriar as calças e chapinar o traseiro na água fresca de uma levada. A versão urbana, descartado o uso do rio Douro ou do oceano Atlântico, por questões de segurança, passará inevitavelmente pelo bidé, devendo juntar-se gelo à água do cano, para recriar as condições naturais do tratamento original. E é remédio santo.

O meu tio Zé de Basto é um homem geralmente feliz, às vezes austero e honrado sempre. Teve sorte com os filhos que tem. Ele e eu também somos compadres, baptizei-lhe o rapaz mais velho: é "o nosso Nane" como eu. E é como compadres que gostamos de nos abraçar, "Eeehhh compaaaaaaaadre!!!...", com umas valentes palmadas no lombo, quando nos reencontramos. E eu gosto muito de abraçar o meu tio Al Pacino.

Lugares-comuns 487

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Nogueira Tapety

Pesadelo atroz 

Mal sabe ela que todo este desregramento
é o véu sob o qual minha tortura oculto,
Pois quem vive como eu de tormento em tormento
Necessita viver de tumulto em tumulto...

O que eu busco ao bordel é a paz do esquecimento,
Mas na noite do vicio em as mágoas sepulto,
Como um ralo a luzir, de momento a momento,
Fere-me o pensamento o clarão do seu vulto.

Foi o vício o recurso extremo, o último apelo,
Que lancei, torturado, ao rumores do mundo,
Para me libertar deste amargo desvelo.

E quanto mais me excedo e em rumores me afundo,
Mais se arraiga em minha alma este atroz pesadelo,
Este afeto infeliz cada vez mais profundo.


Nogueira Tapety

(Nogueira Tapety nasceu no dia 30 de Dezembro de 1890. Morreu em 1918.)

Lugares-comuns 486

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Luís da Câmara Cascudo

Nós somos as belezinhas... 

Ano passado, no Carnaval, tive a honra de assistir à passagem de um grupo de foliões vestidos de mocinhas, saia azul, casquete de suspensório, soquetes nos pés e lacinho róseo, amarrando-lhe a cabeça inspirada. Esquecia-me de ajuntar que as bocas tinham os lábios pintados de batom e havia rodas de "rouge", forte como placas de tomates, nas bochechas sorridentes, jiga-joga aperitival, trejeitos alusivos ao sexo imitado. O grupo desfilou saracoteando, balançando quadris, em tão gostosamente cantando, cantando, cantando.
Gosto não se discute. Vamos respeitar esses rapazes maiores de 26 anos que se divertem semelhando exteriormente moças, meninas e mulheres. Deixemos que a pele de ovelha não dê ao lobo o temperamento do animal deliberadamente simulado. Parece que o estribilho da canção entoada pelas bocas besuntadas de vermelhão afirmava, candidamente:
- Nós somos as belezinhas!...
[...]

Luís da Câmara Cascudo

(Luís da Câmara Cascudo nasceu no dia 30 de Dezembro de 1898. Morreu em 1986.)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 21

                                                                                                                                         Foto Hernâni Von Doellinger

Serviço pago no acto. Há aquele sugestivo aviso à porta dos cafés que cada vez mais se espreguiçam até à rua: "Serviço de esplanada pago no acto". No acto. E ponho-me a imaginar o solícito empregado - de casaco branco, toalhete no braço, bandeja na mão e com a outra a fazer festas ao bolso das calças sebentas e pretas - ali à espera que o casalinho termine...

Troco neto por um cão (pago a diferença). Três rapazes nos arrabaldes dos sessenta anos bem servidos, certamente amigos de longa data, gente bem, meninos da Foz no seu tempo, fazem o costumeiro passeio higiénico matinal na avenida à beira-mar. O da esquerda empurra um carrinho de bebé com uma vaidade que só vista, e é bonita de se ver. Os outros dois vão à rasca até às orelhas, envergonhadíssimos com "a situação", evitam ser reconhecidos por quem passa, como eu, que não os conheço de lado nenhum, mais desconforto era impossível. O da direita puxa o do meio pela manga e diz-lhe, tapando a boca com a mão, como fazem agora os treinadores e jogadores de futebol quando querem falar da mãe de alguém: - Se inda ao menos fosse um cão, um cãozinho! Agora o caralho do neto...

P.S. - Não é metáfora política. É a vida.
 
Só para ter a certeza
- É pá, estás todo empenado. O que é que foi isso?
- Um torcicolo...
- Onde?

Desce, desce, balão desce
- Ó patego, olha o balão! - alguém disse.
- Aonde?, aonde?... - perguntou o patego.  

