domingo, 31 de março de 2019

2019, ano louco no PS (ou: Está tudo bêbado!)

E há eleições. No Governo de António Costa todos são primos e primas, depois que não se queixem do que lhes cair nos braços. Estava a brincar. Agora a sério (à séria, se lido em Lisboa): no Governo de António Costa é como na vida: uns são pais e outros são filhos, uns homens e outras mulheres, uns maridos e outras esposas, uns tios e outros sobrinhos, uns sobrinhos e outros tios, uns padrinhos e outros afilhados, mas no Governo de António Costa são-no uns dos outros. São compadres e comadres. Parentes. Diz que nestas extraordinárias condições rondarão já os quarenta, como os do Ali Babá. A mesa do conselho de ministros tem sempre um pinheiro com luzinhas, é a perene mesa da consoada: a reunião da família, de la famiglia, como muito dizem os italianos, que sabem italiano desde pequeninos e também estão muitos bem servidos a este propósito.
Para além disso. Para além disso há o eurodeputado socialista Manuel dos Santos, crónico aboletado da política e mete-nojo do PS, segundo o próprio primeiro-ministro. Dos Santos chamou cigana à presidente da Câmara de Matosinhos, a igualmente socialista Luísa Salgueiro, e, recentemente, dedicando-se a coisas sérias, chamou "complexado e aldrabão compulsivo" e "desprezível" a Sérgio Conceição, treinador da equipa principal de futebol do FC Porto.
Para além disso. Para além disso há o embaixador aposentado Seixas da Costa, antigo secretário de Estado em dois governos do socialista António Guterres. Francisco Seixas da Costa, oficial da Ordem do Infante D. Henrique, cavaleiro da Ordem Militar de Cristo, grande-oficial da Ordem de Mérito, grã-cruz da Ordem Militar de Cristo e com mais certas e determinadas condecorações do Reino Unido, Espanha, França, Bélgica, Polónia, Grécia, Roménia, Noruega e Brasil, Francisco Seixas da Costa, dizia eu, escrevendo sobre o que realmente interessa ao País e ao mundo, chamou "javardo" a Sérgio Conceição, treinador da equipa principal de futebol do FC Porto. Mas "javardo" somente. Não "complexado e aldrabão compulsivo" e "desprezível", como o outro. Afinal estamos em presença de um diplomata, um diplomata manifestamente medalhado, é preciso que se note.
Eu não sei o que é que o Partido Socialista e as suas adjacências têm contra Sérgio Conceição, treinador da equipa principal de futebol do FC Porto. Mas conviria que Assunção Crista mandasse o CDS chamar o primeiro-ministro e secretário-geral do PS para que vá com carácter de urgência ao Parlamento esclarecer o problemático assunto em sede de comissão.
Por falar em sede: ao PS, às sóbrias cúpulas do PS se as houver, com o devido respeito, ouso sugerir que recomende, que recomendem, aos seus familiares, aos seus profissionais, às suas claques, aos seus associados, simpatizantes ou apenas conhecidos que se limitem a falar ou a escrever publicamente em jejum, e nunca por nunca depois da merenda ou, pior, à noite, madrugada dentro. Eu sei que o poder dá nisto, está tudo bêbado: mas há eleições.

Interlúdio fotográfico 89

Foto Hernâni Von Doellinger

Poesia a peso

- Era dois poemas de trinta gramas, se faz favor!
- Os dois?
- Cada.
- Sessenta gramas de poemas...
- Exactamente.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 113

Foto Hernâni Von Doellinger

Os bois e os boys

Os bois são chamados pelos nomes. Os boys, pelos números.

Até aos dentes

Foto Hernâni Von Doellinger

Fermín Bouza Brey 5

Lectura autumnal

Na serã escalaçada
remanece o meu fastio
no azul dos tolhe-merendas
e no marelo dos vímbios.

Na brétema se arrandêa
meu coração esquencido,
mentras o orvalho destece
os contornos fugitivos.

Cando queiras podes vir,
feliz ensono perdido,
que a luz ja vai debecendo,
das mãos escorrega o livro
e na fiestra, embaçados,
choram docemente os vidros...


"Seitura", Fermín Bouza Brey

(Fermín Bouza Brey nasceu no dia 31 de Março de 1901. Morreu em 1973.)

