quinta-feira, 31 de maio de 2018

O velho contador de anedotas

Foto Hernâni Von Doellinger

Levava um banquinho e sentava-se em Cima da Arcada, de guarda-sol, se fosse o caso, e um caderninho de folhas quadriculadas, sempre. Espertava os olhos cansados, via sair, e tomava nota. Saíam do Mário da Louça, do Damião Monteiro, do Café Império, do Talho, da Caixa, do Martins da Avenida, do Rabeca, da Câmara, do Casinhas, da Senhora Eufémia, do Américo das Bicicletas, do Alfredo Sapateiro, das Lobas, da Loja Nova, da Casa da Cera, dos Armazéns Cunha, do Banco. Saíam, e ele registava, mão trémula porém infalível. Analfabeto de nascença, utilizava a técnica do Miguel Cantoneiro, ecumenicamente adaptada: uma cruzinha para os como ele, uma cruz para os menos mal e um cruzeiro para os cagões locais. À noite, em casa, depois da sopa e antes do terço, fazia a soma, por escalões, comparava com os dias anteriores, as contas todas certinhas, noves fora nada, e arquivava no saco de serapilheira debaixo da cama. Era um excelente contador de anedotas.

Interlúdio fotográfico 19

Foto Hernâni Von Doellinger

O melhor ainda está para vir

O melhor ainda estava para vir. Era o Antunes. Chegava sempre atrasado...

Mariscando 11

Foto Hernâni Von Doellinger

Walflan de Queiroz 2

Hart Crane

Construamos uma ponte definitiva
Que sirva de ligação eterna entre Ocidente e o Oriente.
Uma ponte universal, maior do que a de Brooklyn
Irmanando pretos e brancos, ricos e proletários,
No grande dia inesquecível
Da paz e do amor entre os povos.
Então o mar devolverá teu corpo eo mundo em alegria.

"O Tempo da Solidão", Walflan de Queiroz

(Walflan de Queiroz nasceu no dia 31 de Maio de 1930. Morreu em 1995.)

Vida de cão 341

Foto Hernâni Von Doellinger

Ramón Piñeiro 3

Deica entón - deica os 6 anos - a miña lingua única fora o galego, así que o choque máis importante que me produciu a escola foi o cambio de lingua. O escolante, que era de Lugo, falaba en castelán dentro e fóra da escola e falábao con todo o mundo, mesmo que fosen nenos ou vellos, homes ou mulleres, labregos ou cregos. Non facía a menor concesión. Falaba en castelán coa intransixente firmeza de quen cumpre un alto e sagrado deber. [...]

"Da Miña Acordanza", Ramón Piñeiro

(Ramón Piñeiro nasceu no dia 31 de Maio de 1915. Morreu em 1990.)

Caminho 493

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Em primeira mão

Corno de África apresenta queixa contra incertos por difamação.

Mais difícil ainda...

Foto Hernâni Von Doellinger

O borra-botas e o cagão

Cuidado, estamos em terreno escorregadio. Elaboramos aqui sobre dois conceitos aparentemente correlativos - quero dizer, o borra-botas, antes de o ser, é cagão, e o cagão, após sê-lo, é borra-botas, há quem pense -, mas não é necessariamente assim. Vejamos:
Borra-botas, posto que começou por significar engraxador, ou, sejamos compreensivos, engraxador desastrado, espécie de expressionista abstracto do rez-de-chaussée, é nome que hoje em dia define indivíduo sem valor, safardana, bisbórria, biltre, patife, salafrário, bigorrilha, pulha, bandalho, trapalhão, troca-tintas, joão-ninguém, zé-ninguém, zero-à-esquerda.
Debrucemo-nos agora sobre o cagão: é originalmente o indivíduo que defeca (ou que se peida, se for em Fafe) com entusiástica frequência e notoriedade, mas o termo passou também a servir para identificar o homem medroso, caguinchas, medricas, cagarola, ou, por outro lado, o vaidoso, o presunçoso, o arrogante, o snobe, o pedante, o gabarola, o armante, o enfatuado, o figurão, o tem-a-mania. E este é que é o ponto...

