Foto Hernâni Von Doellinger |
segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
Um ano casual
- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Bem passado?
- Mas sem vincos...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Bem passado?
- Mas sem vincos...
António Gancho
Abertura
Eu abria o rádio
eu abria o aparelho
era uma flor branca que eu abria
de sopro
eu soprava e eu abria a flor
A flor tocava música com as várias mãos
das pétalas
A flor tocava uma simbolização dum tempo
caído podre de espera de cor branca
O tempo espera-se em pintar-se
de branco
para cegar uma cor
mas a minha flor abria-se de
pétalas
e as várias mãos escreviam um
piano por cima de teclas grãos vários
seguidos uns aos outros.
Era assim uma harmonia
entre flor
tempo a querer-se de cor branca em cegar
era assim umas teclas cantarem filhos de grãos
por dentro dos grãos mesmos
unidos que eram em dimensão de lado
era assim um cantar-me o tempo todo
não era assim um cantar-me o tempo todo
era assim um pairar-me
o tempo todo em Nijinsky
o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro
quando eu tinha aberta a cabeça que imagino
da música
Abria a pétala favorita do harém
onde no centro um sultão da flor
no centro que era o amarelo da flor
abria a pétala favorita da flor
e então
e era então que me soava dentro da manhã
do quarto
uma música desfibrada de tempo serôdio
como se tudo me fosse em longe
como se a música levasse longe
o céu.
"O Ar da Manhã", António Gancho
(António Gancho nasceu em 1940. Morreu no dia 31 de Dezembro de 2006.)
Eu abria o rádio
eu abria o aparelho
era uma flor branca que eu abria
de sopro
eu soprava e eu abria a flor
A flor tocava música com as várias mãos
das pétalas
A flor tocava uma simbolização dum tempo
caído podre de espera de cor branca
O tempo espera-se em pintar-se
de branco
para cegar uma cor
mas a minha flor abria-se de
pétalas
e as várias mãos escreviam um
piano por cima de teclas grãos vários
seguidos uns aos outros.
Era assim uma harmonia
entre flor
tempo a querer-se de cor branca em cegar
era assim umas teclas cantarem filhos de grãos
por dentro dos grãos mesmos
unidos que eram em dimensão de lado
era assim um cantar-me o tempo todo
não era assim um cantar-me o tempo todo
era assim um pairar-me
o tempo todo em Nijinsky
o tempo em um fazer-me ballet pelo quarto inteiro
quando eu tinha aberta a cabeça que imagino
da música
Abria a pétala favorita do harém
onde no centro um sultão da flor
no centro que era o amarelo da flor
abria a pétala favorita da flor
e então
e era então que me soava dentro da manhã
do quarto
uma música desfibrada de tempo serôdio
como se tudo me fosse em longe
como se a música levasse longe
o céu.
"O Ar da Manhã", António Gancho
(António Gancho nasceu em 1940. Morreu no dia 31 de Dezembro de 2006.)
Hélder Proença 2
Nós somos
Nós somos
"Não Posso Adiar a Palavra", Hélder Proença
(Hélder Proença nasceu no dia 31 de Dezembro de 1956. Morreu em 2009.)
Nós somos
aqueles que dia e noite
fazem com suas mãos
os alicerces da vida.
fazem com suas mãos
os alicerces da vida.
Nós somos
lágrimas, suor e sangue
que desafiando mortes e séculos...
fundiram esperanças e fé!
lágrimas, suor e sangue
que desafiando mortes e séculos...
fundiram esperanças e fé!
Nós somos irmãos
o florir, a madrugada
e o verde selvagem dos maquis
que em noites sombrias
trazem a canção da vida.
o florir, a madrugada
e o verde selvagem dos maquis
que em noites sombrias
trazem a canção da vida.
Nós somos
dança, música e ritmo
que em anos 40
sobreviveram a tempestade da fome.
dança, música e ritmo
que em anos 40
sobreviveram a tempestade da fome.
Nós somos irmãos
terra, chuva e arado
que alimentam vidas
e alicerçam o homem!
terra, chuva e arado
que alimentam vidas
e alicerçam o homem!
Nós somos
o tantã da verdade
em místicas noites do fanado
nós somos irmãos
a certeza e o porvir!
o tantã da verdade
em místicas noites do fanado
nós somos irmãos
a certeza e o porvir!
"Não Posso Adiar a Palavra", Hélder Proença
(Hélder Proença nasceu no dia 31 de Dezembro de 1956. Morreu em 2009.)
Alexandre Vargas 2
Nas mãos sinto a luz
"Cyborg", Alexandre Vargas
(Alexandre Vargas nasceu no dia 31 de Dezembro de 1952. Morreu em 2018.)
