Interrompo aqui a narração, intercalo um capítulo especulativo para, debruçado sobre os meus pensamentos e os alheios, tentar apreender a natureza daqueles amores adolescentes, de que tratei não muito a sério, e que, todavia, constituíam um sentimento grave, intenso, obsessivo, que, ou nos confiscava à realidade, ou nos impelia a ignorá-la.
Emprego o plural, já que, se foi Newton o inventor das Deidades, e quem perdidamente se apaixonou por elas antes em espécie, depois individualizadas em Glorinha pelo menos um traço comum se observaria entre o amor que lhes tinha e o que a nós outros nos prostrava aos pés de nossas divas particulares: às demais pequenas, podia-se lançar um olhar lascivo; para com as amadas, o que havia era só adoração, e adoração pura, isenta, na aparência, de qualquer sombra de desejo. Dissimulado, o componente erótico se manifestaria, talvez, quando o mito viesse a ser tocado. Naquele culto à distância, não o pressentíamos. Ou, quem sabe, apenas pressentido nas subestruturas da consciência, fosse, de pronto, rechaçado. Direi, com palavras de empréstimo, que até se prescindiria da presença sensível da amada: aquilo era uma espécie de êxtase; tal presença viria perturbá-lo. O fogo dispensa a faísca que o suscitou; passa a nutrir-se de si mesmo.
"A Menina do Sobrado", Cyro dos Anjos
(Cyro dos Anjos nasceu no dia 5 de Outubro de 1906. Morreu em 1994.)
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