Offshore, se fashavore 162

Foto Hernâni Von Doellinger

Xavier Costa Clavell 3

O verán seguinte a ter aprobado en xuño o exame de ingreso no Instituto de Santiago, o meu pai, que se sentiu moi ledo, fíxome un regalo que moito estimei: deume unha importante cantidade de diñeiro e díxome:
- Vai este verán a dar unhas voltas pola Costa da Morte, que é moi interesante e belida.
Tiña daquela once anos e unha liberdade que para sí quixeran moitos mozos de máis idade ca que min.

"Fillo do Vento", Xavier Costa Clavell 

(Xavier Costa Clavell nasceu no dia 30 de Maio de 1923. Morreu em 2006.)  

Caminho 492

Foto Hernâni Von Doellinger

Anne Marie Morris 2

Ensoños fora dos ensoños

Soños,
ensoños fora dos ensoños...
hastra que ti me apañache
nos teus brazos
e todol-os meus ensoños
foron espallándose
polos camiños

"Voz Fuxitiva", Anne Marie Morris

(Anne Marie Morris nasceu no dia 30 de Maio de 1916. Morreu em 1999.)

A nobre arte... 2

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 29 de maio de 2018

Microcontos & outras miudezas 87

Homem de família
A família, para ele, era tudo. Aliás, tinha duas.

Casamento real
Hoje, algures em Portugal, o José Silva casou com a Maria Pereira, aliás Silva. Este, sim, é um casamento real.

Para os dois lados
"Duro à frente e macio atrás". Fala-se evidentemente da escolha de pneus numa corrida de motos, mas... quer-se dizer...

Cinco minutos de doze em doze horas
Foi à farmácia e comprou três quartos de hora. Afinal, o tempo é o melhor remédio...

Nunca se sabe o dia de amanhã
Pegou em seis horas e meia e meteu-as cuidadosamente no cofre. Afinal, tempo é dinheiro...

In vino veritas, in aqua sanitas
Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas?...

Mal passado
A questão é muito simples: será insulto chamar bife ao camone?...

Também faço isto muito bem 38

Foto Hernâni Von Doellinger

Adolfo Caminha 2

Zé Pacato

Ora bolas!... Ora balas!...
Eis-me aqui as cabriolas,
Posso agora, sem virá-las,
minhas balas, minhas bolas.

Deu-me agora nas violas
Inventar esta secção,
Para balas... para bolas...
Carambolas... que me dão!

O meu programa
É este sem mais: 
Fazer versos
Que deem-me fama.

E sendo, leitor assim
Quero que a elas leitora
Rimando a canção sonora,
Bondosa, goste de mim.

E eu fugindo agora dela
Mais ligeiro do que um gato
Humilde, sem mais, aquela,
Me assino de
Zé Pacato

Adolfo Caminha

(Adolfo Caminha nasceu no dia 29 de Maio de 1867. Morreu em 1897.)

Mariscando 10

Foto Hernâni Von Doellinger

Agustín Fernández Paz 2

O enigma do menhir

Hai ensinanzas que só a vida che pode aprender, pois é o paso dos anos quen nos vai facendo aceptar o que outrora xulgariamos insoportable. Cando se chega á miña idade, afeita a convivir de xeito permanente coa traxedia que tanto me marcou, a angustia perde os seus peores matices e acaba por integrarse na memoria coma se fose un vello membro do clan familiar. [...]

Agustín Fernández Paz

(Agustín Fernández Paz nasceu no dia 29 de Maio de 1947. Morreu em 2016.)

