sexta-feira, 12 de maio de 2017

Lima Barreto 5

A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio quando, uma vez, me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na significação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!... 
O espetáculo do saber de meu pai, realçado pela ignorância de minha mãe e de outros parentes dela, surgiu aos meus olhos de criança como um deslumbramento.
Pareceu-me então que aquela sua faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las constituíam não só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um título para o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente.
Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados... Se minha mãe me parecia triste e humilde - pensava eu naquele tempo -, era porque não sabia, como meu pai, dizer os nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva...

"Recordações do Escrivão Isaías Caminha", Lima Barreto

(Lima Barreto nasceu no dia 13 de Maio de 1881. Morreu em 1922.)

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