Redacção (exactamente: cção). A televisão é muito importante. Gosto de ver na televisão as redacções das televisões porque nas redacções das televisões que dão na televisão não há cadeiras partidas. Trabalhei em muitas e variegadas redacções, na rádio e sobretudo na imprensa, mas nunca na redacção de uma televisão.
Nas redacções onde eu trabalhei as cadeiras eram todas mancas e andávamos à pancada por uma que se segurasse mais ou menos. O sobrevivente marcava a sua cadeira para toda a vida, mas quando virava costas já ela estava debaixo do cu do lado. E andávamos outra vez à pancada. Foi por isso que, quando chegou a altura, estávamos sem forças para irmos às ventas dos bandalhos que fazem profissão de destruir redacções e que têm cadeiras da televisão. Feitas de cortiça.
A televisão é muito boa porque dá na televisão. Eu gosto muito da televisão. 

Lugares-comuns 485

                                                                                                               Foto Hernâni Von Doellinger

Alves Redol 4

Viajar

Viajar é correr mundo,
voar mais alto que os pássaros
ou pisar o chão da terra
ou as ondas do mar alto...
É ver bichos
de muitas cores e feitios,
montanhas,
rios,
e ribeiros
e pessoas
e lugares...
Conhecer e descobrir,
inventar e duvidar,
sabendo cada vez mais,
sem nunca pensar que basta
o mundo que se conhece.
E alargá-lo com amor
dentro de nós e dos outros.


"Uma Flor Chamada Maria", Alves Redol

(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em 1969.)

Lugares-comuns 484

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Gustavo Barroso

Um touro grande, cor da treva, de aguçadas pontas ligeiramente recurvas. Chamava-se Azulão, como o pássaro do mesmo nome, que também e negro. Talvez o apelido lhe viesse dos reflexos espelhantes do pêlo à luz do sol, que às vezes davam levemente a impressão do azul. Animal bonito e, sobretudo, famoso. Conhecia-o de nome o sertão todo, como o mais terríivel e mocambeiro novilho dos que o coronel Paulo deixava amontados pelas senotas, a fim de prometer prêmios aos vaqueiros que os trouxessem mortos ou vivos, quando o tempo, a perseguição e a liberdade os tornavam verdadeiras feras.
Todos os anos, após a ferra do gado, o grande fazendeiro escolhia um novilhote entre os mais possantes e dava ordem para abandoná-lo nas catingas aos seus instintos. O animal ficava selvagem e ele tentava a vaqueirama das ribeiras próximas a dar-lhe caça. O vaqueiro que lhe trazia a "bassoura" do barbatão morto a tiros, ou o próprio pegado a laço derrubado a "mussica" recebia cinco patacões de velha prata portuguesa e divertia-se em grande festa, na fazenda, durante a qual os melhores cantadores o louvavam ao pé da viola. Havia quarenta anos que o coronel se dedicava a esse folguedo, começado logo que herdara as terras do pai, aos trinta de idade. Mas nunca espicaçara os sertanejos dos arredores atrás de bicho mais terrível que o Azulão.

"Alma Sertaneja", Gustavo Barroso

(Gustavo Barroso nasceu no dia 29 de Dezembro de 1888. Morreu em 1959.)

Lugares-comuns 483

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Osvaldo Orico

- Que fazeis pr’aí, homem de Deus? Não tens em que entreter-se hoje? E aquele mato que está por queimar? E o monturo dos fundos, quem vai remover? Onde já se viu semelhante preguiça?
Era a voz do feitor, correndo do pátio da fazenda o pobre do Pancho. Pancho Papaterra, como ele o chamava, só porque o rapaz tinha a cor parda do solo e vivia com os pés metidos na lama, como um boneco de barro. Seu derivativo, para espairecer das fadigas do trabalho, era vir espiar Cholita, inclinada no bastidor de bordado com um ar de estampa antiga. Era a sua debilidade. Um momento de folga, um minuto de distração do ferrabrás, e lá vinha o Pancho para junto do alpendre extasiar-se ante a presença da moça, colorindo os olhos baços com aquela pintura, molhando a vista naquela paisagem. Cholita era fria, indiferente, mas sem crueldade. Consentia naquela adoração distante, deixando-se surpreender e admirar pelos olhos fascinados de Pancho:
- Pobre! Deixá-lo pr’aí... Que mal poderá resultar disso? Seria impiedade enxotá-lo quando lhe dá a mania.
Por ela, ficaria por ali quanto tempo quisesse. Não lhe queria mal, apesar dos olhos súplices com que a espreitava, uns olhos ternos na aparência, mas no fundo desejosos. Não podendo revelar a cobiça, refletiam a humildade.

"Marabaxo, Contos", Osvaldo Orico

(Osvaldo Orico nasceu no dia 29 de Dezembro de 1900. Morreu em 1981.)

A ver navios 117

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Jáder de Carvalho

Eternidade

No começo, era simples brincadeira.
Mas foi crescendo pelo tempo em fora.
Se já deu sombra pela vida inteira,
como tem fruto e ritmos agora!

Creio que te falaram, companheira,
de uma árvore humaníssima e canora,
dessas que se debruçam, sem canseira,
sobre o perdido viajor que chora...