Caminho 491

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Histórias do 28 de Maio

Generoso, mais rápido do que uma linha recta
A menor distância entre dois pontos é uma recta? Nem sempre. Às vezes a menor distância entre dois pontos pode ser uma curva. Aqui não se trata de ciência, é mero exercício de memória. Por exemplo: lembram-se do Generoso? Claro que não se lembram do Generoso. Mas eu explico: o Generoso era um extremo brasileiro que jogou no SC Braga bem no início da década de setenta do século passado, por alturas da segunda divisão, se não me engano. O Generoso (e decerto um nome assim nunca foi tão bem empregue), o Generoso, dizia eu, era tão rápido, corria tanto, que, quando atacava e levava um adversário à ilharga, despossuído de outros e melhores argumentos técnicos, chutava a bola para a frente, saía do relvado, contornava o defesa pela pista de cinza, e - espantem-se! - ainda chegava lá primeiro.
Para que nos entendamos, o relvado e a pista de cinza eram no Estádio 28 de Maio, em Braga. Sim, antes do 25 de Abril de 1974, o Estádio 1.º de Maio chamava-se Estádio 28 de Maio. O que só demonstra (raciocínio palerma e suinamente fascistóide) que a Outra Senhora levava 27 dias de avanço em relação a Esta Senhora e que as revoluções cometem-se para mudar os nomes das ruas, praças, pontes, estádios e outro imobiliário. Mas eu também vi o Generoso executar a sua supersónica façanha no então pelado do meu Fafe, onde o resvés com os pilares de cimento e com os tubos metálicos da vedação conferia um toque extra de emoção e perigo ao espectáculo. O Generoso, sempre na mecha e a passar calafriantes tanjas ao excelentíssimo público e ao desastre, trazia-me à cabeça o encantatório e fanhoso reclame altifalante do poço-da-morte, nos dias dos 16 de Maio e da Senhora de Antime: também ali havia "arrojo, coragem, audácia, cooommm-ple-to desprezo pela vida". E eu sempre achei que o Generoso devia jogar de capacete. 

Quando o 1.º de Maio era no dia 28
Antigamente o 1.º Maio era no dia 28 do mesmo. Quando digo antigamente quero dizer antes do 25 de Abril de 1974, que já é antigamente que chegue. Um por exemplo: o estádio do SC Braga na Ponte, antes da extraordinária Pedreira do arquitecto Souto Moura, chamava-se, como já contei, Estádio 28 de Maio, glorificando o golpe militar que naquela data, em 1926, derrubou a Primeira República e abriu caminho à ditadura do Estado Novo. De corte fascista, o 28 de Maio tentava aparentar-se e rivalizar com o Estádio Nacional, no Jamor, ou em Oeiras, consoante a dor de cotovelo de cada qual, e foi inaugurado, em 1950, por Salazar e Carmona, que assim dito até parecem uma alegre sociedade de costureiros. Veio a revolução e o estádio mudou de nome, passou a chamar-se Estádio 1.º de Maio, viva o Dia dos Trabalhadores, viva a classe operária!, mais ajuizado seria que se tivesse chamado sempre Campo da Quinta da Mitra.
Querem outro por exemplo? O Estádio 25 de Abril, em Penafiel. Antes da "política", aquele terreiro chamava-se Campo das Leiras. E que mal é que tinha o nome?...

Também faço isto muito bem 37

Foto Hernâni Von Doellinger

José Craveirinha 5

Pena

Zangado
acreditas no insulto
e chamas-me negro.

Mas não me chames negro.

Assim não te odeio.
Porque se me chamas negro
encolho os meus elásticos ombros
e com pena de ti sorrio.

"Babalaze das Hienas", José Craveirinha 

(José Craveirinha nasceu no dia 28 de Maio de 1922. Morreu em 2003.)

Caminho 490

Foto Hernâni Von Doellinger

domingo, 27 de maio de 2018

À capela

Cantava muito bem à capela. Pediram-lhe que cantasse à igreja. Disse que ainda não estava preparado...

Também faço isto muito bem 36

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Veiga Leitão 2

Manhã

- Bom dia. Diz-me um guarda.
Eu não ouço... apenas olho
das chaves o grande molho
parindo um riso na farda.

Vómito insuportável de ironia
Bom dia, porquê bom dia?

Olhe, senhor guarda
(no fundo a minha boca rugia)
aqui é noite, ninguém mora,
deite esse bom dia lá fora
porque lá fora é que é dia!

"Noite de Pedra", Luís Veiga Leitão

(Luís Veiga Leitão nasceu no dia 27 de Maio de 1912. Morreu em 1987.)

Mariscando 9

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Teixeira Gomes 4

O meu quarto na hospedaria Fra Giaccomo, em Smirna, era uma gaiola de vidro suspensa sobre o mar, e isso concorreu muito para que eu aí me demorasse mais do que projectara. Não que o panorama fosse risonho; bem pelo contrário. A desarmónica imensidade do golfo, a disposição das esmagadoras montanhas vizinhas, a cidade que não brilha, com o seu casario escuro apinhado nas encostas, nas alturas recortadas de ameias, restos de arruinadas fortificações antigas, todo este conjunto formava um quadro melancólico. [...]

