Foto Hernâni Von Doellinger |
quinta-feira, 31 de dezembro de 2015
quarta-feira, 30 de dezembro de 2015
O reino dos céus por uma mobília de sala de jantar
Andam aos pares, como o Senhor mandou para a arca, e vê-se logo que são boas pessoas. Missionam a bom missionar, de porta em porta, no meio da rua, sujeitam-se a malcriadezas em nome da fé que têm para dar e vender, e dou-lhes valor por isso. Um par interpelou-me um destes dias, ali em baixo, no passeio à beira-mar onde às vezes montam banca:
- Um minutinho, por favor, já pensou no que lhe acontecerá quando morrer? E porque morremos? Não quer saber a verdade acerca da morte?
Eu, que achei a abordagem um bocado desajeitada e tétrica, desnecessariamente radical, resolvi dar-lhes uma ajuda, recentrando o assunto:
- Não é nada da morte que me querem falar, pois não? A morte até poderia ser um bom princípio, em termos de marketing, de aproximação tablóide à clientela, quero dizer, mas vocês querem é falar-me da vossa Igreja, querem converter-me à vossa Igreja, querem anunciar-me Deus, o único verdadeiro, Jeová, é ou não é?
Era.
- Então, em verdade vos digo, assim será feito - disse eu, com voz de sarça ardente ditando leis -, ouço-vos, vocês falam-me da vossa Igreja e de Jeová, mas só se também me derem tempo de antena para eu vos falar de uma mobília de sala de jantar muito jeitosa que tenho para vender.
- Mas para que queremos nós ouvi-lo falar acerca da mobília de sala de jantar, se temos uma praticamente nova, estamos tão bem servidos e não precisamos de mudar? - respondeu o par em coro e percebi logo que, para além de par, era também casal.
A resposta era mesmo a que me calhava, portanto sentenciei:
- Pois, caríssimos irmãos, eu e Deus é a mesma coisa: já tenho um e estou muito contente com Ele. Vou agora trocar, porquê? E amém.
Eu sei que fui (sou) um bocado parvo. Mas correu bem. Vendi-lhes duas mobílias de sala de jantar.
- Um minutinho, por favor, já pensou no que lhe acontecerá quando morrer? E porque morremos? Não quer saber a verdade acerca da morte?
Eu, que achei a abordagem um bocado desajeitada e tétrica, desnecessariamente radical, resolvi dar-lhes uma ajuda, recentrando o assunto:
- Não é nada da morte que me querem falar, pois não? A morte até poderia ser um bom princípio, em termos de marketing, de aproximação tablóide à clientela, quero dizer, mas vocês querem é falar-me da vossa Igreja, querem converter-me à vossa Igreja, querem anunciar-me Deus, o único verdadeiro, Jeová, é ou não é?
Era.
- Então, em verdade vos digo, assim será feito - disse eu, com voz de sarça ardente ditando leis -, ouço-vos, vocês falam-me da vossa Igreja e de Jeová, mas só se também me derem tempo de antena para eu vos falar de uma mobília de sala de jantar muito jeitosa que tenho para vender.
- Mas para que queremos nós ouvi-lo falar acerca da mobília de sala de jantar, se temos uma praticamente nova, estamos tão bem servidos e não precisamos de mudar? - respondeu o par em coro e percebi logo que, para além de par, era também casal.
A resposta era mesmo a que me calhava, portanto sentenciei:
- Pois, caríssimos irmãos, eu e Deus é a mesma coisa: já tenho um e estou muito contente com Ele. Vou agora trocar, porquê? E amém.
Eu sei que fui (sou) um bocado parvo. Mas correu bem. Vendi-lhes duas mobílias de sala de jantar.
terça-feira, 29 de dezembro de 2015
Em nome da faneca, ou quando o piropo é crime
Bem boas que elas andam, as fanecas. Já repararam? Se calhar a mãe
Natureza resolveu chamar à razão a nem sempre atinada lei das
compensações, mas a verdade é que, a seguir a uma época de sardinha que foi uma desgraça, a faneca apareceu-me este ano com uma categoria de que eu já nem me lembrava. Tenho-me regalado.
Gosto delas fritas. Só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, ou então mais à minha moda, tratadas também com pimenta e limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e como, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, deixei que me metessem num barco e fui à pesca da faneca com o grupo do Adélio Santos. Quer-se dizer: eles foram à pesca e eu fui vomitar uma noite de copos e sem passagem pela cama. Não sei se serviu de engodo, mas o certo é que aquilo era peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que pelos vistos também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo na minha lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, diz, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra de aproveitar a barafunda das quartas-feiras para passar por elas, pelas gajas, em Cima da Arcada, roçar-lhes o cotovelo pelas mamas como quem não quer a coisa, dizer-lhes entredentes "Ah, faneca!" e levar um estalo na cara que acabava logo ali com todos os tesões? Quem não se lembra, nem era homem nem era nada. Ou então sofre de Alzheimer e está desculpado.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe muito honesto. Depois, há fanecas mais honestas do que outras. Em minha casa, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez com o Adélio mas agora por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda. Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, amanho-as eu, eu é que sei. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, mas é preciso saber dar-lhes as voltas.
(1. Texto escrito e publicado originalmente no dia 21 de Março de 2012, então sob o nome de "Fanecamente falando". Repito-o hoje sobretudo por causa do quarto parágrafo, o do estalo. As coisas acabam de mudar dramaticamente: agora, chamar faneca a uma gaja poderá dar cadeia; um apalpão de mamas, suponho, deverá ir até ao enforcamento.
2. Exercício recomendado: dizer 150 vezes, para toda a família e sem se rir, "criminalização do piropo".
3. O título desta ponderada e gastronómica reprise também poderia ser, e se calhar melhor, "Em nome do piropo, ou quando a faneca é crime".)
Gosto delas fritas. Só com sal e passadas por farinha milha, à tasco, ou então mais à minha moda, tratadas também com pimenta e limão e depois envolvidas com farinha triga e ovo. Sem outros truques ou invenções. Há derivas que aceito e como, mas estão longe de me satisfazer. Insisto: a faneca só me enche as medidas quando na sua pureza original. Frita.