Hoje, eu te falo deste amor que, um dia,
sem reticências e sem falsos brilhos,
nasceu da nossa mútua simpatia.

Ele, decerto, pelos tempos há de
guardar, na morte, para os nossos filhos,
a sombra da ternura e da saudade...


"Água da Fonte", Jáder de Carvalho

(Jáder de Carvalho nasceu no dia 29 de Dezembro de 1901. Morreu em 1985.)

Lugares-comuns 482

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Augusto Fera 4

Cravos para São Bento

Como solheira ao relento
A luz da fé popular
Vai a casa de São Bento
Pelo braço do luar.

Das caleiras das quebradas
Desaguam procissões
Com charolas de braçadas
De cravos e de orações.

Quem olha para os carreiros,
Por entre os pinheiros bravos,
Até julga que os pinheiros,
Em vez de pinhas, dão cravos.

São Bento da Porta Aberta,
O povo sabe onde ficas,
Porque para o mal que aperta
És a melhor das boticas.

Quando a virgem madrugada
Ainda sonha com astros
Já a fé bem acordada
Traz os joelhos de rastros.

No meio de tanto cravo
Até o rei dos ateus
Dá cinza morta ao Diabo
E língua de fogo a Deus.

No rio Caldo me lavo
Do pecado poeirento
De tão tarde dar o cravo
Do coração a São Bento.

São Bento da Porta Aberta,
O povo sabe onde ficas,
Porque para o mal que aperta
És a melhor das boticas.


"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera

(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 20

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

E um grande tenkiu para ti também, pá. De manhã eu vou ao peixe. Cada vez mais de manhãzinha. E ontem de manhã, de manhãzinha, estava um camone numa das duas mesas de passeio de um daqueles pequenos cafés à beira da lota de Matosinhos. Vi que era camone à distância, por causa da enorme mochila que lhe descansava ao lado e do mapa na mão que ele olhava e revirava, e percebi logo que não me ia safar. Tenho cara de posto de turismo encerrado para obras, não é para me gabar, e eu que ia ao carapau, saiu-me o bife, se me permitem o chiste de carregar pela boca.
Que se passou? O camone viu-me sem mapa e também de mochila às costas (a verdade é esta, eu não sei andar sem mochila, parece que me desequilibro sem ela) e portanto achou que eu é que sabia. Perguntou-me então du iu spikinglixe? E eu respondi-lhe o que sempre respondo aos gringos que me interpelam em Portugal: e tu, sabes falar português?... 

Nada se compara ao poliglotismo português. O turista estrangeiro aproximou-se do vendedor de óculos de sol de beira de praia. Era obviamente um turista estrangeiro, só eu e os turistas estrangeiros é que sabemos malvestir assim, nunca me engano a esse respeito. O vendedor de óculos de sol de beira de praia é português dos quatro costados, conheço-o muito bem, há anos, monta banca todos os dias ali em baixo e quando chove é vendedor de guarda-chuvas de beira de praia. É, além disso, ambulante, mas apenas para fugir aos fiscais e à polícia. Ele também percebeu logo que o freguês que tinha pela frente era estrangeiro. Mas pensam que se atrapalhou?, era o que faltava! Nós os portugueses temos connosco esta habilidade extraordinária de nos desenrascarmos sempre, seja em que situação for, cá em casa ou lá fora, mesmo debaixo de água, aprendemos línguas, copiamos hábitos, possuímos este poder de desenrascanço, improvisação e adaptação, que tomaram muitos, até os Alemães, e que fez de nós um povo das sete partidas do mundo por excelência. Bem, com estas tretas todas, esqueci-me do que queria contar...
Ah!, já sei: o turista estrangeiro. Portanto, o turista estrangeiro abeirou-se do vendedor de óculos português e perguntou: - The glasses, how much?... (Estão a ver como eu tinha razão?).
Foi um clique, um cagagésimo de segundo bastou para que o rapidíssimo cérebro do nosso vendedor formatasse "é inglês, pois então vamos a isso" e mudasse imediatamente de registo, fazendo um entre parênteses na língua do Camões. Cheio de segurança e poliglotismo, respondeu ao camone, marcando ostensivamente as sílabas: - Quali? Quali qui quieres?...

A insondável diferença entre espetador e espetador. Qual é a diferença entre um espetador e um espetador? Numa tourada, por exemplo, o que é que distingue os espetadores dos espetadores? Uns pagam bilhete e os outros fazem os touros pagá-las, é isso, não é? E espetadores de gelo: são adereços muito jeitosos para filmes de suspense ou uma audiência que não reage, por melhor ou pior que a fita seja? O que devo pensar quando leio um título de jornal que me diz que "Acidente em rali francês provoca a morte a dois espetadores"? E, já agora, no voyeurismo, quem é o verdadeiro espetador: o que fica a ver ou o que copula?