"Novelas Eróticas", Manuel Teixeira Gomes

(Manuel Teixeira Gomes nasceu no dia 27 de Maio de 1860. Morreu em 1941.)

sábado, 26 de maio de 2018

Fafe, por exemplíssimo

Foto Hernâni Von Doellinger

Felicidade é coisa pouca e tudo.
Por exemplo. Vou a Oliveira de Azeméis e levo uma data de "Ó jovem!", geralmente debitada por gentis indivíduos de bandeja na mão e com idade para serem, vá lá, meus netos. Afino. Afino solenemente. Por exemplo. Aqui em Matosinhos, vou ao peixinho ao fim da minha rua, porque na minha rua passa o mar, e o povo do mar, velhos pescadores ou a minha querida peixeira, tratam-me por "Amiguinho!", e não vou dizer que desgosto. Gosto um bocadinho. Porém: torno a Fafe, por exemplo, e as pessoas, algumas com idade para serem, vá lá, meus filhos, chamam-me "Meu rico menino!", e eu comovo-me, gosto, gosto, gosto. Fico feliz da vida. Por mim e por Fafe ser tão entranhadamente de afectos. Quer-se dizer: todas as terras são por exemplo, mas algumas são mais por exemplo do que outras. E, puxando a brasa à minha sardinha, deixem-me que vos diga: Fafe é, apesar dos pesares e modéstia à parte, uma terra por exemplíssimo...

Mobiliário urbano (propriamente dito) 68

Foto Hernâni Von Doellinger

Próxima paragem, Timor

A menina dos altifalantes avisa-me, numa voz metálica e sincopada, de andróide: "Próxima paragem, Timor." Sobressalto-me, de repente o coração enche-se-me de egrégios avós, de coragem que nunca tive, às armas às armas, digo, maubere people, canto, emociono-me de mim, Ai Timor, os olhos afogados em lágrimas, olho pela vigia, o mar calmo e eu agoniado, faço as últimas orações, seja o que Deus quiser, dou o peito às balas... e dou também fé que estou no 500, o autocarro da STCP que faz a ligação entre o Mercado de Matosinhos e a portuense Praça da Liberdade, viceversando. Para quem vai, Timor fica entre as paragens do Castelo do Queijo e do Homem do Leme, Avenida Montevideu, Foz, e antes assim.

Foto Hernâni Von Doellinger

Glória de Sant'Anna 2

Recado

Se eu morreu longe
sepulta-me no mar
dentro das algas ignorantes
e lúcidas.

Cobre o meu rosto de palavras
antigas
e de música.

Deixa em meus dedos
a memória mais recente
de outras coisas inúmeras

e nos meus cabelos
o incerto movimento
do vento e da chuva.

Eu vogarei sob as estrelas
com pálidas luzes entre os cílios
e pequenos caramujos
entrarão nos meus ouvidos.

Estarei assim idêntica
a todos os motivos.

"Música Ausente", Glória de Sant'Anna

(Glória de Sant'Anna nasceu no dia 26 de Maio de 1925. Morreu em 2009.)

Caminho 489

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruben A. 5

A cidade de noite está acordada, como os gatos nas vielas, procura recolher-se a uma luminosidade íntima. Manipula seus hábitos, conta histórias, passeia, combina com a verdade o que vai acontecer quando daí a pouco a luz inunda os olhos dos bichos e os telhados das casas.

"O Outro Que Era Eu", Ruben A.
 
(Ruben A. nasceu no dia 26 de Maio de 1920. Morreu em 1975.)

Offshore, se fashavore 161

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 25 de maio de 2018

O calor dilata os copos

Praticante de fino durante três quartos do ano, chegava ao Verão e dedicava-se à caneca. Dizia: - O calor dilata os copos...

Só destes, tenho sete 23

Foto Hernâni Von Doellinger

Barros Pinho 2

Ode ao amor do mar

Gosto do mar
pelo absurdo
sensual
de suas sereias
pelo encrespar
do vento
no ventre
de peixes
abomináveis

pelo lésbico
despudor
das ondas
violentando
as águas

gosto do mar
absorvendo
sol
na máscara
de bronze
dos pescadores

gosto do mar
mistério azul
das mulheres-marinhas
visivelmente estranguladas

gosto do mar
concupiscente
e paradoxal
em seus horrores

Barros Pinho

(Barros Pinho nasceu no dia 25 de Maio de 1939. Morreu em 2012.)

