Eram monótonos os dias no sítio do furo da Sapucaia. Padre Antônio de Morais acordava ao romper d’alva, quando os japins, no alto da mangueira do terreiro, começavam a executar a ópera-cômica cotidiana, imitando o canto dos outros pássaros e o assovio dos macacos. Erguia-se molemente da macia rede de alvíssimo linho, a que fora outrora do Padre-Santo João da Mata - espreguiçava-se, desarticulava as mandíbulas em lânguidos bocejos, e depois de respirar por algum tempo no copiar a brisa matutina, caminhava para o porto, onde não tardava a chegar a Clarinha, de cabelos soltos e olhos pisados, vestindo uma simples saia de velha chita desmaiada e um cabeção de canículo enxovalhado. Metiam-se ambos no rio, depois de se terem despido pudicamente, ele oculto por uma árvore, ela acocorada ao pé da tosca ponte do porto, resguardando-se da indiscrição do sol com a roupa enrodilhada por sobre a cabeça e o tronco. Depois do banho longo, gostoso, entremeado de apostas alegres, vestiam-se com idênticas precauções de modéstia, e voltavam para a casa, lado a lado, ela falando em mil coisas, ele pensando apenas que o seu colega João da Mata vivera com a Benedita da mesma maneira que ele estava vivendo com a Clarinha. Quando chegavam a casa, ele ficava a passear na varanda, para provocar a reação do calor, preparando um cigarro enquanto ela lhe ia arranjar o café com leite. João Pimenta e Felisberto passavam para o banho, depois de uma volta pelo cacaual e pela malhada, a ver como ia aquilo. Servido o café com leite, auxiliado de grossas bolachas de carregação ou de farinha-d’água, os dois tapuios saíam para a pesca, para a caça ou iam cuidar da sua lavourazinha. A rapariga entretinha-se em ligeiros arranjos de casa, em companhia de Faustina, a preta velha, e ele, para descansar da escandalosa mandriice, atirava o corpo para o fundo duma excelente maqueira de tucum, armada no copiar - para as sestas do defunto Padre-Santo. A Clarinha desembaraçava-se dos afazeres domésticos, e vinha ter com ele, e então o Padre, deitado a fio comprido, e ela sentada na beira da rede passavam longas horas num abandono de si e num esquecimento do mundo, apenas entrecortado de raros monossílabos, como se se contentassem com o prazer de se sentirem viver um junto do outro, e de se amarem livremente à face daquela esplendorosa natureza, que num concerto harmonioso entoava um epitalâmio eterno.
"O Missionário", Inglês de Sousa
(Inglês de Sousa nasceu no dia 28 de Dezembro de 1853. Morreu em 1918.)
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