sábado, 23 de março de 2019

Moacyr Scliar 6

Leopardos irrompem no templo e bebem até o fim o conteúdo dos vasos sacrificiais; isso se repete sempre; finalmente, torna-se previsível e é incorporado ao ritual.
Franz Kafka

RELATÓRIO CONFIDENCIAL 125/65

Senhor Delegado: tem por finalidade este relatório informar a V. S. acerca da prisão do elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, detido na noite de 24 para 25 de novembro de 1965 numa das ruas centrais de Porto Alegre. Dito elemento, conhecido militante nos meios universitários da cidade, vinha sendo seguido há dois meses por nossos agentes. Por volta das 21 horas Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, dirigiu-se para o apartamento de sua namorada Beatriz Gonçalves. Outros elementos, seis no total, chegaram ao local, sozinhos ou em duplas - obviamente para uma reunião secreta. Às 23h30 os elementos deixaram o local, ocasião em que lhes foi dada voz de prisão pelo agente Roberval. Sete elementos, incluindo Beatriz Gonçalves, conseguiram fugir, mas o elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, que puxa de uma perna, não pôde correr. Detido e conduzido à sede da Unidade de Operações Especiais, foi interrogado. Nesse procedimento utilizou-se o auxílio de choques elétricos, interrompidos por duas razões: 1) sucessivos desmaios do elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, e 2) falta de energia elétrica. Desta maneira, o interrogatório não pôde ser completado. O elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, repetiu várias vezes que a reunião tinha por objetivo discutir literatura e tomar chimarrão. No apartamento foi efetivamente encontrada uma cuia de chimarrão ainda morna e vários livros, o que naturalmente não invalida a hipótese de reunião subversiva. O elemento Jaime Kantarovitch, codinome Cantareira, foi revistado. Em seus bolsos havia: 1) poucas notas e moedas; 2) um lenço sujo e rasgado; 3) um toco de lápis; 4) dois comprimidos de aspirina; 5) um papel, cuidadosamente dobrado, com as seguintes palavras datilografadas em alemão:
Leoparden in Tempel
Leoparden brechen in den Tempel ein und saufen die Opferkrüge leer; das wiederholt sich immer wieder; schlieslich kann man es vorausberechnen, und es wird ein Teil der Zeremonie. Abaixo do texto, a assinatura de um certo Franz Kafka.

"Os Leopardos de Kafka", Moacyr Scliar 

(Moacyr Scliar nasceu no dia 23 de Março de 1937. Morreu em 2011.)

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