Mariscando 8

Foto Hernâni Von Doellinger

Max de Vasconcelos 2

Agonias

Cai o sol no delírio do poente,
em plena floração brilha o luar...
das ruínas da igreja secular
bimbalha o bronze doloridamente...

Max de Vasconcelos

(Max de Vasconcelos nasceu no dia 25 de Maio de 1891. Morreu em 1919.)

Il Cammino 488

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Lois Pereiro 5

Cartografía

Cal morto xa
ou vencido
falo sen min
e durmo
no desastre

Debera ser posible
facer mapas de odio
e os húmidos monólogros
das cisternas
de noite
descifrar

"Poemas 1981-1991", Lois Pereiro

(Lois Pereiro nasceu no dia 16 de Fevereiro de 1958. Morreu no dia 24 de Maio de 1996.)

Delícias do mar (vamos lá definir!...)

Foto Hernâni Von Doellinger

Areia macia e morna, água, o sal da terra, cheiro a argaço, sol quando Deus quer, a brisa nas ventas, o falar das ondas, o silêncio do horizonte a ganhar de vista, madrugadas de pés molhados, ocasos de fogo, Apúlia, um fino bem tirado, pescadores, peixeiras, surfistas, parassurfistas, ciclistas e todos os tipos de nudistas, a Foz, Matosinhos, a ver navios, os números do Porto de Leixões, camarão da costa, gambas no Peixoto de Fafe, cracas em São Mateus, alcatra de peixe no Boca Negra, lapas em casa do Victor e da Ana, ilha Terceira, ilha Terceira, ilha Terceira, ecos de Nemésio, mexilhões de vinagreta, masoquistas esturricando agosto e areando os entrefolhos, amêijoas à Bulhão Pato no portinho de Âncora, o bacalhau assado na brasa do Senhor Álvaro em Valença, o bacalhau assado no forno pela minha mãe, o bacalhau de quarto da minha avó de Basto, os bolinhos de bacalhau da minha avó da Bomba, a punheta de bacalhau do meu cunhado Álvaro, as trutas "do Coura" do querido amigo Vilaça Pinto, que, palavra de honra, era como se fossem marítimas, polvo de molho-verde, as lulas recheadas da minha sogra, as sardinhas da Dona Dina, navalhas na chapa, arroz de tomate com petinga, ou com jaquinzinhos, ou arroz de grelos com, ou arroz de feijão com, mas malando, malandro, malandro, ou, supra-sumo dos supra-sumos, o arroz de feijão vermelho com grelos e bacalhau frito da minha cunhada Isabel, fanecas, biqueirão, marmotinha de rabo na boca, filetes de peixe-galo, a raia frita do Salta o Muro aqui à porta, a lagosta da ilha de São Jorge comida à ganância e à moina, as percebes da ilha do Sal, as bandejas das rias galegas, carapaus grelhados no quintal do meu sogro, ostras de Setúbal degustadas em Bordéus, a mastodôntica cabeça de pescada que vou cozer para o jantar, os tremoços da Marrequinha da Recta. Isto são delícias do mar. Outra coisa não:
Fitas de nastro tingidas de cor-de-rosa gomitado, cortadas em palitos empacotados em vácuo e refrigerados não são, por mais que lhes chamem, delícias do mar! Não, não e não!

Globetrotter 16

Foto Hernâni Von Doellinger

Mal passado

A questão é muito simples: será insulto chamar bife ao camone?...

Vida de cão 340

Foto Hernâni Von Doellinger

Ferreira de Castro 6

[...] Era uma rua estreitíssima, que cheirava a burros, a porcos e a fumo de ramos verdes. Dela partiam outras tortuosas vielas, que terminavam em pátios ou dobravam em cotovelos, cruzando-se, avançando para sombrios recantos, numa sugestão de labirinto. [...]

"A Lã e a Neve", Ferreira de Castro

(Ferreira de Castro nasceu no dia 24 de Maio de 1898. Morreu em 1974.)