Caminho 639

Foto Hernâni Von Doellinger

Pura Vázquez 5

O mar daquela infancia

Esta louvada mar de ulido a infancia.
Aurora da nenez. Mencer doutrora.
Mar de cantigas gaias e amarantos.
Redonda mar, fronteira dos regresos.

Adondada vixilia a dos abrentes
para a nena que fun de arela pura
onde xurdían bosques e raíces
pue me levaron lonxe coas lembranzas.

Resíos abrollantes coas saudades
polos cómaros altos o soñado.
Os axexos e os nimbos dunha vórtice
nos ámbitos luarentos das volallas.

Anxos de luz. Luz fonda que arrodean
a fronte deste deste mar. No seu misterio
co esplendor da beleza. A lábil gracia
e onde perduran sebes invisibles,
chuvias lustrais. Pleamares enleadas.


"A Música dos Tempos", Pura Vázquez

(Pura Vázquez nasceu no dia 31 de Março de 1918. Morreu em 2006.)

Interlúdio fotográfico 88

Foto Hernâni Von Doellinger

sábado, 30 de março de 2019

O que é que eles dão?

- Para a semana eles dão chuva.
- E que se coma, nada?...

Navegando sobre rodas

Foto Hernâni Von Doellinger

Da profissão ao emprego vai semântica e não só

- Profissão?
- Jardineiro.
- Onde trabalha?
- Estou desempregado.
- Então porque disse que é jardineiro?
- Porque é a minha profissão.
- Mas eu perguntei-lhe...
- Perguntou-me pela profissão: sou jardineiro. Se me perguntasse pelo emprego: desempregado.
- Portanto, é ex-jardineiro...
- Não. Portanto, sou jardineiro. Ex-empregado.

Offshore, se fashavore 249

Foto Hernâni Von Doellinger

Lucila Nogueira 3

[Falarão meus poemas pelas ruas]

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
e aqueles que sorriam pelas costas
recitarão meus versos sem os ler

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que fui um mar misterioso
onde quem navegou não esqueceu

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que era poesia e não loucura
meu jeito de sonhar todos vocês

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
perguntarão por que vivi tão pouco
sem dar-lhes tempo de me perceber

- e aqueles que sorriam pelas costas
recitarão meus versos sem os ler 

"Zinganares", Lucila Nogueira 

(Lucila Nogueira nasceu no dia 30 de Março de 1950. Morreu em 2016.)

Music was my first love 46

Foto Hernâni Von Doellinger

Ana Montenegro

[A Carlos Marighella]

Em seu enterro não havia velas:
Como acendê-las, sem a luz do dia?

Em seu enterro não havia flores:
Onde colhê-las, nessa manhã fria?

Em seu enterro não havia povo:
Como encontrá-lo, nessa rua vazia?

Em seu enterro não havia gestos:
Parada inerte, a minha mão jazia.

Em seu enterro não havia vozes:
Sob censura estavam as salmodias.

Mas luz, e flor, e povo, e canto
responderão "presente", chegada
a primavera mesmo que tardia!

Ana Montenegro

(Ana Montenegro nasceu no dia 13 de Abril d 1915. Morreu no dia 30 de Março de 2006.)

sexta-feira, 29 de março de 2019

Sou um doente muito fraquinho (e peço desculpa)

Foto Hernâni Von Doellinger

Há uma longa e honrosa tradição familiar no nosso lado Von Doellinger: somos umas pessoas muito doentes, que foi a única herança que o meu avô da Bomba nos deixou. A minha mãe costuma dizer que, em questão de doenças, "não damos vez uns aos outros". A minha mãe, é preciso que se note, é do lado Pereira, que lamentavelmente não me chegou ao nome, Pereira do meu avô de Basto, que nunca aceitou copo dado e levava tudo à frente na hora da pancadaria. Este meu querido avô era, pelo seu lado, um mãos-largas. Tudo o que tinha, dava. E se o que tinha à mão era o varapau de lódão, então era de esgaça-pessegueiro. A mim, deu-me o meu primeiro relógio de pulso e, numa noite de Natal, o seu próprio relógio de bolso, um magnífico e infalível Omega que há coisa de quinze anos passei ao meu filho. Fiquei-me com as memórias.