Lugares-comuns 481

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Inglês de Sousa 4

Mas vinha o pateta do Felisberto com a sua habitual tagarelice, e desmoronava aquele tão bem arquitetado edifício da reputação do Padre Antônio de Morais, precioso tesouro guardado no meio da abjeção em que caíra. O missionário ia ser abatido do pedestal que erguera sobre as circunstâncias da vida e a credulidade dos homens, e, angústia incomparável que lhe causava o triste clarão da condenação eterna surgindo de novo quando se rasgava o véu da consciência - a inconfidênca de Felisberto vinha até impossibilitar ao Padre o arrependimento, com que sempre contara como o náufrago que não deixa a tábua que o pode levar à praia. Como arrepender-se agora que a falta era conhecida, que o prestígio estava reduzido a fumo? Iria buscar a morte às aldeias Mundurucoas? Ninguém acreditaria que um Padre devasso e preguiçoso pudesse sinceramente fazer-se confessor da Fé e mártir de Cristo, e se viesse a morrer naquelas aldeias, não celebrariam o seu nome como o de um missionário católico que a caridade levara a catequizar selvagens, mas todos atribuiriam a tentativa a uma curiosidade torpe, se não vissem no passo uma mistificação nova, encobrindo a continuação da vida desregrada do sítio da Sapucaia.

"O Missionário", Inglês de Sousa

(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)

Os passarinhos, tão engraçados 10

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Armando Cotarelo Valledor

LUMIA.- Sería o urco, o can do mar.
MADANELA.- ¿O urco é malo? Pois era él.
LUMIA.- Din que o urco é un can mui grande que en noites pechas sae do mar, e vai por
rúas e por congostras oubeando con outros cáns que acoden á lle dar escolta. Leva unha
cadea arrastro. Por veces detense, e todol-os máis fanlle roda, calados.

MADANELA (esterrexendo).- ¡Qué medo!...
LUMIA.- Cousas de rapaces.

"Mourenza", Armando Cotarelo Valledor

(Armando Cotarelo Valledor nasceu no dia 28 de Dezembro de 1879. Morreu em 1950.)

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 19

                                                                                                                                      Foto Hernâni Von Doellinger

Andante con moto. O segundo andamento da 5.ª Sinfonia de Beethoven, dita Sinfonia do Destino, ou, só para complicar, melhor chamada Sinfonia n.º 5 em Dó menor Op. 67, deve ser tocado em Andante con moto. Isto é, pede-se um ritmo lento, como se fôssemos nós apenas a caminhar, naturalmente, um passo e depois outro, mas com o cuidado de não adormercermos de pé. Andante, sim, porém con moto. E isto é apenas um por exemplo.
Por outro lado, se o enxame de tuk tuk (ou auto-riquexós) que, uber dissimulados, tomaram conta das ruas do Porto e cidades adjacentes deixasse de ser só para turistas e fosse, não sei como, integrado no sistema de transportes públicos da chamada Área Metropolitana, e que jeito que daria, já tínhamos um nome para a coisa: Andante con moto, exactamente. Mas isto é apenas outro por exemplo dos meus.

P.S. - Sim, a Área Metropolitana, como todas as áreas, grandes e pequenas, localiza-se obviamente no último terço do terreno.

Mataram os vizinhos. Agora somos condóminos. Éramos vizinhos, lembram-se? E a palavra vizinho queria dizer coisas boas: proximidade, amizade, companhia, ramo de salsa, comunidade, confiança, solidariedade, conversa no passeio à noite, copinho de vinho novo, cumplicidade, visita ao hospital, dar a camisa, porta aberta, comadre, quase família, melhor que família, tu cá, tu lá. Agora somos condóminos. E a palavra condómino tem uma carga que é um pesadelo: propriedade, despesa, individualidade, indiferença, reunião, ausência, chatice, discussão, impessoalidade, porta fechada a sete chaves (três, pelo menos), queixinha, fracção, má-língua, elevador, o tempo, bom dia e boa tarde, eu cá, tu lá.
E é irónico. Há quase trinta anos que eu sou um condómino exemplar, um condómino da melhor pior espécie, mas hoje deram-me as saudades de ser vizinho. Sei que já vou tarde. Estamos todos condenados a sermos condóminos para o resto das nossas vidas. Se ainda ao menos fôssemos conDominus nobiscum...

A falta de ar é opcional. As pessoas vivem fechadas em caixotes. Em caixinhas dentro de caixotes. E cada caixinha tem um respiradouro chamado varanda. E as pessoas fazem marquises.