Mobiliário urbano (propriamente dito) 67

Foto Hernâni Von Doellinger

José Terra 2

Insegurança

Tenho medo de ti, ó meu irmão,
Dessas palavras mansas tenho medo,
Se até as pedras ouvem o segredo
Guardado nos confins do coração...

Tenho receio, amor, dessa canção
Que tu me cantas, desse teu enredo,
Será teu corpo a nau para o degredo,
Teus braços nus as grades da prisão?

Minha mãe! minha mãe! não te confio
O meu destino e é vão esse teu pranto!
Não trairás acaso o filho amado?

Não me conheço nesta voz que rio,
Espreitam-me assassinos, e, no entanto,
É um criminoso o que ficar calado!

"Canto da Ave Prisioneira", José Terra

(José Terra nasceu no dia 24 de Maio de 1928. Morreu em 2014.)

Na minha rua passa o mar 15

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Philip Roth (1933-2018)

Ou deixas de foder outras ou está tudo acabado.
Foi este o ultimato, o exasperante, inacreditável e absolutamente imprevisto ultimato que a amante de cinquenta e dois anos fez lavada em lágrimas ao seu amante de sessenta e quatro, no aniversário de uma ligação que persistira com espantosa licenciosidade - e que não menos espantosamente se mantivera secreta - durante treze anos. Mas agora, com as secreções hormonais a refluir, a próstata a dilatar-se e um horizonte verosímil de não mais do que poucos anos de potência semiconfiável da parte dele - e talvez nem isso de vida restante -, agora, na proximidade do fim de tudo, estava intimado a virar-se do avesso sob pena de a perder.

"Teatro de Sabbath", Philip Roth

Quando o Texas era em Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger

O Texas era um tasco em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e eu nunca soube derivado a quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto e branco e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois (com)passos, coisa tão a calhar, com o querido Senhor Ferreira do Hospital ou com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...
Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que tinha uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia...
Em todo o caso: no Texas, no nosso Texas, um pascácio do calibre de Donald Trump nunca seria eleito sequer para fazer a escrita da sueca...

Mariscando 7

Foto Hernâni Von Doellinger

Pedro Dantas 2

Auto-crítica

Quando romântico
inconformado
era o meu cântico
descabelado.

Sereno esteta
grego-romano
depois fui poeta
parnasiano.

E modernista:
meu verso lírico
mais que realista
já foi homérico.

Hoje, entretanto, meu verso quero
do sentimento de toda gente
fácil, sem arte, rude, fatal,
de frases feitas, como os de Homero,
e com a força secreta e ardente
dos grandes sambas de carnaval.

Pedro Dantas

(Pedro Dantas nasceu no dia 23 de Maio de 1904. Morreu em 1977.)

Caminho 487

Foto Hernâni Von Doellinger

Carlos de Assumpção 2

Linhagem

Eu sou descendente de Zumbi
Sou bravo valente sou nobre
Os gritos aflitos do negro
Os gritos aflitos do pobre
Os gritos aflitos de todos
Os povos sofridos do mundo
No meu peito desabrocham
Em força em revolta
Me empurram pra luta me comovem
Eu sou descendente de Zumbi
Zumbi é meu pai e meu guia
Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim
Eu trago os duros punhos cerrados
Cerrados como rochas
Floridos como jardins

Carlos de Assumpção

(Carlos de Assumpção nasceu no dia 23 de Maio de 1927)

O sole mio!...

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 22 de maio de 2018

In vino veritas, in aqua sanitas

Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas?...

De calcanhar...

Foto Hernâni Von Doellinger

Nunca se sabe o dia de amanhã

Pegou em seis horas e meia e meteu-as cuidadosamente no cofre. Afinal, tempo é dinheiro...

Vida de cão 339

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Germano Almeida, Prémio Camões 2018

A leitura do testamento cerrado do Sr. Napumoceno da Silva Araújo consumiu uma tarde inteira. Ao chegar à 150.ª página o notário confessava-se já cansado e interrompeu mesmo para pedir que lhe levassem um copo de água. E enquanto bebia pequenos golinhos, desabafou que de facto o falecido, pensando que fazia um testamento, escrevera antes um livro de memórias. [...]