Uma vez há muitos anos, pela madrugada, deixei que me metessem num barco e fui à pesca da faneca com o grupo do Adélio Santos. Quer-se dizer: eles foram à pesca e eu fui vomitar uma noite de copos e sem passagem pela cama. Não sei se serviu de engodo, mas o certo é que aquilo era peixe até dar com um pau. Seríamos uns seis ou sete naquela companha de ocasião e toda a gente teve direito a um ou dois baldes cheios de fanecas e cavalas, até eu, que pelos vistos também tinha feito a minha parte e não sabia. Estava na idade da toléria e tão tolo era que desprezei então as cavalas, hoje em dia com lugar cativo na minha lista de pitéus.
Mas voltemos às fanecas. O meu amigo Lopes, que é tão fanequeiro como eu, diz, no seu mar de sabedoria, que "a faneca é um peixe muito honesto". E é. Em diversos sentidos e apesar de já ter andado por aí na boca da malandragem armada em carapau de corrida. A este respeito (ou a respeito da falta dele), torno a Fafe, à década de setenta do século vinte: quem é desse tempo e não se lembra de aproveitar a barafunda das quartas-feiras para passar por elas, pelas gajas, em Cima da Arcada, roçar-lhes o cotovelo pelas mamas como quem não quer a coisa, dizer-lhes entredentes "Ah, faneca!" e levar um estalo na cara que acabava logo ali com todos os tesões? Quem não se lembra, nem era homem nem era nada. Ou então sofre de Alzheimer e está desculpado.
O Lopes tem razão: a faneca é um peixe muito honesto. Depois, há fanecas mais honestas do que outras. Em minha casa, por exemplo, só entram fanecas do alvor, pescadas já dentro da manhãzinha, como daquela vez com o Adélio mas agora por mãos que sabem. Um luxo. Mordomia matosinhense. São fanecas do mar que eu vejo da minha varanda. Madrugo também, compro-as vivinhas da silva, ainda sem terem passado pelo castigo do gelo e isentas de outras burocracias normalizadoras e estragativas, amanho-as eu, eu é que sei. Não menos importante: comemo-las no próprio dia. Exactamente. Elas andam bem boas, mas é preciso saber dar-lhes as voltas.
(1. Texto escrito e publicado originalmente no dia 21 de Março de 2012, então sob o nome de "Fanecamente falando". Repito-o hoje sobretudo por causa do quarto parágrafo, o do estalo. As coisas acabam de mudar dramaticamente: agora, chamar faneca a uma gaja poderá dar cadeia; um apalpão de mamas, suponho, deverá ir até ao enforcamento.
2. Exercício recomendado: dizer 150 vezes, para toda a família e sem se rir, "criminalização do piropo".
3. O título desta ponderada e gastronómica reprise também poderia ser, e se calhar melhor, "Em nome do piropo, ou quando a faneca é crime".)
Alves Redol 3
Tem doze anos, mas não deitou muito corpo para a idade. Ainda está a tempo. Um homem cresce até ao fim da vida, se não em altura, pelo menos em obras e ambições. E nisso promete.
Por voto do padrinho e assentimento dos pais, recebeu no registo o nome de Constantino. É um nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António.
Enquanto o rapaz foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o António Pequeno. O rapaz, porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino quando a mulher lhe chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia quando bebia um copo a mais.
"Grandes são os burros", refilava então o velho, muito rezingão, com reumático nas cruzes, umas dores parvas como dentadas de lobo. Mas andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a mulher teve de se esconder três dias em casa duma vizinha.
"Velhos são os trapos!", gritava o António Pirralha chamando corja ao povo inteiro da sua aldeia - que não gostava muito dele, valha a verdade.
Foi isto mais ou menos o que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre. Constantino era um nome bonito para rapaz.
Por voto do padrinho e assentimento dos pais, recebeu no registo o nome de Constantino. É um nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António.
Enquanto o rapaz foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o António Pequeno. O rapaz, porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino quando a mulher lhe chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia quando bebia um copo a mais.
"Grandes são os burros", refilava então o velho, muito rezingão, com reumático nas cruzes, umas dores parvas como dentadas de lobo. Mas andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a mulher teve de se esconder três dias em casa duma vizinha.
"Velhos são os trapos!", gritava o António Pirralha chamando corja ao povo inteiro da sua aldeia - que não gostava muito dele, valha a verdade.
Foi isto mais ou menos o que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre. Constantino era um nome bonito para rapaz.
"Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em1969.)
Augusto Fera 3
Logística
Não deixes o senhor bater tacão
Na rua do teu gesto de criado.
Não há pé que resista ao empedrado
Da cabeça que sabe dizer não.
Espalha os pregos de aço do teu não
De bico para o ar por todo o lado,
E nem com botifarras de soldado
As tuas hostes de aço pisarão.
O brando só acorda a luz do sol
Pondo o cigarro aceso no paiol
Que há na cave dos homens oprimidos.
Ninguém pode de si mesmo ser dono
Sem dizer muito próximo do trono
Um não que chegue a todos os ouvidos.
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
Não deixes o senhor bater tacão
Na rua do teu gesto de criado.
Não há pé que resista ao empedrado
Da cabeça que sabe dizer não.
Espalha os pregos de aço do teu não
De bico para o ar por todo o lado,
E nem com botifarras de soldado
As tuas hostes de aço pisarão.
O brando só acorda a luz do sol
Pondo o cigarro aceso no paiol
Que há na cave dos homens oprimidos.
Ninguém pode de si mesmo ser dono
Sem dizer muito próximo do trono
Um não que chegue a todos os ouvidos.
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
segunda-feira, 28 de dezembro de 2015
Inglês de Sousa 3
Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper d’alva, quando os japins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera-cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata - espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canículo enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de uma volta pelo cacaual e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d’água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandriice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar - para as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.
"O Missionário", Inglês de Sousa
(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)
"O Missionário", Inglês de Sousa
(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)
domingo, 27 de dezembro de 2015
O Natal dos pré-cegos
As árvores acendem-se, tremeluzem como se estivessem bêbadas, e é o que
ouço na rua às pessoas que comem palavras, ainda que palavras pequenas,
palavras ínfimas, as pessoas comem o artigo definido à falta de alimento
substantivo, comem migalhas, palavras de uma letra só porque a fome é
tanta e tudo o que vem à rede é peixe, e mais vale comer palavras, ainda
que resumidas e insossas, do que não comer nada ou comer merda com
chantili. Ouço:
- Então, se não voltar a ver, um bom Natal e feliz ano novo...