Mas o lado Bomba. As doenças. Neste campo, como em mais um ou dois, ou três, sou a ovelha negra da família. Doentemente falando, sou uma treta, uma nódoa, um ignorante, uma vergonha para a classe dos doentes em geral e da minha família em particular. Às vezes penso que devia ser expulso. Da classe e da família.
Vejam bem isto: no outro dia fui à farmácia aviar uma receita com os medicamentos do costume, remédios de manutenção que tomo há anos, e pergunta-me o farmacêutico:
- O Xpghtywçtor, como é que é a embalagem?
- Desculpe lá, mas esse é para quê? - atrapalhei-me eu, sem saber de que é que o homem estava a falar. Na verdade, era a primeira vez que me faziam perguntas destas na farmácia.
O profissional sorriu, cheio de paciência e esferográficas no bolso da bata branca, disse-me para que era o medicamento e, na posse dessa preciosa informação, eu já lhe pude explicar que era uma caixa assim e coisa e tal.
- E o Gvmkzxqumnarc? É em frasco ou...- voltou o farmacêutico à carga, e eu outra vez à nora.
- E esse é para... - pedi novamente ajuda, corado de vergonha, no meio de um estabelecimento à cunha de especialistas.
O farmacêutico parou de sorrir. E desatou a rir. Mas lá me esclareceu, e eu lá lhe respondi que sim, era em frasco.
Percebem o que eu quero dizer? Como doente, sou de uma incompetência a toda a prova. Sou muito fraquinho, uma anedota. Como é que eu posso entrar naquelas interessantes conversas de sala de espera de consultório médico, conversas de doentes como deve ser, doentes encartados, e discutir e confrontar com os meus pares colesteróis, internamentos e bicos-de-papagaio, cardiologistas, bruxas e medicamentos, se nem sei o nome dos remédios que tomo? Como é que eu posso honrar o legado do meu egrégio avô? Não posso! Não estou capacitado.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia

Foto Hernâni Von Doellinger

Igreja nova, pecados velhos

Fafe. Na Igreja Matriz, a igreja velha, os homens ficavam à frente junto ao altar e as mulheres ficavam atrás separadas dos homens por umas grades. Na Igreja Nova os homens ficavam do lado direito para quem olha para o altar e as mulheres ficavam do lado esquerdo para quem olha para o altar. É. A Igreja Nova representou um indiscutível avanço civilizacional. Um avanço para o lado, amém.

Interlúdio fotográfico 87

Foto Hernâni Von Doellinger

Luís Antônio Pimentel 3

Paz. Forte em ruínas,
E na boca de um canhão
Um ninho de pássaros.


Luís Antônio Pimentel 

(Luís Antônio Pimentel nasceu no dia 29 de Março de 1912. Morreu em 2015.)

Caminho 638

Foto Hernâni Von Doellinger

Xoán Vidal Martínez 4

Os emigrantes

[...]
c'o corazón delorido
vertendo bágoas d'amor,
deixan a terra nativa
por-outro país millor
[...] 

"Mágoas", Xoán Vidal Martínez

(Xoán Vidal Martínez nasceu no dia 29 de Março de 1904. Morreu em 1994.)

quinta-feira, 28 de março de 2019

Fafe: Terra Justa 2019, de 3 a 6 de Abril

Foto Hernâni Von Doellinger

Quinta edição da Terra Justa, em Fafe, de 3 a 6 de Abril, anunciando a saúde, o trabalho e a liberdade como temas principais. Homenagens à Organização Internacional do Trabalho (OIT), à Obra Vicentina do Auxílio aos Reclusos, a Francisco George e, postumamente, a António Arnaut. Mais informação, aqui.

Em boa companhia

Foto Hernâni Von Doellinger

Os bois chamam-se pelos nomes

O porco é Ruço. A porca Vadia. A vaca Amarela. O boi Bonito. O touro Osborne. A turina Malhada. O cão Bobi. A cadela Cadela. O cachorro Kent. O gato Pantufas. A gata Gostosa. A cabra Cega. A ovelha Dolly. O cabrito Montês. O cavalo Silva. O burro Velho. O rato Mique. O coelho Branco. O leopardo Negro. A chinchila Mila. O furão Furão. A tartaruga Ninja. A mulher Alheia. O homem Erecto. O peixe Dourado. O surfista Prateado. A sardinha Biba. A pita Arisca. A periquita Alegre. O pombo Armando. O pato Patola. O galo Badalo, a galinha Balbina, o pinto Jacinto e o peru Gluglu.
Assim se chamam os bois pelos nomes.

