Vira-latas
Simples vida de mulher:
havia um filho a criar,
um tanque de lavar roupa
e um barraco - coisa pouca,
numa favela qualquer.
Simples vida de menino:
a mãe já gasta, angulosa,
e um cachorro pequenino,
- essa fortuna ditosa
que os que têm mesa farta,
roupa bonita e automóvel,
não sabem nunca avaliar.
Lava roupa. Torce roupa.
Põe toda roupa a secar.
Há fome, miséria tanta,
é preciso trabalhar.
Nem desconfiava o menino
que, naquela tosse rouca,
sua mãe estava a finar.
Que lhe importava, do mundo,
esse viver triste, imundo
inferno de marginais,
se tudo se resumia
naquela mãe que sumia
e naquele cachorro feio,
seu tesouro, seu recreio,
o portento dos animais.
Assim transcorria a vida.
Lava roupa. Torce roupa.
Põe toda a roupa a secar.
Há fome, miséria tanta,
é preciso trabalhar.
Foi indo assim. Certa vez,
a Prefeitura, malvada,
sem sentimento, sem nada,
para sanear a cidade,
cometeu a atrocidade
de recolher cães vadios...
Foi-se também prisioneiro,
com destino ignorado,
aquele cãozinho amado,
que não era Perdigueiro,
nem Fox, nem Galgo, nem cheiro
tinha de qualquer raça.
- Por que levaram Totó ?
perguntou, desesperado,
o filho da lavadeira.
E lá, naquela ladeira,
de barracos e miséria,
a mãe deu a explicação,
usando velho estribilho:
- vão fazer dele sabão,
Que queres? É um vira-latas,
como nós somos, meu filho!
Então, aquele menino
um raciocínio formou.
Pensou na mãe e chorou,
no inocente descortino:
- vai ser sabão meu cachorro?
Então a nós, algum dia,
se somos dois vira-latas,
vão dar o mesmo destino.
E olhava a mãe e cuidava.
A mãe lavava e nem via.
Só o estranhava e sorria
dos desvelos que mostrava.
Cuidava o filho. Tossia.
Batia a roupa... lavava...
Veio um dia e a hemoptise
marcou a última crise.
A água do tanque tosco
ficou vermelha. Era sangue
escorrendo pelo mangue.
O olhar morreu. Era fosco...
No barraco - que ironia -
na postura derradeira,
velavam a lavadeira.
Mas o menino - este ria,
feliz na sua desventura,
pois agora a Prefeitura,
que não tinha coração,
já não faria sabão
de sua mãezinha adorada.
Ela morrera - é verdade,
mas que soubesse a favela,
mas que soubesse a cidade,
soubesse a gente ignara,
que sua mãe escapara
do carro da Prefeitura.
Morrera como criatura.
Fora Deus quem a levara.
Guido Mondin
(Guido Mondin nasceu no dia 6 de Maio de 1912. Morreu em 2000.)
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