"O Testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo", Germano Almeida

Interlúdio fotográfico 18

Foto Hernâni Von Doellinger

António Arnaut (1936-2018)

Portucale

As montanhas abrem alas. Vai passar
o rio d'ouro da lusa madrugada.
Ânsia em socalcos sobre o vale
a saudar
o começo da vida:
Portucale
não é porto de chegada,
é o sal
e a fome aventurosa da partida.

"Recolha Poética (1954-2017)", António Arnaut

(António Arnaut nasceu no dia 28 de Janeiro de 1936. Morreu hoje.)

The Way 486

Foto Hernâni Von Doellinger

Olga Savary

Acomodação do desejo III

Deito-me com quem é livre à beira dos abismos
e estou perto do meu desejo.
Depois do silêncio úmido dos lugares de pedra,
dos lugares de água, dos regatos perdidos,
lá onde morremos de um vago êxtase,
de uma requintada barbárie estávamos morrendo,
lá onde meus pés estavam na água
e meu coração sob meus pés,

se seguisses minhas pegadas e ao êxtase me seguisses
até morrermos, uma tal morte seria digna de ser morrida.
Então morramos dessa breve morte lenta,
cadenciada, rude, dessa morte lúdica.

"Magma", Olga Savary

(Olga Savary nasceu no dia 21 de Maio de 1933)

Vai passando a procissão

Foto Hernâni Von Doellinger

Cinco minutos de doze em doze horas

Foi à farmácia e comprou três quartos de hora. Afinal, o tempo é o melhor remédio...

Também faço isto muito bem 35

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 86

Regos do cu, havia necessidade?
A gente chama a casa um técnico da tv cabo, um electricista, um picheleiro, um trolha, e o que é que nos aparece? Um homem que se aninha, que se estica, que se dobra, que se deita e que nos mostra o rego do cu. Insistentemente o rego do cu. Havia necessidade? Porque é que as respectivas entidades patronais não lhes dão fardas recatadas, por medida, com calças de cinta alta e camisas de fralda comprida? Ou então mandem-me gajas, valha-me Deus...

O calor dilata os corpos
Estava a fazer dieta. Andava sempre pela sombra...

Raisparta!...
"Raisparta isto!", disse Zeus, meio distraído. E foi o fim do mundo...

Verticalidade
Era um aspirador vertical. De uma rectidão a toda a prova.

Traga uma árvore também
Era uma localidade um bocadinho estranha. Nas suas principais entradas, a autarquia colocara frondosas tabuletas que avisavam os forasteiros: "Se quiser sombra, traga a sua própria árvore".

O moncoso e o ranhoso (e o piolhoso...)
Moncoso e ranhoso. Conceitos sinónimos, porém idiossincráticos. O moncoso é o tipo dos moncos ao dependuro, sujo, imundo, badalhoco, ranhoso - cá está -, asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil. Um bandalho, um pulha, um bardamerda.
Por outro lado, o ranhoso é o tipo que tem ranho, ranhento, ranhenta, moncoso - cá está -, teimoso, astuto, foleiro, reles. O verdadeiro filhodaputa.
Moncoso e ranhoso são nomes que se chamavam antigamente. Nomes do piorio, ao nível, por exemplo, de... piolhoso.

Pérolas
Dos "agentes da PJ à paisana" aos "carros da PJ descaracterizados", passando pelos suspeitos que "tapam a cara com o rosto", tem sido um fartote!..

domingo, 20 de maio de 2018

A nobre arte...

Foto Hernâni Von Doellinger

Para os dois lados

"Duro à frente e macio atrás". Fala-se evidentemente da escolha de pneus numa corrida de motos, mas... quer-se dizer...

Vida de cão 338

Foto Hernâni Von Doellinger

Homem de família

A família, para ele, era tudo. Aliás, tinha duas.

Offshore, se fashavore 160

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 19 de maio de 2018

Casamento real

Hoje, algures em Portugal, o José Silva casou com a Maria Pereira, aliás Silva. Este, sim, é um casamento real.

I want to ride my bicycle 52

Foto Hernâni Von Doellinger

Pérolas

Dos "agentes da PJ à paisana" aos "carros da PJ descaracterizados", passando pelos suspeitos que "tapam a cara com o rosto", tem sido um fartote!...

Offshore, se fashavore 159

Foto Hernâni Von Doellinger

Mário de Sá-Carneiro 6

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longemente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.