Também faço isto muito bem 175

Foto Hernâni Von Doellinger

Armando Silva Carvalho 3

Terra navegável

Vamos pela tarde fora à procura de deus.
Depois do dia ter falhado com as suas promessas
o que nos sobra é tudo o que vai daqui até ao mar.

Transporto no coração a contagem dos passos
e na cabeça a língua que se prende
por engano ao céu da boca. 

Será sempre preciso navegar em terra,
agarrar o que resta pela cintura e disfarçar o corpo
nu entre os rochedos. 

Cada palavra é um remo, cada abraço perdido
uma bóia a menos no costado.
Os aparelhos da fala excrementos das gaivotas.

A tarde recolheu os últimos sinais da divindade. 
Avançamos à procura da água
prometida.

Confundimos as ondas com os limos da garganta,
as cavernas com as muitas moradas, o destino
com mais um precipício antes da noite.

"A Sombra do Mar", Armando Silva Carvalho

(Armando Silva Carvalho nasceu no dia 28 de Março de 1938. Morreu em 2017.)

Guardadores de ondas

Foto Hernâni Von Doellinger

Sensibilidade e bom senso

- É pá, pensava que já tinhas morrido...

Music was my first love 45

Foto Hernâni Von Doellinger

quarta-feira, 27 de março de 2019

A bela foda

Iam receber visitas e ela não sabia o que lhes havia de dar. "E se lhes déssemos uma boa foda?", sugeriu ele. Eram, com efeito, uma família tradicional, monçanenses dos quatro costados.

Cada um é como cada qual

Foto Hernâni Von Doellinger

Despesas de manutenção efectivamente

"Despesas de manutenção?", perguntei. "Efectivamente despesas de manutenção, meu caro senhor", respondeu-me o senhor do banco. "Mas qual manutenção e qual efectivamente?", insisti, porque padeço dessa tola mania de insistir. "Efectivamente temos destacado um colega que diariamente e em exclusivo põe a arejar, limpa o pó e passa a ferro as vinte notas de cinquenta euros que o caro senhor em boa hora fez o favor de entregar à nossa guarda. É o gestor de conta de vosselência, assim lhe chamamos...", explicou-me o senhor do banco. "Ah, bom!, nesse caso efectivamente...", disse eu.

Também faço isto muito bem 174

Foto Hernâni Von Doellinger

Millôr Fernandes 7

Poeminha socialista

Pobre, rico, moço, velho,
Machão, entendido, bicha,
Tudo igualmente feliz
Ao coçar onde comicha.


"Fábulas Fabulosas", Millôr Fernandes

(Millôr Fernandes nasceu no dia 16 de Agosto de 1923. Morreu no dia 27 de Março de 2012.)

Music was my first love 44

Foto Hernâni Von Doellinger

Ernesto Penafort 3

A medida do azul

A medida do azul é o estender-se
do olhar por sobre os seres. Esse arguto
perceber que se tem de não mover-se
o objeto - já por ser absoluto.
A medida do azul é ver um luto
contido em toda flor e o abster-se,
cada qual de assumir seu tom enxuto
e noutro que o não seu absorver-se.
A medida do azul, pelo contrário,
não é ver no horizonte o fim do olhar,
mas o ter desta vida aonde chegar,
pois ali tem o mundo o seu ovário:

e o retorno acontece, sempre estável,
eis que o azul é o início do infindável.

"A Medida do Azul", Ernesto Penafort

(Ernesto Penafort nasceu no dia 27 de Março de 1936. Morreu em 1992.)

terça-feira, 26 de março de 2019

Ah! falta quem o lance ao mar

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 132

O milagre do vinho
Os médicos disseram-lhe que nunca mais poderia beber. E no entanto ele conseguiu beber até ao fim, apanhando carraspanas de caixão à cova. Foi considerado um milagre.

Fazendo pela vida
O médico deu-lhe dois anos. Ele pediu seis. O médico contrapôs três e que não podia dar mais. Ele exigiu cinco, senão nada feito. O médico disse quatro e não se fala mais nisso. Ele, negócio fechado.