- Para si também, se não voltar a ver, um Natal feliz e muitas prosperidades...
P.S. - Cegos era o que se chamava antigamente aos invisuais de hoje em dia. Os invisuais de hoje em dia vêem muito melhor do que os cegos de antigamente, e têm muito mais classe, têm diploma de invisuais, olha o respeitinho. Gosto da volta que os nossos aforismos também levaram derivado à modernidade e ao decoro: o maior invisual é aquele que se recusa a vislumbrar; ou: em terra de invisuais quem tem um globo ocular em satisfatórias condições de funcionamento é presidente da república. É a badalhoca da semântica, mãe de todos os eufemismos, que vai para a cama com qualquer e dá para os três lados. Havia também os moucos ou surdos - serão agora chamados insonoros, para que ninguém se melindre ou ofenda. E é o que eu digo: a palavras loucas, orelhas insonoras.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 18 de Dezembro de 2014)
- Então, se não voltar a ver, um bom Natal e feliz ano novo...
- Para si também, se não voltar a ver, um Natal feliz e muitas prosperidades...
P.S. - Cegos era o que se chamava antigamente aos invisuais de hoje em dia. Os invisuais de hoje em dia vêem muito melhor do que os cegos de antigamente, e têm muito mais classe, têm diploma de invisuais, olha o respeitinho. Gosto da volta que os nossos aforismos também levaram derivado à modernidade e ao decoro: o maior invisual é aquele que se recusa a vislumbrar; ou: em terra de invisuais quem tem um globo ocular em satisfatórias condições de funcionamento é presidente da república. É a badalhoca da semântica, mãe de todos os eufemismos, que vai para a cama com qualquer e dá para os três lados. Havia também os moucos ou surdos - serão agora chamados insonoros, para que ninguém se melindre ou ofenda. E é o que eu digo: a palavras loucas, orelhas insonoras.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 18 de Dezembro de 2014)
sábado, 26 de dezembro de 2015
O Natal comove-me. E o caldo de couves também.
Gosto do Natal. Isto é: não gosto do Natal, mas a minha mulher e o meu
filho gostam muito, e portanto eu gosto do Natal - temos de ser uns para
os outros se queremos manter acesa a lareira da felicidade familiar, ou
o radiador a óleo, cada um governa-se conforme pode. Gosto do Natal,
dizia, mas o Natal incomoda-me, perplexa-me, e era precisamente por aqui
que eu queria começar, antes que me passe o espanto. Porque, não sei se
sabiam, o Natal é um paradoxo, alegra e deprime, e é também um
equívoco: marcado para o dia 25, toda a gente sabe que é na noite de 24.
A única certeza religiosa e cientificamente homologada é que o Natal é
em Dezembro... "mas em Maio pode ser".
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Nunca acreditei no Pai Natal e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus é que era, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera.
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar, os programas de televisão marca jingobel, a patriótica greve dos operários da TAP em defesa da bandeira da companhia e da independência nacional, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República e Excelentíssima Esposa, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
Este ano até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um niquinho de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como num filme, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Que saudades! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, outra vez como no flashback do cinema. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
O Natal dá-me saudades do Menino Jesus e do meu pai. Nunca acreditei no Pai Natal e não gosto de Coca-Cola. Velhos com barbas brancas, bastamos euzinho cá em baixo e o Imenso lá em cima. Quanto ao xarope, fico-me pelo da tosse, muito agradecido. O Menino Jesus é que era, e ainda hoje acredito. O Menino Jesus e o meu pai deviam ser da corda, porque era o meu pai quem me punha no sapatinho as avelãs, os chocolatinhos e o par de meias que o Menino Jesus me dava, isso eu sabia. Tão unha com carne deveriam ser os dois que o Menino Jesus nasceu no dia 25 de Dezembro e o meu pai, tudo combinado lá entre eles, morreu de véspera.
O Natal comove-me. As árvores com luzinhas, as músicas tão tlim-tlim-tlam, o pacote de meio quilo de esparguete no saco do Banco Alimentar, os programas de televisão marca jingobel, a patriótica greve dos operários da TAP em defesa da bandeira da companhia e da independência nacional, a mensagem de Sua Excelência o Senhor Presidente da República e Excelentíssima Esposa, a comida, a comida, a comida, tudo ajuda à missa da minha sazonal e imensa comoção. E o vinho também.
Este ano até já estava a ficar agoniado de tanto me comover. Resolvi, para desenfastiar, fazer um caldo de couves. Isso, um caldo de couves. Foi na noite de 25 exactamente. Uns olhinhos de couve-galega, feijão vermelho, batata mal desfeita, uma tirinha de toucinho salgado, um niquinho de vaca, azeite com fartura natalícia. A panela foi à mesa de gala, fumegante como a velha locomotiva que arrastava o comboio até Fafe nos tempos em que eu não me comovia por tudo e por nada e em que a minha memória era o futuro.
Foi o nosso jantar. O caldo estava antigo, de repetir e lamber os beiços. Repeti e lambi. O calor, o sabor, o odor, o estupor, quero dizer, o estupor do caldo caiu que nem ginjas, sossegando-me o estômago mais a alma. E, como num filme, tornou-me à casinha do Santo Velho, à roda da mesa com os meus irmãos, a minha mãe, o meu pai e o Menino Jesus que ainda não tinha nascido. Tornou-me à minha avó de Basto, na cozinha de chão de terra da Casa do Carreiro que cheirava sempre ao meu caldo. Que saudades! E de repente topei-me de olhos humedecidos, turvos, outra vez como no flashback do cinema. De cabeça enfiada na malga, desculpei-me da boca para fora que era do vapor, e pensei: caralho, estás a chorar por causa de um caldo de couves, não tens vergonha? Ainda por cima, este tem carne...
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 28 de Dezembro de 2014. Ontem foi canja e não chorei. É curioso: a canja não puxa ao sentimento.)
sexta-feira, 25 de dezembro de 2015
Um "santo Natal", o raio que os parta
Rais parta a moda dos votos de "santo Natal". Rais parta. Parece que não chegava o desejo de "feliz Natal", a encomenda de "bom Natal", parece que não era suficiente. Não, agora pregam-me com o "santo Natal", esfregam-mo no focinho. Está certo os meus dois amigos padres que me fizeram questão de "santo Natal", são padres, está-lhes no direito, estão perdoados. Agora outros, certos e determinados, venais, filisteus, alguns até concubinados, criaturas que não vão à missa, que não rezam o terço, que acham que o Te Deum joga no Sporting, que tampouco sabem quantas são as pessoas da Santíssima Trindade, virem-me com o "santo Natal", sem sequer suspeitarem do que a coisa quer dizer, isso eu não deixo passar. E portanto aqui fica o meu protesto, amém.