Minha varanda, meu castelo. No prédio onde eu moro, o meu apartamento é o único que não tem marquise ou paramarquise na varanda. Dá nas vistas, é verdade, destoa, e todos os dias tenho a caixa de correio assediada por uns quantos panfletos em quadricromia e papel couché que me oferecem o sufoco a xis euros o metro quadrado. Muito agradecido, mas passo: a varanda faz-me falta tal qual está.
Gosto de correntes de ar, que hei-de fazer? Gosto de terra e gosto de mar. E gosto de levar com a terra e com o mar nas ventas. Gosto dos cheiros. Gosto de pensar (ou de pensar que penso), gosto de refrescar ideias. A minha varanda é o meu retiro. E é o meu quintal, a minha esplanada, o meu posto de vigia. Gosto de semear, de regar os vasos, de espreitar o nanocrescimento dos coentros, da salsa e do tomilho, gosto de fumar a minha cachimbada e beber o meu CRF "em balão previamente aquecido", gosto de ver passar navios. Condenaram-me a isso, a ver navios, mas eu gosto. Sou um gajo cheio de sorte.
Estão a ver a cabeça daquele cromo assamarrado e de chapéu enfiado até às orelhas, sentado na varanda, ignorante da chuva e do frio, de braço de fora, cachimbando e olhando o mar? A cabeça é minha, o cromo sou eu. Não podem ver, mas tenho uma manta a agasalhar-me as pernas. Estou muito bem, não se preocupem.
E estão a ver a gaivota, empoleirada no parapeito e quase em cima de mim? É a tal, a cagona que não me larga. A gaivota também sabe que ali é santuário, lugar de pensamento e liberdade. Somos cúmplices, praticamente almas gémeas. Mas a gaivota abusa, caga na varanda propriamente dita, o que enfurece a minha mulher. E eu? Eu, enquanto tomo nota de mais um barco que entra no Porto de Leixões, limito-me a cagar para os filhosdeputa que nos puseram assim...  

Lugares-comuns 480

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Alexandre Pinheiro Torres

Homenagem póstuma

Pode acontecer que já esteja bem morto
quando alguém disser que eu pudera ser grande;
e, então, será inútil o póstumo conforto:
nunca gozarei não ser
o pobre Alexandre!

Pode acontecer que as hipócritas dores
que venham trazer ao pé do mausoléu,
perpassem por ele em tão fortes clamores
que façam abrir-me o ferrolho do Céu.

Pode acontecer que eu, então!, tenha o cúmulo
de todas as coisas sonhadas e vãs,
e que, assim, na vida começada no túmulo,
venha a conhecer o esplendor das Manhãs!


"Novo Génesis", Alexandre Pinheiro Torres

(Alexandre Pinheiro Torres nasceu no dia 27 de Dezembro de 1923. Morreu em 1999.)

Lugares-comuns 479

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Júlio Perneta

Crepúsculo

No túmulo do ocaso iluminado,
Como nau afundando em tírio porto,
O dia tomba, triste, abandonado,
Nostálgico de luz e de conforto.


Hora em que o coração, genuflexado
Ante a visão feral do desconforto,
Vê desfilar das sombras o Passado,
Aos merencórios raios do sol morto.


Hora de dor, profunda de saudade,
Feita de lágrima e de prece ungida,
Soturna de velhice e mocidade!…


Como eu te sinto em mim, como eu te quero!
És a imagem fiel da minha vida
Que, apesar da desgraça, inda venero.


Júlio Perneta

(Júlio Perneta nasceu no dia 27 de Dezembro de 1869. Morreu em 1921.)

Vida de cão 177

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Antônio Joaquim da Rosa

Visão materna

Da lua os frouxos raios se espalham
Na lisa face da lagoa dormente;
E eu fitando o céu, fitando o lago,
Pensava em minha mãe da terra ausente!

Estrelas que sorris do céu sereno
cintillas de ouro na lagoa dormente,
Direi: Qual é a de vós a mãe saudosa,
A minha santa mãe da terra ausente?

Uma de vós - mais bela do que as outras,
Que mais rebrilha na lagoa dormente,
Que parece mais triste... Oh! será ela
A minha santa mãe da terra ausente?!

Oh! céus! que meiga voz que se deslisa
Como um soluço na lagoa dormente?
Será de um anjo a voz que à terra desce,
A voz de minha mãe da terra ausente?!

"Filho! não chores - que em futuro breve
Tu dormirás como a lagoa dormente,
E vindo aos braços meus - em outra esfera - 
Serás com tua mãe da terra ausente!"

Calou-se a débil voz - dolente e meiga
Como um suspiro na lagoa dormente,
E num raio de lua ao céu se alara
A minha santa mãe da terra ausente!

Da lua os frouxos raios se espelhavam
Na lisa face da lagoa dormente;

E eu fitando o céu - fitando o lago
Chorava minha mãe da terra ausente!

Antônio Joaquim da Rosa

(Antônio Joaquim da Rosa, o Barão de Piratininga, nasceu em 1821. Morreu no dia 27 de Dezembro de 1886.)