Ladies first?
Ele disse, força do hábito, "As senhoras primeiro". Ui!, caíram-lhe todos em cima, feministas e machistas, derivado à igualdade de género...

Perspectiva histórica
Entre o servo da gleba e o servofreio vai uma distância de dez séculos. E parece que foi ontem.

O vira-cu
O vira-cu é muito pior do que o vira-casaca. O vira-cu pode aleijar.

O homem invisível
O homem invisível entrou no café do costume à hora do costume, fez caretas à clientela do costume e sentou-se à mesa do costume. O empregado do costume apressou-se a levar-lhe o bagacinho do costume.

Cá estamos
- E então?
- Cá estamos...
- Estamos, não estamos?
- Estamos.
- Então até amanhã.
- Se cá estivermos...

Também faço isto muito bem 173

Foto Hernâni Von Doellinger

Há males que vêm por mal

Atropelado pela porta giratória do hospital, partiu o braço direito. E é para o lado que ele dorme melhor. Infelizmente.

Vida de cão 428

Foto Hernâni Von Doellinger

Euclides Faria 2

D. Quixote

Assim à aldeia volta o da "triste figura"
Ao tardo caminhar do Rocinante lento:
No arcaboiço dobrado - um grande desalento,
No entrestecido olhar - uns laivos de loucura...

Sonhos, a glória, o amor, a alcantilada altura
Do ideal e da Fé, tudo isto num momento
A rolar, a rolar, num desmoronamento,
Entre os risos boçais do Bacharel e o Cura.

Mas, certo, ó D. Quixote, ainda foi clemente
Contigo a sorte, ao pôr nesse teu cérebro oco
O brilho da Ilusão do espírito doente;

Porque há cousa pior: é o ir-se a pouco e pouco
Perdendo, qual perdeste, um ideal ardente
E ardentes ilusões - e não se ficar louco!

"Ondas e Outros Poemas", Euclides Faria

(Euclides Faria nasceu no dia 26 de Março de 1846. Morreu em 1911.)

segunda-feira, 25 de março de 2019

Mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

Foto Hernâni Von Doellinger

Alcançando a Glória

Uma recuperação verdadeiramente notável. Alcançou a Arminda, alcançou a Celeste, alcançou a Mariana e alcançou a Odete. Só lhe faltava alcançar a Glória.

Não vou por aí

Foto Hernâni Von Doellinger

Mário Peixoto 4

Pareciam-me referências a vários estados de espírito - misto de estranho diário, dissertações diversas, e, por fim, certos trechos de crônica, parecendo autobiográfica. Foi apenas um primeiro relance - um primeiro contato - mas tremendamente comunicativo - e com frases despontando e encadeadas, que me eram até velhas conhecidas - como se há muito não tivesse pensado ou lidado com aquelas direções - como se tivessem estado sempre dentro de mim - adormecidas - mas que, agora despertadas por aquele encontro, eram flagrantes como se partidas de mim. Que coincidência seria aquela?

"O Inútil de Cada Um", Mário Peixoto

(Mário Peixoto nasceu no dia 25 de Março de 1908. Morreu em 1992.)

Caminho 627

Foto Hernâni Von Doellinger

Carvalho Calero 6

No Líbano nom hai cedros do Líbano

No Líbano nom hai cedros do Líbano.
Hai-nos nalguns versículos
da Bíblia. Hai-nos nos parques
de inúmeras cidades de Ocidente.

Mas no Líbano, nom. Ao menos
na cordilheira homónima. Talvez
os esgotassem os agentes
de Hiram, rei de Tiro,
que se comprometeu
a enviar materiais a Salomon
para a construçom do Templo.
E em jangadas, até Jope,
polo mar forom os madeiros
transportados polos fenícios.
E Salomom encarregou aos seus servos
de transportá-los dali a Jerusalém.
E Hiram, rei de Tiro, enviou
a Salomom um arquitecto, Huran-Abi,
cujo pai era natural de Tiro
e a sua mai umha mulher da tribo
de Dan; e já servira ao Rei David.

Obedecendo ordens, lenhadores
fenícios derrubarom
cedros a eito; mas
nom creio que o rei Hiram fosse
tam insensato que arruinasse
a sua riqueza forestal.