(Exercício recomendado: dizer em voz alta, e para toda a família, cento e cinquenta vezes, seguidas, "esfregam-mo no")
(Exercício recomendado: dizer em voz alta, e para toda a família, cento e cinquenta vezes, seguidas, "esfregam-mo no")
Irene Lisboa 2
Amor
Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!
Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.
Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência
Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?
Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!
Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.
Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!
Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência
Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?
Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Um Natal mais ou menos
Dá-me para isto ultimamente: pergunto aos meus amigos - "Andas feliz? És
feliz?", e não é por causa da crise ou da merda da política ou dos
bandalhos que estão no Governo. Nada disso - quero que essa corja de
Lisboa se foda, refoda e contrafoda. Aos meus amigos pergunto acerca do
coração, dos afectos, do casamento, do divórcio, da mulher, da namorada,
da mulher e das namoradas (há quem acumule), dos filhos, dos netos, dos irmãos, dos pais,
dos sogros, da saúde, da fé, da filosofia, da poesia, de Deus, dos
sonhos, da vida. Falo de bondade, de amor, de compaixão, de vinho.
"És feliz? Andas feliz?", é o que pergunto, exactamente da mesma
maneira que pergunto em casa, à mesa, se a comidinha está a saber bem.
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Pelo menos é o que eu acho, pratico e digo aos meus amigos, dinheiro à parte e emprego também, que só fazem falta a quem tem. A nós, não - o País já deu baixa de nós, de mim e dos meus amigos. Estamos muito bem assim com isto que nos deixaram em comum: somos tesos encartados, desempregados por conta própria, cidadãos fora de prazo, viva Portugal! Os meus amigos interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa. Percebem o que eu quero dizer quando lhes pergunto, imodesto, se as fanecas eram mesmo assim e nem mais nem menos e se os rojões estão prontos para as olimpíadas. Percebem e respondem com grande selectividade (a selectividade e as retroescavadoras com luzinhas são cá coisas do forno interno). Eram e estão, as fanecas e os rojões, respondem na ponta da língua, sem precisarem de mentir. Mas se lhes pergunto directamente - "És feliz, Natal?", os meus amigos limitam-se a balbuciar um "Mais ou menos" que até parece da minha família.
Vou mandar passar aos meus amigos os competentes atestados de Bombas, esses sublimados militantes do vai-se andando. Eu rasgo o cartão, desarrisco-me.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 30 de Novembro de 2013)
A vida para ter algum jeito também deve saber bem, não é? Pelo menos é o que eu acho, pratico e digo aos meus amigos, dinheiro à parte e emprego também, que só fazem falta a quem tem. A nós, não - o País já deu baixa de nós, de mim e dos meus amigos. Estamos muito bem assim com isto que nos deixaram em comum: somos tesos encartados, desempregados por conta própria, cidadãos fora de prazo, viva Portugal! Os meus amigos interessam-me muito e por isso é que são sem aspas e sem Facebook. Somos amigos cara a cara, de abraço de carne e osso. Os meus amigos sabem que eu cozinho e são meia dúzia deles. Às vezes frequentam-me a mesa. Percebem o que eu quero dizer quando lhes pergunto, imodesto, se as fanecas eram mesmo assim e nem mais nem menos e se os rojões estão prontos para as olimpíadas. Percebem e respondem com grande selectividade (a selectividade e as retroescavadoras com luzinhas são cá coisas do forno interno). Eram e estão, as fanecas e os rojões, respondem na ponta da língua, sem precisarem de mentir. Mas se lhes pergunto directamente - "És feliz, Natal?", os meus amigos limitam-se a balbuciar um "Mais ou menos" que até parece da minha família.
Vou mandar passar aos meus amigos os competentes atestados de Bombas, esses sublimados militantes do vai-se andando. Eu rasgo o cartão, desarrisco-me.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 30 de Novembro de 2013)
Filinto Elísio 3
Usos deste mundo
Nas praças uns perguntam novidades;
Outros dão volta às ruas, ao namoro;
Este usuras cobrar, esse as demandas
Lembrar corre ao Juiz que se diverte.
Ir de Jano aprender a ser bifronte,
De Mercúrio, no trato, a ser bilingue,
Franco no prometer, no dar escasso.
C'os olhos fitos no ávido interesse
Ser consigo leal, com todos falso
É ser homem capaz, home' entendido.
Assim, que vemos nós por este esconso
Mundo? Vemos logrões, vemos logrados;
Ninguém vês ir com cândido desejo
Aos Sénecas, aos Sócrates de agora
Perguntar as lições tão necessárias
De ser honrado, ser com todos justo.
Tão sobejos se crêem de honra e virtude,
Que cuida cada um poder de sobra
Mostrar na Ocasião virtude a rodo,
E chega a Ocasião, falha a virtude.
Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
Nas praças uns perguntam novidades;
Outros dão volta às ruas, ao namoro;
Este usuras cobrar, esse as demandas
Lembrar corre ao Juiz que se diverte.
Ir de Jano aprender a ser bifronte,
De Mercúrio, no trato, a ser bilingue,
Franco no prometer, no dar escasso.
C'os olhos fitos no ávido interesse
Ser consigo leal, com todos falso
É ser homem capaz, home' entendido.
Assim, que vemos nós por este esconso
Mundo? Vemos logrões, vemos logrados;
Ninguém vês ir com cândido desejo
Aos Sénecas, aos Sócrates de agora
Perguntar as lições tão necessárias
De ser honrado, ser com todos justo.
Tão sobejos se crêem de honra e virtude,
Que cuida cada um poder de sobra
Mostrar na Ocasião virtude a rodo,
E chega a Ocasião, falha a virtude.
Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
O Menino Jesus morreu sozinho. Tinha 84 anos.