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 18

                                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Os apaixonantes. Encostados ao coreto, de mão em concha na orelha, seguem a música com gestos semibreves de deleite e aprovação, procurando com um sorriso de conhecedor e olhos piscos a cumplicidade do povo todo ali à roda. E pedem chiu!, comovidos até às lágrimas, à espera dos ribombos do grand finale, para então se desfazerem em aplausos. Eles estão a ouvir a melhor banda do mundo, a sua banda, e pouco importa que, na verdade, até nem tenham bom ouvido. Não precisam. Eles ouvem a música com o coração. Eles são os apaixonantes.
Regra geral, são homens, reformados e musicalmente analfabetos. Mas também são sábios, quando conseguem reduzir a sublime arte que tanto os apaixona à sua simplicidade essencial. "Perceber de música é gostar do que se ouve", dizem. Eles, sim, são os verdadeiros filarmónicos, fazendo jus à explicação da origem grega da palavra: phílos = amigo + harmonikós = de harmonia. Exactamente: eles são os amigos da música.
Eles vão ouvir os ensaios, da parte de fora, por respeito. Trazem na carteira o calendário dos concertos. Seguem a banda para todo o lado, se possível de boleia na camioneta que transporta o material e os músicos. É verdade, como eles apreciam a proximidade e o convívio com os seus artistas! Oferecem mais um copo a troco de dois dedos de paleio, discutindo clarinetes e bombardinos, marchas e fantasias, com demonstrativos e desafinados terululi-fá-dó-mi-rol-fé-poropopó-trró-pum! pelo meio. Pedem "mais peso", querem "peças pesadas" para afogar sem misericórdia a banda do outro coreto no emocionante despique que apenas intervala. Entusiasmados, metem na conversa o Tchaikovsky e o Giménez, num tu cá, tu lá mais próprio de quem evoca uma famosa dupla de defesas centrais. Se eles sabem do que falam? Talvez não. E isso interessa?
Na terra onde eu nasci há duas bandas de música. E dois grupos rivais de apaixonantes. Qualquer observador independente dirá que, objectivamente, uma banda é melhor do que a outra. Mas isso aqui também não interessa para nada. Para os apaixonantes, a qualidade absoluta é um valor irrelevante. A nossa banda é que é sempre a melhor! O ouvido dos apaixonantes, para além de geralmente duro, é um ouvido selectivo, faccioso: surdo às fífias da casa e inventor de desafinações na concorrência. "Estão fraquinhos este ano"...
Portugal deve ser o único país do mundo que tem apaixonantes. E os apaixonantes são uma raça em vias de extinção. Alguns dos poucos sobreviventes podem ainda ser vistos numa festa ou romaria perto de si, em grupos de dois ou três, encostados ao coreto, de mão em concha na orelha. Se por caso os vir, respeite-os, mime-os, ajude à preservação da espécie.
Porque os apaixonantes e as bandas de música são como aqueles casais antigos, em que um não vive sem o outro. Ela morre e ele vai logo atrás. Ele morre e ela vai logo atrás. No dia em que desaparecer o último apaixonante, as filarmónicas também não ficam cá por muito mais tempo.

Quando a ordem dos factores é preponderante
O pai: - Afinal como é que se chama esse teu namorado secreto? Tem nome, ao menos?
A filha: - Tem. Chama-se Mónica.
O pai: - Mónica?
A filha: - Mónica.
O pai: - Mónica, do género José da Silva Mónica?
A filha: - Não. Mónica, tipo Mónica da Silva José.

Entre o ganinte e o ganante. Entre o ganinte e o ganante vai uma diferença de milhões e outra de decibéis.

O extremoso e o ex-tremoço. Ainda acontece. Há quem confunda o filho extremoso com o filho ex-tremoço. E são muito diferentes um do outro. Distinguem-se evidentemente derivado ao prefixo com hífen, mas sobretudo por causa da casca.   

domingo, 25 de dezembro de 2016

Lugares-comuns 478

                                                                                                                   Foto Hernâni Von Doellinger

As minhas frases favoritas 99

Então esse Natal?...