[...]

"Reticências", Carvalho Calero

(Carvalho Calero nasceu no dia 30 de Outubro de 1910. Morreu no dia 25 de Março de 1990.)

Os passarinhos, tão engraçados 78

Foto Hernâni Von Doellinger

Para cus quadrados

Saía muito pouco de casa. Uma dia levaram-no ao restaurante da moda e ele ia morrendo de susto quando precisou de ir à casa de banho e descobriu a sanita rectangular. Pensou aflito, ensarilhado nas calças, antes de fugir pela janela, redonda por sinal: - Será que os cus mudaram de feitio e o meu não foi informado?...

domingo, 24 de março de 2019

A vê-los passar

Foto Hernâni Von Doellinger

O caminho para a Felicidade

É fácil. Sempre em frente até ao largo da igreja, vira à direita pela rua com árvores, passa pelo campo da bola e pela sede, torna à esquerda e logo na esquina, encostada ao café e depois do funileiro, há uma casa pequenina com porta vermelha e vasinhos floridos na janela: é aí que ela mora. Ela e os dois filhos. Cuidado com o cão!

Offshore, se fashavore 248

Foto Hernâni Von Doellinger

Gonzalo López Abente 5

Desterrado

- Teño de morrer, levaime
onde amei e fun amado.

Chove e venta, e os camiños
están enzarrapicados;
laia a nuite, aterecida
na friaxe dos chuvascos;
no seo dos arboredos
ecoan voces de espanto.
Pero o anceio, firente
como un coitelo afiado,
esgaza e fura no peito
do doente desterrado:

- Teño de morrer, levaime
onde amei e fun amado.

Olla no fondo da ialma
o curruncho en que foi nado
ofrecendo doce acougo
no lentor do seu regazo;
unha igrexa pequeneira,
un homilde camposanto
e o rogo que marmulea
a corrente dun regato:

- Teño de morrer, levaime
onde amei e fun amado.


"Decrúa", Gonzalo López Abente

(Gonzalo López Abente nasceu no dia 24 de Março de 1878. Morreu em 1963.)

Caminho 626

Foto Hernâni Von Doellinger

Xesús Rodríguez López 3

O gallego

Escritores d'afora que ô gallego
como tipo de mofa presentades,
e saber a verdá non precurades
antes de darlle á pruma un vil emprego,
vide aqui, a aprender que vos guiades
por un rutinarismo falso e cego.
O gallego, xa fora, xa en Galicia,
gana honores con quen lle fai xusticia.


Ao burlarvos d'un probe que precura
traballar pra vivir n'algun oficeo,
¿ô traballo, queredes por ventura,
negarIle a proteucion que dais ô viceo?
Quen ô traballo honra ten cordura,
quen pensa d'outro modo non ten xuiceo.

Ademais, coucearia como un mulo
quen xuzgase a Madrid por ver un chulo.
 

Traspasando colados e lameiras
pol-o inverno, sin medo â neve fria,
c'unhas codeas de pan nas faltriqueiras,
á pasar van n'escola tod'o dia,
dende os fillos das probes cortelleiras
hastra o que herda facenda e fidalguia.
E si tanto gallego hay de proveito
é por lêr y-escribir todos afeito.
 

Nas costumes de mozo é moderado;
entusiasta é nas suas alegrias;
da muller sempre é dôce namorado,
e co mesmo poder manexa o arado
qu'a moça, s'a mau ben, nas romarias;
que onde loita un gallego frente a frente
non ha naide que sea mais valente.


Ese amor ô seu lar, en donde aniña
xa a muller, xa chegada parentela,
fai que sinta as tristuras da morriña
cando lonxe da terra pensa n'ela.
O amor que ten ô seu ben s'adiviña
na propiedade, ô ver tanta parcela;
porque sempre á un gallego é preferente
ser pequeno señor, a gran sirviente.


Relixioso, filósofo e honrado,
temeroso da curea e da xusticia,
tal as fai tal as pensa, con malicia,
e por eso é muy pouco confiado.
En listeza non cede un solo grado
á calquera de fora de Galicia;
que hay algun paisaniño pol-a aldea
que lla pega ô que mais sabido sea.


"Pasaxeiras", Xesús Rodríguez López

(Xesús Rodríguez López nasceu no dia 28 de Julho de 1859. Morreu no dia 24 de Março de 1917.) 