Batem asas de auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Descem-me a alma, sangram-me os sentidos.


Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...


Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de oiro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...


Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eternizo?


Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.


"Dispersão", Mário de Sá-Carneiro

(Mário de Sá-Carneiro nasceu no dia 19 de Maio de 1890. Morreu em 1916.)

Vida de cão 337

Foto Hernâni Von Doellinger

Heliodoro Baptista 2

Thandi

escrevemos na pele:
a morte não existe
porque já dormimos sobre ela;

se se passa alguma coisa? não, meu amor;
ou seja, passa-se absolutamente tudo!
e o tudo é o pão
que nunca houve neste nada;
(mas o nada será o princípio de tudo,
estas já longas servidões humanas);

esquino, te reescrevo, Thandi; e se tenho palavras
é porque imito o canto
de uma ave fecundada adulta;

(claro que o lirismo não se prende ou rotula:
aceita-se tarde ou se nega e muito cedo);

mas o poeta tem boca:
as metáforas o seu ardil,
para que outros leiam
o que ele nunca disse.


"Nos Joelhos do Silêncio", Heliodoro Baptista

(Heliodoro Baptista nasceu no dia 19 de Maio de 1944. Morreu em 2009.)

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Caminho 485

Foto Hernâni Von Doellinger

Manuel Cuña Novás

Mapoulada, mapoulada do rio

Mapoulada mapoulada do rio
que mapoula é.


Quen alcende as escumas do frío
muiñeira é.


Quen marmura na lingoa do río
lavandeira é.


Quen pendura o seu sono de un fio
tecedeira é.


Mapoulada mapoulada do río
miña noiva é.


"Fabulario Novo", Manuel Cuña Novás

(Manuel Cuña Novás nasceu no dia 1 de Junho de 1924. Morreu no dia 18 de Maio de 1992.)

Mariscando 6

Foto Hernâni Von Doellinger

O moncoso e o ranhoso (e o piolhoso...)

Moncoso e ranhoso. Conceitos sinónimos, porém idiossincráticos. O moncoso é o tipo dos moncos ao dependuro, sujo, imundo, badalhoco, ranhoso - cá está -, asqueroso, desprezível, desprezável, baixo, sórdido, vil. Um bandalho, um pulha, um bardamerda, enfim.
Por outro lado, o ranhoso é o tipo que tem ranho, ranhento, ranhenta, moncoso - cá está -, teimoso, astuto, foleiro, reles. O verdadeiro filhodaputa.
Moncoso e ranhoso são nomes que se chamavam antigamente. Nomes do piorio, ao nível, por exemplo, de... piolhoso.

Vida de cão 336

Foto Hernâni Von Doellinger

Gabriel Mariano

Caminho longe

Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Não devia ter sangue
Não devia, mas tem.

Parados os olhos se esfumam
no fumo da chaminé.
Devia sorrir de outro modo
o Cristo que vai de pé.

E as bocas reservam fechadas
a dor para mais além
Antigas vozes pressagas
no mastro que vai e vem.

Caminho
caminho longe
ladeira de São Tomé
Devia ser de regresso
devia ser e não é.


"12 Poemas de Circunstância", Gabriel Mariano

(José Gabriel Lopes da Silva, conhecido como Gabriel Mariano, nasceu no dia 18 de Maio de 1928. Morreu em 2002.)

Pesca radical 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Erico Curado 2

Ao esplendor das manhãs, silencioso e contrito,
Como é belo e sublime - olhar-se a natureza:
Sentir-se dentro dalma esse afago bendito
Que em perfume conduz de devesa em devesa.

Ver-se um céu sempre azul perder-se no infinito,
E das aves ouvir-se um hino de pureza,
E o rumor da floresta e dos montes o grito,
Num concerto divino à suprema beleza...

E, além, o vale imenso e o rio que, disforme,
Das brumas vai seguindo o branco vulto enorme!
Desatam-se em perfume os brancos laranjais...

E o gado vem descendo em procura de aprisco,
Abre-se então o sol, em fogo, o flavo disco,
E, aqui e ali, se exalça a alvura dos casais...

"Iluminuras", Erico Curado

(Erico Curado nasceu no dia 18 de Maio de 1880. Morreu em 1961.)

Na minha rua passa o mar 14

Foto Hernâni Von Doellinger