Morreu o Menino Jesus. Tinha 84 anos. O corpo foi encontrado ontem, rodeado de solidão e lixo, na casa onde resolveu fechar-se ninguém sabe dizer-me há quanto tempo. As autoridades sanitárias, que não têm culpa do nome que lhes puseram nem da gramática que lhes deram, suspeitam que o "óbito" terá ocorrido há pelo menos cinco dias. Azar do caraças: dois dias a mais. Fatais. Ao terceiro safou-se o Outro.
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos? O que apanhava, em Nevogilde, o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, há mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos e indiferença.
Sou pobre, mas passo lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho, como diz o meu amigo Lopes. Já basta o que basta, morrer já é fodido que chegue. E tenho de confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os jornais de mais logo darão a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um octogenário.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2012)
Estão a ver? Estão a ver aquele senhor esquisito e careca que vestia sempre um casaco de cabedal preto quase até aos pés, tipo Gestapo, Deus lhe perdoe, pasta na mão e calças zangadas com os sapatos? O que apanhava, em Nevogilde, o autocarro que vai do Castelo do Queijo até à Baixa? Estão a ver? Exactamente: era esse o Menino Jesus, que também ninguém sabe dizer-me porque se chamava assim, só se fosse por ser um bocado extraordinário como o Outro.
O Menino Jesus foi engenheiro e solteiro. Viveu sempre com a mãe, mas a mãe morreu antes dele e isso fez-lhe diferença. São tragédias a que raramente ligamos, porque, adultos como somos, achamos que as mães só fazem falta às criancinhas criancinhas, erro crasso. Quando passou a viver sozinho, há mais de vinte anos, o Menino Jesus preferiu desviver até ao fim. Ali mesmo, num dos largos mais ruralmente nobres da cidade do Porto, zona de ricos e indiferença.
Sou pobre, mas passo lá quase todos os dias. Vi uma vez uma equipa da polícia a bater-lhe à porta. A PSP e a GNR andam a fazer um trabalho inestimável de identificação e encaminhamento dos idosos que moram sós e em risco. Acredito que têm salvo muitas vidas e só peço que se lembrem de mim se chegar a minha vez. Mas sei que a porta do Menino Jesus nunca se abriu.
O Menino Jesus morreu sozinho. E não devia. Não por ser Menino Jesus e "rico", mas porque ninguém deve morrer sozinho, como diz o meu amigo Lopes. Já basta o que basta, morrer já é fodido que chegue. E tenho de confessar que não sei se o Menino Jesus tinha exactamente 84 anos. Os jornais de mais logo darão a idade certa do homem, porque às vezes falam verdade nas notícias pequenas. Ou então morreu apenas mais um octogenário.
(Texto escrito e publicado originalmente no dia 9 de Maio de 2012)
Álvaro Cunqueiro 3
Díxenlle á rula
Díxenlle á rula: Pase miña señora!
E foise polo medio e medio do outono
por entre as bidueiras, sobre o río.
O meu anxo da garda, coas azas sob o brazo dereito,
na man esquerda a calabaciña da auga,
ollando a rula irse, comentóu:
- Calquera día sin decatarte do que fas
dices: Pase miña señora!
e é a alma tua a quen despides como un ave
nunha mañán de primavera
ou nun serán de outono.
"Herba Aquí ou Acolá", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
Díxenlle á rula: Pase miña señora!
E foise polo medio e medio do outono
por entre as bidueiras, sobre o río.
O meu anxo da garda, coas azas sob o brazo dereito,
na man esquerda a calabaciña da auga,
ollando a rula irse, comentóu:
- Calquera día sin decatarte do que fas
dices: Pase miña señora!
e é a alma tua a quen despides como un ave
nunha mañán de primavera
ou nun serán de outono.
"Herba Aquí ou Acolá", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
segunda-feira, 21 de dezembro de 2015
Natal é como o homem quiser
Olhei para o céu, estava estrelado. Mandei para trás. Eu tinha pedido escalfado.
domingo, 20 de dezembro de 2015
Cada um tem as epifanias que merece
Foto Hernâni Von Doellinger |
Uma vez eu fui à bola e tive uma revelação que até hoje. Uma epifania, como agora muito bem diz quem é mais fino do que eu, tarefa sem espinhas. Eram outros tempos, sobras de vacas gordas que ainda me davam para subir até à prazenteira companhia e insubstituível comida do Sr. Vilaça, no Conselheiro, em Paredes de Coura. Mas o jogo: no campo à borda da estrada, era um Castanheira-Paçô, prélio que eu prognosticava sem história, coisa para zero-zero ou menos, mas estava esfericamente enganado. Foram três secos em dia de chuva, frio e nevoeiro. Nevoeiríssimo. Nem um palmo eu via à frente do nariz, literalmente, e peço que, por favor, não se escandalizem com tanta literalidade: com uma mão a segurar o chuço e a outra enfiada no bolso das calças, a gozar o quentinho da ferramenta, não tinha um terceiro palmo à mão, só mesmo se pedisse um palmo emprestado ao parceiro do lado, e eu não estava para aí virado. Portanto, não via um palmo à frente do nariz, que fique assente. O nevoeiro, nevoeiríssimo, era tanto que às vezes, junto à outra baliza, eu seja ceguinho se não era capaz de jurar que os atletas de ambos os conjuntos, uma e outra equipa, cada qual por sua banda, estavam a jogar em braille. Ao árbitro já não chegava essa coisa nova que é a sinalética, apitava de megafone, marcava faltas por sms, e fosse o que Deus quisesse. E eu sem saber se o bloco era baixo e se a pressão era alta, matérias que me interessam sobremaneira. E o último terço do terreno, onde estaria o último terço do terreno?
Lá no alto da serra, o tecto de nevoeiro era tão denso, quase sólido, que aquilo já não era um campo de futebol, parecia mais um pavilhão gimnodesportivo, e eu ali dentro, compactado, com falta de ar, estou aqui estou a ligar para o 112. E cá está: como, ainda por cima, éramos apenas 19 pessoas e quatro gê-nê-erres a ouver o jogo, não se via mas ouvia-se tudo o que se passava dentro das quatro linhas. Foi assim que de repente, entra o primeiro, entra o segundo, as minhas enregeladas porém atentíssimas orelhas começaram a captar: "Vai, Caralho!", "Sobe, Caralho!", "Entra, Caralho!", "Sai, Caralho!", "Dá-lhe, Caralho!", "Força, Caralho!"... E eu cá para os meus botões, mais admirado era impossível: - Ai que caralho, queres tu ver, Hernâni, que o Caralho joga no Castanheira? Mas quem caralho será?
