domingo, 6 de dezembro de 2015

Urbano Tavares Rodrigues 4

Pela janela aberta entra uma lufada de calor, o sopro bárbaro deste Julho que até dilata as portas e greta as paredes. Todo o bairro sua um sono de pequena morte. Do fundo do tempo e desse calor vêm uns dedos enormes, em brasa, angustiar a face sonâmbula da mulher que se senta em frente do juiz, puxando para baixo a saia indiscreta de seda rosada.
O inspector descobre então as delicadas veias daquelas pernas ainda jovens, que a crueza do sol também atormenta.
A respiração da cidade atroada pela zanga permanente dos cláxons tem um cheiro meridional a jasmim, a peixe frito e ao obscuro vinho do crime. Na calma relativa daquele bairro residencial, o DIAP fervilha de interrogatórios, depoimentos, passos e empurrões nos corredores e muita desgraça aviada.
- Sandra Carvalhal Henriques?
- Sim.
- Sr.ª engenheira, a senhora não se dá bem com o seu marido?
- Por que me faz essa pergunta, sr. inspector?
- Tem o direito de não responder. De resto, nem é indispensável que responda. Só estou a tentar compreender esta embrulhada toda.
- Pois, se quer que lhe diga, até me dou bem com o meu marido. Quase nunca discutimos, vivemos em boa harmonia. Só que... Apeteceu-me ter uma amizade colorida. Ou nem isso: um encontro bonito. Se desse certo... Foi uma amiga que me falou em usar a
internet... É mais prático. E é anónimo.
- A senhora é engenheira informática?
- Sim.
- Isso agora é moda? Essas conversas preliminares, esses encontros?
- Não sei se é moda, faz-se.
- E deu certo?
- Mais ou menos.

 
"O Eterno Efémero", Urbano Tavares Rodrigues

(Urbano Tavares Rodrigues nasceu no dia 6 de Dezembro de 1923. Morreu em 2013.)

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