Vida de cão 427

Foto Hernâni Von Doellinger

Tinha um sonho mas já não tem

Quitério tinha um sonho muito antigo. Levou-o à Feira da Vandoma. Deram-lhe euro e meio por ele.

sábado, 23 de março de 2019

Mar, andei à tua procura

Foto Hernâni Von Doellinger

Às vezes dava-lhe na cabeça

Às vezes dava-lhe na cabeça e levava tudo a eito. Geralmente não era assim tão organizado.
Às vezes dava-lhe na cabeça e varria tudo o que tivesse à frente. A casa ficava um brinco.
Às vezes dava-lhe na cabeça e limpava até a casa dos outros. Cleptomanias.
Às vezes dava-lhe na cabeça. Até que ela o deixou.

Também faço isto muito bem 172

Foto Hernâni Von Doellinger

Herberto Helder 6

Com uma rosa no fundo da cabeça

Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura
de morte. O perfume a sangue à volta da camisa
fria, a boca cheia de ar, a memória
ecoando com as vozes
de agora. Onde está sentada brilha de tantas
moléculas
vivas, tanto hidrogénio, tanta seda escorregadia dos ombros
para baixo. Toca em
de onde rompe a rosa. Uma criança
luciferina. A mãe fechava,
abria em torno a torrente dos átomos
sobre a cara. Aquilo que a estrangula dos pulmões
à garganta
é a rosa infundida. Leva um braço às costas,
suando, raiando
pelo sono fora. Está queimada onde lhe toca. Falaria alto
se o peso a enterrasse à altura das vozes.
Via a matéria radiosa de que é feito o mundo.
A língua doce de leite,
a mão direita na massa agre, o sexo banhado
no manancial secreto.
O dom que transtorna a criança ardente é leve como
a respiração, leve como
a agonia.
Uma rosa no fundo da cabeça.


"Última Ciência", Herberto Helder

(Herberto Helder nasceu no dia 23 de Novembro de 1930. Morreu no dia 23 de Março de 2015.)

I want to ride my bicycle 86

Foto Hernâni Von Doellinger

Moacyr Scliar 6

Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; isso se repete sempre; finalmente, torna-se previsível e é incorporado ao ritual.
Franz Kafka

RELATÓRIO CONFIDENCIAL 125/65

Senhor Delegado: tem por finalidade este relatório informar a V. S. acerca da prisão do elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, detido na noite de 24 para 25 de novembro de 1965 numa das ruas centrais de Porto Alegre. Dito elemento, conhecido militante nos meios universitários da cidade, vinha sendo seguido há dois meses por nossos agentes. Por volta das 21 horas Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, dirigiu-se para o apartamento de sua namorada Beatriz Gonçalves. Outros elementos, seis no total, chegaram ao local, sozinhos ou em duplas - obviamente para uma reunião secreta. Às 23h30 os elementos deixaram o local, ocasião em que lhes foi dada voz de prisão pelo agente Roberval. Sete elementos, incluindo Beatriz Gonçalves, conseguiram fugir, mas o elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, que puxa de uma perna, não pôde correr. Detido e conduzido à sede da Unidade de Operações Especiais, foi interrogado. Nesse procedimento utilizou-se o auxílio de choques elétricos, interrompidos por duas razões: 1) sucessivos desmaios do elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, e 2) falta de energia elétrica. Desta maneira, o interrogatório não pôde ser completado. O elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, repetiu várias vezes que a reunião tinha por objetivo discutir literatura e tomar chimarrão. No apartamento foi efetivamente encontrada uma cuia de chimarrão ainda morna e vários livros, o que naturalmente não invalida a hipótese de reunião subversiva. O elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, foi revistado. Em seus bolsos havia: 1) poucas notas e moedas; 2) um lenço sujo e rasgado; 3) um toco de lápis; 4) dois comprimidos de aspirina; 5) um papel, cuidadosamente dobrado, com as seguintes palavras datilografadas em alemão:
Leoparden in Tempel
Leoparden brechen in den Tempel ein und saufen die Opferkrüge leer; das wiederholt sich immer wieder; schlieslich kann man es vorausberechnen, und es wird ein Teil der Zeremonie. Abaixo do texto, a assinatura de um certo Franz Kafka.