Estava, é preciso que se diga, admirado mas também intrigado, trabalho a dobrar e sem pagamento, ainda por cima ao domingo. A minha sorte foi que, aproveitando um bocanho, lá acabou por entrar o terceiro dos da casa, marcado pelo 10, imediatamente abraçado pela sua equipa em peso, a aberta deu para ver. "Golo, Caralho!", "Boa, Caralho!", "É assim mesmo, Caralho!", "És o maior, Caralho!", gritavam-lhe os eufóricos colegas, pendurando-se-lhe no pescoço. Com o árbitro a dizer que eram que horas e a festa a terminar, como manda a tradição, com calduços e palmadinhas no rabo, embora toda a gente saiba que não há gays no futebol, eu percebi finalmente: o número 10 é que é o Caralho.
P.S. - O Conselheiro do meu querido amigo D. Vilaça fechou no princípio do ano. É assunto sério, que não quero misturar com esta brincadeira. Pode ser que fale dele um destes dias.
Cantilena em tempo de guerra
Pára, pára - disse o pára. Mas o outro não parou. E o pára disparou. Pum!
sábado, 19 de dezembro de 2015
Alexandre O'Neill 3
Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
"Feira Cabisbaixa", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
"Feira Cabisbaixa", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
Manoel de Barros 3
O livro sobre nada
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu em 2014.)
É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.
Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu em 2014.)
Ernesto Guerra da Cal 2
Filho pródigo
Abre-me a Porta
Abre-me a Porta
Pai!
Abre-me a Porta!
Porque venho cansado
e derrotado
desfeito
pobre
e nu
e envergonhado
Tudo esbanjei
Só trago
encravados no peito
nele bem entranhados
os pungentes punhais
de todos os Pecados Capitais
Delapidei o rico Património
do teu Amor
na subida
arrogante e pressurosa
da Montanha da Vida
E hoje conheço a Dor
da descida agoniante
trémula e vagarosa
pela encosta abrolhosa
na que nos acompanha
só
o impiedoso demónio
da consciência dorida
da fortuna malgasta
dissipada
e a existência perdida
Abre-me a Porta
Pai!
E acende a luz da Casa
que outrora foi a minha
quando eu era inocente
criancinha
Não me tardes
Senhor!
Abre-me a tua Porta luminosa
depressa, por favor!
(Ernesto Guerra da Cal nasceu no dia 19 de Dezembro de 1911. Morreu em 1994.)
Vitorino Nemésio 3
- Mas não voltas tão cedo...
João Garcia garantiu que sim, que voltava. Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua hora. Eram fundos e azuis, debaixo de arcadas fortes. Baixou-os um instante e tornou:
- Quem sabe... ?
- Demoro-me pouco... palavra! Cursos de milicianos... Moeda fraca! Para a infantaria, três meses. Se não fecharem os concursos para secretários-gerais, então aproveito. Bem sei que há só três vagas e mais de cem bacharéis à boa vida... Mas não tenho medo das provas. Bastam algumas semanas para me preparar a fundo... rever a legislação.
Entrava em pormenores. Margarida ouvia-o agora vagamente distraída, de cabeça voltada às nuvens, como quem tem uma coisa que incomoda no pescoço, um mau jeito. O cabelo, um pouco solto, ficava com toda a luz da lâmpada defronte, de maneira que a testa reflectia o vaivém da sombra ao vento.
Estavam quase ao alcance da respiração um do outro: ela debruçada num muro de pedra de lava; ele na rampa de terra que bordava a estrada ali larga, acabando com a fita de quintarolas que vinha das Angústias até quase ao fim do Pasteleiro e dava ao trote dos cavalos das vitórias da Horta um bater surdo, encaixado. Dali a entrada da quinta corria um muro de pedra solta onde espreitavam trepadeiras, e só a uns vinte metros se erguia a parede nobre com o grande portão verde de padieira grossa, que ao abrir bem atrás, devido a uma posição mal calculada, batia na borda da sineta arrematada do naufrágio de um veleiro. Do lado oposto à cidade a estrada descrevia uma curva ao longo de muros de cerrados, onde os grilos pareciam, de Verão, o queixume da ilha abafada e em que pairava agora um pasmo solto de tudo, menos do mar. As lâmpadas da rede, lá para Porto Pim, faziam mais escura a massa de águas que devia rolar enrefegada a um começo de vento levantado, pouco e já duro. De vez em quando, o cão da quinta dos Dulmos, poucos metros atrás de Margarida, esticava a corrente e rosnava.
"Mau Tempo no Canal", Vitorino Nemésio
(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)
João Garcia garantiu que sim, que voltava. Os olhos de Margarida tinham um lume evasivo, de esperança que serve a sua hora. Eram fundos e azuis, debaixo de arcadas fortes. Baixou-os um instante e tornou:
- Quem sabe... ?
- Demoro-me pouco... palavra! Cursos de milicianos... Moeda fraca! Para a infantaria, três meses. Se não fecharem os concursos para secretários-gerais, então aproveito. Bem sei que há só três vagas e mais de cem bacharéis à boa vida... Mas não tenho medo das provas. Bastam algumas semanas para me preparar a fundo... rever a legislação.
Entrava em pormenores. Margarida ouvia-o agora vagamente distraída, de cabeça voltada às nuvens, como quem tem uma coisa que incomoda no pescoço, um mau jeito. O cabelo, um pouco solto, ficava com toda a luz da lâmpada defronte, de maneira que a testa reflectia o vaivém da sombra ao vento.
Estavam quase ao alcance da respiração um do outro: ela debruçada num muro de pedra de lava; ele na rampa de terra que bordava a estrada ali larga, acabando com a fita de quintarolas que vinha das Angústias até quase ao fim do Pasteleiro e dava ao trote dos cavalos das vitórias da Horta um bater surdo, encaixado. Dali a entrada da quinta corria um muro de pedra solta onde espreitavam trepadeiras, e só a uns vinte metros se erguia a parede nobre com o grande portão verde de padieira grossa, que ao abrir bem atrás, devido a uma posição mal calculada, batia na borda da sineta arrematada do naufrágio de um veleiro. Do lado oposto à cidade a estrada descrevia uma curva ao longo de muros de cerrados, onde os grilos pareciam, de Verão, o queixume da ilha abafada e em que pairava agora um pasmo solto de tudo, menos do mar. As lâmpadas da rede, lá para Porto Pim, faziam mais escura a massa de águas que devia rolar enrefegada a um começo de vento levantado, pouco e já duro. De vez em quando, o cão da quinta dos Dulmos, poucos metros atrás de Margarida, esticava a corrente e rosnava.