Nas mãos sinto a luz, a êxul luz
que vem das paliçadas da mansão,
a luz azul em clarificada zona então
aproxima de mim o seu facho de horizonte.
E logo eu a lembrar o querido monte
em que pousada estava sobracente a ramaria,
e logo eu então a pedir à maresia
que nos brilhos unos do futuro aproximasse
esse rumor de aves onde os raios enfeitasse
e eu oco no caminho que me guia
contivesse as minhas mágoas do passado,
e surgisse ali a minha alma em fogo-fátuo
estivesse eu em toda a dimensão do brusco
a nascer das folhas com a boca em luz arado.
"Cyborg", Alexandre Vargas
(Alexandre Vargas nasceu no dia 31 de Dezembro de 1952. Morreu em 2018.)
domingo, 30 de dezembro de 2018
2019, é só fazer as contas
Ano de 2019. Dois mais zero é dois, mais um é três. É claro: três! Três mais nove é doze, noves fora três. Três, estão a ver?! Zero mais um é um e mais nove é dez, noves fora um. Um, evidentemente! Dois mais nove é onze, noves fora dois, e, curiosamente, nove mais dois é onze, noves fora dois. Atenção, dois! Temos, portanto, dois, zero, um e nove, mais três, mais doze, mais dez, mais onze, o que dá quarenta e oito, quatro e oito doze, noves fora três. Três, eu avisei! Mais revelador ainda: o contrário de 2019 é 9102, some-se-lhe, por exemplo, 898 e dá exactamente 10000. Dez mil certos! O que é extraordinário.
Feitos um para o outro
- A menina dança?
- Não!
- É como eu. Não acha que fomos feitos um para o outro?...
- Não!
- É como eu. Não acha que fomos feitos um para o outro?...
sábado, 29 de dezembro de 2018
Espanto gastrointestinal
Era vegetariano e cagava postas de pescada. A ciência nunca soube explicar o fenómeno.
Alves Redol 6
Caminhavam aos grupos, aturdidos. De fatos assolapados por remendos, de barretes e chapéus puxados para os olhos, ficava-lhes mais sombrio o parecer dos rostos tisnados pelas soalheiras da vindima.
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro sacos e foices, paus e caldeiras.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.
Sentiam saudades da terra que lhes negava o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe...
E se lá havia pão para todos! Mal tinham acabado os dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d'Água. Era um êxodo de desgraça e susto. Que iriam encontrar por ali?!...
Alguns alugados desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.
- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.
"Gaibéus", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em 1969.)
Enrolavam-se alguns em gabões desbotados, trazendo ao ombro sacos e foices, paus e caldeiras.
E as mulheres, embrulhadas em xailes desfiados ou saias de casteleta pelos ombros, marchavam silenciosas, de pés descalços.
Sentiam saudades da terra que lhes negava o pão. Saudades bem fundas, catano! Vir de tão longe...
E se lá havia pão para todos! Mal tinham acabado os dias fadigosos das vindimas, ainda o vinho saía ao pipo, já as aldeias se despovoavam para a Borda-d'Água. Era um êxodo de desgraça e susto. Que iriam encontrar por ali?!...
Alguns alugados desde há muito; outros vencidos, finalmente, pela escassez dos últimos dois anos.
- Nunca se viu coisa assim!... A terra parece praguejada.
E sempre a pior. Todos os anos esperanças novas e a resposta matava-as.
"Gaibéus", Alves Redol
(Alves Redol nasceu no dia 29 de Dezembro de 1911. Morreu em 1969.)
Augusto Fera 6
Alegria sem aresta
Só a tem quem põe a mão
Como musgo entre uma testa
E as esquinas da aflição.
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
Só a tem quem põe a mão
Como musgo entre uma testa
E as esquinas da aflição.
"Cruz de Chumbo e Outros Poemas", Augusto Fera
(Augusto Fera nasceu no dia 29 de Dezembro de 1939. Morreu em 2012.)
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
Ano praticamente novo
- Boa tarde...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Novo?
- Usado, de preferência. É para estragar...
- E o que vai ser?...
- Queria um ano.
- Novo?
- Usado, de preferência. É para estragar...
Ramsés Ramos 2
Hai-kai do amanhecer
a ponta do dia
feria o horizonte:
amanhecia...
Ramsés Ramos
(Ramsés Ramos nasceu no dia 28 de Dezembro de 1962. Morreu em 1998.)
a ponta do dia
feria o horizonte:
amanhecia...
Ramsés Ramos
(Ramsés Ramos nasceu no dia 28 de Dezembro de 1962. Morreu em 1998.)