"Os Leopardos de Kafka", Moacyr Scliar 

(Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de Março de 1937. Morreu em 2011.)

Interlúdio fotográfico 86

Foto Hernâni Von Doellinger

Gémeos afastados

Eram gémeos mas não pareciam. E compreende-se: nasceram com três anos de diferença.

sexta-feira, 22 de março de 2019

Eu sou, mar, tu bem sabes, teu discípulo

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 131

Um santo Carnaval
Enviou mensagem à lista completa de contactos. "Um santo Carnaval, para si e toda a família, associados e simpatizantes", fez votos. E agradeceu a Deus por Deus o ter feito tão boa pessoa.

Na cama
Ela disse que se sentia cómoda. Ele, mesinha-de-cabeceira.

Goze o Carnaval
Aproveite o Carnaval: fique em casa e durma um sono, ou dois, consoante a disposição e a companhia. E ouça a chuva a bater à janela. Mas não abra, que a chuva não bate assim: é o Neves, e o Neves é um chato do caralho.

Somos pó
"Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás-de voltar", diz a Bíblia logo na terceira página, ainda as coisas estavam a compor-se. Convenhamos: a Bíblia não é lá muito inspiradora para os cocainómanos em recuperação...

A última impressão é a que fica
"A última impressão é a que fica", dizia repetidamente. E sabia do que falava. Era tipógrafo, especialista em offset.

E se de repente?
Se de repente uma flor lhe oferecer desconhecidos, pare imediatamente com a medicação.

Os simples
Era um pregador muito terra a terra. Proclamava: - Bem-aventurados os bem-aventurados porque serão bem-aventurados.

Também faço isto muito bem 171

Foto Hernâni Von Doellinger

Branca de Gonta Colaço

Naquela tarde em que nos encontrámos
"para o último adeus" - nas garras frias
do "desgosto sem fim" que sempre achamos
qualquer separação de poucos dias...

Tarde de amor em que nos apartámos,
presas das mais acerbas nostalgias,
- talvez porque os protestos que trocámos
valessem mil celestes alegrias -,

Houve um momento - foi um sonho de Arte!
em que um raio de sol veio beijar-te,
com tanto ardor, em rutilâncias tais,

Que eu fiquei muda, a olhar, num gozo infindo,
o beijo que te dava o sol tão lindo...
Mas o teu rosto alumiava mais...


Branca de Gonta Colaço

(Branca de Gonta Colaço nasceu no dia 8 de Julho de 1880. Morreu no dia 22 de Março de 1945.)

Há mar e mar 2

Foto Hernâni Von Doellinger

Botar é a direito e um beber cívico

- Botas tu ou boto eu?
- Bota tu, mas bota de alto...
- Boto em consciência...
- Então bonda, que já esborda...
- E agora?
- Agora: dou-lhe um beijinho, mando-lhe uma pescoçada, e a seguir boto eu...

P.S. - Botar ou não botar, eis a questão. Sobre tão momentoso assunto, recomendo duas releituras evidentemente educativas, aqui no Tarrenego!: Mais um quartilho para a mesa do canto e Um certo falar antigo (ou o fafês, possivelmente).

Interlúdio fotográfico 85

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 21 de março de 2019

Salvador García-Bodaño

Síntote chegar

Síntote chegar pregoeira de ledicia
ata a soidade das miñas tardes
anguriosamente idénticas
no silencio mesto en que te agardo.


Síntote chegar, muller aínda recente,
dende o máis secreto dos teus peitos brancos
a esta fondura do meu ser deshabitado
onde é posible que ande a soar
algún cantar antigo para o teu nome...


Síntote chegar
como un sono que me invade ala por dentro
e que me queima nas mans e nas meixelas
e no aire das miñas palabras ao te chamar.


Na orixe das idades
ando a procurar musicas esquecidas
que terán de alegrar o meu corazón
para que non sexa tan triste
cando ti chegues.


E ti has vir...
e pasarás por min
como unha estrela fuxidía
que me ferirá cunha luz purísima
na que quizais tan só comprise morrer.


"Ao Pé de Cada Hora", Salvador García-Bodaño

(Hoje, Dia da Poesia, Salvador García-Bodaño é homenageado pela Real Academia Galega)