"Mau Tempo no Canal", Vitorino Nemésio
(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)
sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
Luís Pimentel 2
Xogo ruín
Aquil neno
pincháballe os ollos
ós paxaros;
e gustáballe ver saír
esa gotiña
de ar e de lus,
ise rocío limpo
de mañanciñas frescas.
Logo botábaos
a voar
e reíase de velos
toupar contra o valado
de súa casa,
con un ruído
moi triste.
Creceu e foi de aqueles.
"Sombra do Aire na Herba", Luís Pimentel
(Luís Pimentel nasceu no dia 18 de Dezembro de 1895. Morreu em 1958.)
Aquil neno
pincháballe os ollos
ós paxaros;
e gustáballe ver saír
esa gotiña
de ar e de lus,
ise rocío limpo
de mañanciñas frescas.
Logo botábaos
a voar
e reíase de velos
toupar contra o valado
de súa casa,
con un ruído
moi triste.
Creceu e foi de aqueles.
"Sombra do Aire na Herba", Luís Pimentel
(Luís Pimentel nasceu no dia 18 de Dezembro de 1895. Morreu em 1958.)
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
Erico Veríssimo 3
- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas... Mas viver é
morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um
contrato de compra e venda... e a gente nunca sabe o prazo certo do
vencimento. - A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse
em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca
expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada
menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. -
Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é
a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente
morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são
anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é
que a gente continua sem saber o que comprou... Por acaso você sabe?
"O Resto É Silêncio", Erico Veríssimo
(Erico Veríssimo nasceu no dia 17 de Dezembro de 1905. Morreu em 1975.)
"O Resto É Silêncio", Erico Veríssimo
(Erico Veríssimo nasceu no dia 17 de Dezembro de 1905. Morreu em 1975.)
Afrânio Peixoto 3
Quando, às cinco e meia, ia entrando na Lalet, saíam José e Stela, que me fizeram a acolhida amável de sempre.
- Chegou tarde, disse ela, para assistir a uma cena de romance, não dos que você imagina, mas dos que a vida improvisa. Olhe, o seu amigo ainda está comovido...
De facto, José estava pálido e o gesto ainda trémulo.
- Pois vamos tornar a tomar chá, e vocês me contarão...
Não aceitaram. Tomaram um carro e me meteram dentro dele. Tive de ouvir a história, em vez de meu chá. O romancista é um repórter sentimental.
... Estavam tranquilamente, entre chávenas e torradas, sentados a uma mesa próxima, onde se achava só um cavalheiro, quando se acercaram duas senhoras. Notaram que, apesar das maneiras e compostura de gentleman, ele não se levantara, à recepção, e apenas indicara, às recém-vindas, duas cadeiras próximas.
Uma delas, mais moça, quase bonita, abriu a bolsa e tirou um papel, desdobrando-o, como lhe mostrando a letra, ou assinatura. O sujeito meteu a mão à carteira e daí tirou também um papel. Trocaram os dois papéis e a senhora imediatamente rasgou o que recebera, em pedacinhos, que encerrou depois na sua bolsa. Isto feito, chamou a atenção do cavalheiro, que lhes vai ao encalço e, no corredor central, à altura da balaustrada, atingindo-as, com a mão aberta aplica, à que lhe falara, o castigo infame e bárbaro de, umas sobre as outras, bofetadas... Ela as recebe todas, sem gritos, sem reação, apenas mais apressada, até à porta, concertando o cabelo e o chapéu, e ganhando finalmente a rua. A outra mulher, dama de companhia talvez, limitou-se apenas a agarrar a mão da companheira, para ganharem um veículo. O homem deteve-se à porta, e volvendo, encontrou já próximos, numa espectativa de agressão, vários homens, até José, que só não interviera pela rapidez da cena e inermidade da ofendida, que apressara o seu castigo, não reagindo a ele.
- Imagine, interrompeu Stela, se o homem está armado e investe contra os que o cercaram. José estava na frente...
- Amanhã os jornais diriam que um marido enganado, depois de castigar a esposa, lhe havia alvejado o amante, e estava o José classé D. Juan...
Após um meio sorriso sem graça, o "ex-futuro Don Juan" continuou:
- Cada qual, sem palavras, em alguns segundos, recuou para o seu lugar; o combate cessara, por falta de combatentes; não iríamos protestar agora, se a interessada recebera sem protesto; mas o pseudo gentleman leu em todas as faces a mesma reprovação tácita... "Bárbaro! Numa mulher não se bate, nem com uma flor!"
[...]
Afrânio Peixoto
(Afrânio Peixoto nasceu no dia 17 de Dezembro de 1876. Morreu em 1947.)
- Chegou tarde, disse ela, para assistir a uma cena de romance, não dos que você imagina, mas dos que a vida improvisa. Olhe, o seu amigo ainda está comovido...
De facto, José estava pálido e o gesto ainda trémulo.
- Pois vamos tornar a tomar chá, e vocês me contarão...
Não aceitaram. Tomaram um carro e me meteram dentro dele. Tive de ouvir a história, em vez de meu chá. O romancista é um repórter sentimental.
... Estavam tranquilamente, entre chávenas e torradas, sentados a uma mesa próxima, onde se achava só um cavalheiro, quando se acercaram duas senhoras. Notaram que, apesar das maneiras e compostura de gentleman, ele não se levantara, à recepção, e apenas indicara, às recém-vindas, duas cadeiras próximas.
Uma delas, mais moça, quase bonita, abriu a bolsa e tirou um papel, desdobrando-o, como lhe mostrando a letra, ou assinatura. O sujeito meteu a mão à carteira e daí tirou também um papel. Trocaram os dois papéis e a senhora imediatamente rasgou o que recebera, em pedacinhos, que encerrou depois na sua bolsa. Isto feito, chamou a atenção do cavalheiro, que lhes vai ao encalço e, no corredor central, à altura da balaustrada, atingindo-as, com a mão aberta aplica, à que lhe falara, o castigo infame e bárbaro de, umas sobre as outras, bofetadas... Ela as recebe todas, sem gritos, sem reação, apenas mais apressada, até à porta, concertando o cabelo e o chapéu, e ganhando finalmente a rua. A outra mulher, dama de companhia talvez, limitou-se apenas a agarrar a mão da companheira, para ganharem um veículo. O homem deteve-se à porta, e volvendo, encontrou já próximos, numa espectativa de agressão, vários homens, até José, que só não interviera pela rapidez da cena e inermidade da ofendida, que apressara o seu castigo, não reagindo a ele.