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 17

Foto Hernâni Von Doellinger

Onde é que eu já vi esta cara? Devo andar a ficar parecido com alguém. São cada vez mais as pessoas que olham para mim na rua, e eu não estava habituado. Sempre achei que tinha cara de ninguém, tão incógnito e invisível fui toda a minha vida, e não me estou a queixar, constato apenas, porque senstato ainda podia ser pior, se não me engano. Dou um exemplo, por exemplo: chovesse a cântaros e corresse eu em coiro a subir e a descer desalmada e inutilmente as escadas da Arcada, no centríssimo de Fafe, e a verdade é que nem a polícia municipal tomava conta da ocorrência. Era como se eu não existisse, mesmo com o pirilau ao léu. De acordo com as detalhadas notas da minha agenda de 1911, que agora mesmo compulso e sentornozelo, pratiquei esta patusca habilidade duas ou três vezes, talvez quatro ou cinco, os apontamentos estão um bocado esborratados, e só abandonei a modalidade por indicação médica. O médico da caixa sempre me chamou Sr. Serafim porque nunca tomou razoável sentido a quem eu era. Eu próprio quantas e quantas vezes passei por mim sem me conhecer de lado nenhum, não serei portanto o primeiro nem o último a atirar a primeira ou a derradeira pedra à autoridade distraída ou ao serviço nacional de saúde relapso, respectivamente. Serei, por uma questão de princípio, o do meio.
Mas ao que interessa: agora, na rua, espreitam-me de cima a baixo. Faço imediatamente o teste da braguilha, porque a braguilha não engana, mas há muito que eu retirei a braguilha de cotio, só a uso ao fim-de-semana com hífenes e eu ao fim-de-semana com hífenes não saio. Ando portanto intrigado, diria até assaz incomodado, mas estaria a mentir se o dissesse, e eu só minto às quintas-feiras dos anos bissextos, e por isso hoje não digo. Por outro lado, a palavra assaz é particularmente parva.
Fui ao espelho ver o que se passava. Há coisa de dez minutos, fui ao espelho. E faço questão de informar que não me via ao espelho desde 1879, mais ou menos no dia do São Francisco de Regadas, ou desde 1901, por alturas da Senhora das Neves da Lagoa, não tenho bem presente. Fui ao espelho (sei que é a terceira vez que digo que fui ao espelho, e com esta já é a quarta) e aconteceu o seguinte: encontrei-me realmente com um tipo vagamente parecido comigo. Será isso?

Shakespeare vs. Camões. O inglês Guilherme Shakespeare escreveu tubi ornotubi detesdaquestcham. Ornotubi. O nosso Luís Vaz escreveu, e certamente antes do bife, al maminha gentil quetepartiste. Maminha. Para mim, Shakespeare 0 - Camões 1.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 1 de Novembro de 2014. Continuo a gostar muito mais de maminha, e evidentemente não estou a falar de carne para churrasco. Na altura, um leitor anónimo mas de óbvia costela anglófila comentou que "Shakespeare é maior que Camões". Eu respondi: "Mas Hrtdfsgnkgetrfdcçygetñtecho é maior do que Shakespeare". Mantenho.)

Como o mundo é pequeno (e um bocado parvo)
- Perdoar-me-á que o interpele assim sem mais nem menos, sem o conhecer de lado nenhum, mas o caro senhor é um bocado parvo, não é?
- Sou, com efeito, um bocado parvo, mas como é que o caro senhor adivinhou?
- Um pressentimento. É que eu também sou...
- O caro senhor também é um pressentimento?
- Não, não, caro senhor: também sou um bocado parvo.
- Como o mundo é pequeno! Somos então praticamente primos...
- Parentes, pelo menos, isso é certo...
- E, mal que lhe pergunte, o caro amigo é um bocado parvo por parte da senhora sua mãe ou por parte do senhor seu pai?
- Por parte do senhor meu pai, que Deus tem.
- Mas isso é extraordinário, caro amigo, porque eu também sou...
- O caro amigo também é um bocado parvo por parte do senhor meu pai, que Deus tem?
- Não, não, caro amigo: sou um bocado parvo mas por parte do senhor meu pai. 
- Oh, que pena! Quase que éramos irmãos e órfãos do mesmo pai, não é?...   

Lugares-(in)comuns 226

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Irene Lisboa 3

Apetecia-me escrever um belo verso

Apetecia-me escrever um belo verso.
Sonoro, elegante, correcto, de mármore!
Nele pôr o que outros me inspirassem.
O que ali aquele poeta estava cantando.
Ele o cantava e eu o repetia.
Acrescentava, desdobrava, acrescia da minha ansiedade.
Mas verso bem feito!
Cheio do que se sonha, não do que se sente.
Parece-me pobre o que sinto.
E vulgar.
Estes olhos que sem querer se envidraçam, fúteis, sem recato, infantis, esta voz insegura, enfim, tudo isto…
Que figura iriam fazer dentro de um verso elegante, lapidar?
Belo verso trair-te-iam, roubar-te-iam toda a graça e até a ressonância, o êxtase e aquela espécie de embalo que ao espírito sempre dás.
Mas sinceramente me apetecia escrever um verso de mármore belo!
Tudo, tudo por causa daquele poema...
 
"Outono Havias de Vir Latente Triste", Irene Lisboa

(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)

sábado, 24 de dezembro de 2016

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 16

                                                                                                                                            Foto Hernâni Von Doellinger

O que é preciso é saber pedir. Cátia Soraia está na universidade e escreveu à mãe a pedir um concelho. A mãe, que é rica e boa alma, mandou-lhe Freixo de Espada à Cinta.