- Imagine, interrompeu Stela, se o homem está armado e investe contra os que o cercaram. José estava na frente...
- Amanhã os jornais diriam que um marido enganado, depois de castigar a esposa, lhe havia alvejado o amante, e estava o José classé D. Juan...
Após um meio sorriso sem graça, o "ex-futuro Don Juan" continuou:
- Cada qual, sem palavras, em alguns segundos, recuou para o seu lugar; o combate cessara, por falta de combatentes; não iríamos protestar agora, se a interessada recebera sem protesto; mas o pseudo gentleman leu em todas as faces a mesma reprovação tácita... "Bárbaro! Numa mulher não se bate, nem com uma flor!"
[...]
Afrânio Peixoto
(Afrânio Peixoto nasceu no dia 17 de Dezembro de 1876. Morreu em 1947.)
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
Olavo Bilac 3
Língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceanos largos!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
"Tarde", Olavo Bilac
(Olavo Bilac nasceu no dia 16 de Dezembro de 1865. Morreu em 1918.)
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceanos largos!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
"Tarde", Olavo Bilac
(Olavo Bilac nasceu no dia 16 de Dezembro de 1865. Morreu em 1918.)
terça-feira, 15 de dezembro de 2015
Há horas felizes 7
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
João Sarmento Pimentel 2
O automóvel parou ao lado da igreja do Mosteiro de Santa Cruz, onde está agora instalado um café-restaurante e foi, tempos idos há muito, a capela do recolhimento de S. João das Donas enclaustradas. Aquele eruditos cónegos regrantes de Santo Agostinho, vê-se pela vizinhança que não esqueciam a recomendação do seu patrono e grande doutor da Igreja - "se não puderes ser casto, sê cauto". Era bem fácil, ali à mão de semear, salvar as aparências. E nem havia que pular a cerca, já que o jardim da Manga tinha uma porta com aldraba corrediça, dizem, que dava para o claustro do mosteirinho das virtuosas penitentes. É muito natural haver ali também, e nessa mesma porta, a tranca que poderemos chamar da moralidade, e que vedada abusos duma ou da outra das partes. Tenho como certo ficar a tal segurança colocada do lado que dava para o claustro dos frades, mesmo porque quem estabelecia as penitências eram eles, austeros confessores, e não as humildes pecadoras, diletíssimas servas do Senhor...
"Memórias do Capitão", João Sarmento Pimentel
(João Sarmento Pimentel nasceu no dia 14 de Dezembro de 1888. Morreu em 1987.)
"Memórias do Capitão", João Sarmento Pimentel
(João Sarmento Pimentel nasceu no dia 14 de Dezembro de 1888. Morreu em 1987.)
domingo, 13 de dezembro de 2015
Pedro Luís
O leque de marfim
Ela estava bonita a enlouquecer a gente!
Viva, fresca, feliz... gostei de vê-la assim!
Da música ao murmúrio estremecia ardente
E, rindo, machucava o leque de marfim.
Seus olhos eram negros, veludosos, puros...
Dois abismos! Dois céus! Fitei-os a tremer!
Costumado a trilhar caminhos sempre escuros,
Tenho medo da luz... Meu Deus, eu não quis ver.
Mas ela fascinava... Era um olhar, mais nada...
Rebelde, o coração nessa hora me traiu!
Aos dedos dessa virgem a ânfora sagrada
Entornando perfume à luz do sol se abriu.
Encostei-me ao piano. A chácara viçosa
Entoava das flores lânguida canção.
Eu cismava... - sei lá! - no céu, no mar, na rosa...
E minh’alma se foi nas asas da paixão.
Bem como o viajante em regiões polares
Que recorda chorando o seu torrão natal,
E avista de repente, incendiando os mares,
O divino esplendor da aurora boreal,
Assim eu triste, só, sem sombra d'esperança,
Dos gelos da descrença aonde vim parar
Sondei aquele riso! Amei essa criança,
Foi-me aurora de amor o negrejante olhar.
Brilhe embora uma vez... Banhou-me a luz divina
Vale uma eternidade um dia sempre assim...
Sempre hei de me lembrar da cândida menina
Que rindo machucava o leque de marfim.
Pedro Luís
(Pedro Luís Pereira de Sousa nasceu no dia 13 de Dezembro de 1839. Morreu em 1884.)
Ela estava bonita a enlouquecer a gente!
Viva, fresca, feliz... gostei de vê-la assim!
Da música ao murmúrio estremecia ardente
E, rindo, machucava o leque de marfim.
Seus olhos eram negros, veludosos, puros...
Dois abismos! Dois céus! Fitei-os a tremer!
Costumado a trilhar caminhos sempre escuros,
Tenho medo da luz... Meu Deus, eu não quis ver.
Mas ela fascinava... Era um olhar, mais nada...
Rebelde, o coração nessa hora me traiu!
Aos dedos dessa virgem a ânfora sagrada
Entornando perfume à luz do sol se abriu.
Encostei-me ao piano. A chácara viçosa
Entoava das flores lânguida canção.
Eu cismava... - sei lá! - no céu, no mar, na rosa...
E minh’alma se foi nas asas da paixão.
Bem como o viajante em regiões polares
Que recorda chorando o seu torrão natal,
E avista de repente, incendiando os mares,
O divino esplendor da aurora boreal,
Assim eu triste, só, sem sombra d'esperança,
Dos gelos da descrença aonde vim parar
Sondei aquele riso! Amei essa criança,
Foi-me aurora de amor o negrejante olhar.
Brilhe embora uma vez... Banhou-me a luz divina
Vale uma eternidade um dia sempre assim...
Sempre hei de me lembrar da cândida menina
Que rindo machucava o leque de marfim.
Pedro Luís
(Pedro Luís Pereira de Sousa nasceu no dia 13 de Dezembro de 1839. Morreu em 1884.)
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