O tipo do mito urbano e o mito do tipo rústico
- Faz favor de desculpar, o senhor é o tipo do mito urbano, não é?
- Mito quê?
- Mito urbano. Urbano. Citadino, civilizado, cortês, polido, gafonha, urbanita, urbícola, correcto, afável, aprazível, fruitivo, lisonjeiro, mavioso, amorável, charmoso, peralta, lhano, tirone, refinado, esticadinho, delicioso, educado...
- O que são as palavras, veja lá o senhor. Não, não sou o tipo do mito urbano. Na verdade fiz-me homem em Valnogueiras, Vila Real de cima, sou portanto e pelo contrário, se me está a acompanhar, o mito do tipo rústico.
- Tipo quê?
- Tipo rústico. Rústico. Rusticano, rural, aldeão, camponês, campino, campesino, campesinho, campestre, campónio, agrário, casca-grossa, labrego, parolo, lavrador, grosseiro, bruto, boçal, besta, bronco, grunho, labrego, malcriado...
- Realmente o que são as palavras. Mas é tão parecido com ele...
- Porém, não sou ele. Por favor, não me comprometa. Se o senhor disser que eu sou ele, eu nego. Ene-é-gê-ó. Nego!
- Palavra de honra, aqui que ninguém nos ouve, o senhor nunca foi o tipo do mito urbano nem por um bocadinho? Ande lá...
- Nunca, meu caro senhor. Aliás, se me permite, desafio qualquer um a recordar alguma intervenção ou escrito que eu tenha tido nesse sentido e que, de uma ou outra forma, me possa conectar a essa lamentável problemática. Desafio. Eu sou o mito, não sou o tipo, e ponto final.

Como cozer uma bainha. A bainha de uma saia, por exemplo, deve ser cozida, obviamente, em banho-maria. Ente os 80 e os 85 graus de temperatura, durante cerca de quinze minutos.

Batatas para coser. Nas batatas para coser recomenda-se o uso de linha da marca Corrente, a famosa linha universal para costura da Coats & Clark. Sempre que possível, à cor.

Só destes, tenho sete

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Um "santo Natal", o raio que vos parta

Rais parta a moda dos votos de "santo Natal". Rais parta o vírus. Parece que não chegava o desejo de "feliz Natal", a encomenda de "bom Natal", parece que não era suficiente. Não, agora pregam-me com o "santo Natal", esfregam-mo no focinho. Está certo os meus dois amigos padres que me fazem sempre questão de "santo Natal", são padres, é-lhes de direito e de ofício, estão perdoados. Agora outros, certos e determinados, venais, filisteus, alguns até concubinados, criaturas que não vão à missa, que não rezam o terço, que acham que o Te Deum joga no Sporting, que tampouco sabem quantas são as pessoas da Santíssima Trindade, virem-me com o "santo Natal", sem sequer suspeitarem do que a coisa quer dizer, isso eu não deixo passar. E portanto aqui fica o meu protesto, amém.

(Penitência recomendada: dizer em voz alta, e para toda a família, cento e cinquenta vezes, seguidas, "esfregam-mo no". E setenta e sete flexões...) 

Estou mesmo a ver o filme 27

                                                                                                                 Foto Hernâni Von Doellinger

Filinto Elísio 4

Ode à Esperança

Vem, vem, doce Esperança, único alívio
Desta alma lastimada;
Mostra, na coroa, a flor da amendoeira,
Que ao lavrador previsto
Da Primavera próxima dá novas. 

Vem, vem, doce Esperança, tu que animas
Na escravidão pesada
O aflito prisioneiro: por ti canta,
Condenado ao trabalho,
Ao som da braga, que nos pés lhe soa, 

Por ti veleja o pano da tormenta
O marcante afouto:
No mar largo, ao saudoso passageiro
(Da esposa e dos filhinhos),
Tu lhe pintas a terra pelas nuvens. 

Tu consolas no leito o lasso enfermo,
Com os ares da melhora,
Tu dás vivos clarões ao moribundo,
Nos já vidrados olhos,
Dos horizontes da celeste pátria. 

Eu já fui de teus dons também mimoso;
A vida largos anos
Rebatida entre acerbos infortúnios
A sustentei robusta
Com os pomos de teus vergéis viçosos. 

Mas agora, que Márcia vive ausente;
Que não me alenta esquiva
Com o brando mimo dum de seus agrados,
Que farei infelice,
Se tu, meiga Esperança, não me acodes? 

Ai! que um de seus agrados é mais doce
Que o néctar saboroso;
É mais doce que os beijos requintados
Da namorada Vénus,
A que o Grego põe preço tão subido. 

Vem, vem, doce Esperança, que eu prometo
Ornar os teus altares
Com a viçosa verbena, que te agrada,
Com a linda flor, que agora
Enfeita os troncos, que te são sagrados.

"Odes", Filinto Elísio

(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)