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
Microcontos & outras miudezas 118
Lições de História: o pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.
No restaurante
Mandou vir umas postas de pescada. A gerência chamou a polícia.
Votam uns pelos outros, olha a novidade!...
Falso escândalo na Assembleia da República: os deputados votam uns pelos outros. Mas, valha-me Deus!, é prática corrente e já se sabia. Por nós é que eles não votam...
Encontro de espíritos
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito al negro e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Like an angel
Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dizem.
Digo: quem já viu um anjo a cantar, a tocar ou a dançar, faça o favor de se acusar!...
Pecando por defeito
Pecava muito por defeito. E que queriam? Que pecasse por virtude?...
Foi comprar tabaco e não voltou (o outro lado da história)
Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou.
Profissão de risco
Queria uma profissão de risco. Tinha apenas um dúvida: cabeleireiro ao alfaiate?...
Acusar a recepção, por favor
Acusou a Recepção, mas confessou que foi a pedido. O problema tinha sido com a Contabilidade.
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.
No restaurante
Mandou vir umas postas de pescada. A gerência chamou a polícia.
Votam uns pelos outros, olha a novidade!...
Falso escândalo na Assembleia da República: os deputados votam uns pelos outros. Mas, valha-me Deus!, é prática corrente e já se sabia. Por nós é que eles não votam...
Encontro de espíritos
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito al negro e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Like an angel
Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dizem.
Digo: quem já viu um anjo a cantar, a tocar ou a dançar, faça o favor de se acusar!...
Pecando por defeito
Pecava muito por defeito. E que queriam? Que pecasse por virtude?...
Foi comprar tabaco e não voltou (o outro lado da história)
Era uma esposa exemplar, uma esposa à moda antiga. Em apenas duas palavras imediatamente seguidas de ponto de admiração: uma esposa! Todos os dias de manhã ela ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou.
Profissão de risco
Queria uma profissão de risco. Tinha apenas um dúvida: cabeleireiro ao alfaiate?...
Acusar a recepção, por favor
Acusou a Recepção, mas confessou que foi a pedido. O problema tinha sido com a Contabilidade.
quarta-feira, 26 de dezembro de 2018
O fim do Natal é muito triste
O triste do Natal é o fim. Terminasse o Natal em m, Natam, terminasse o Natal em x, Natax, terminasse o Natal em y, Natay, terminasse o Natal em z, Nataz, e, quer-se dizer, o fim do Natal tinha alguma piada. Agora, terminar em l, Natal, um esquelético tracinho ao alto, um pauzinho desamparado armado em guarda-redes, é um fim muito triste.
A gota de água (quando cai é para todos)
- Agora é que foi a gota de água - disse o brincalhão, pousando
desajeitadamente o copo vazio do seu décimo terceiro uísque. Posto isto,
vomitou com assinalável pertinácia em cima do excelentíssimo público.
terça-feira, 25 de dezembro de 2018
Acusar a recepção, por favor
Acusou a Recepção, mas confessou que foi a pedido. O problema tinha sido com a Contabilidade.
Irene Lisboa 5
Afrodite
Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divagadores,
ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.
Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão
provocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?
Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angustias.
Geras o sonho do amor.
Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...
Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necrópole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divagadores,
ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.
Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão
provocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?
Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angustias.
Geras o sonho do amor.
Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...
Irene Lisboa
(Irene Lisboa nasceu no dia 25 de Dezembro de 1892. Morreu em 1958.)
Jogue golfe com moderação
Depois do quinto shot, o famoso jogador de golfe já via tudo a dobrar. O buraco 17 parecia-lhe o 34, o que é manifestamente irregular.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
Em palhas deitado 23
Jesus Cristo, procura-se
A polícia anda à procura de Jesus. O Ministério Público pretende acusá-l'O de incentivo à violência em Jo 8, 7 e subtracção e ocultação de cadáver em Lc 24, 1-3.
Lições de História: o pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.
Graças a Deus
Quando o poeta disse "É preciso acreditar", a plateia respondeu "Amém"...
O intolerante
Era realmente uma pessoa com um feitio difícil. Tinha um problema com o álcool. E outro com o betadine.
Encontro de espíritos
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito al negro e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Like an angel
Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dizem.
E eu pergunto: quem é que já viu um anjo a cantar, a tocar ou a dançar?...
Dezassete magníficos e um atrevido
Já restavam poucos, cada vez menos, mas juntavam-se ano após ano, vindos do país inteiro: o Aguiar da Beira, o Ferreira do Alentejo, o Vieira do Minho, o Miranda do Douro, o Castanheira do Ribatejo, o Costa da Caparica, o Nogueira da Maia, o Oliveira de Azeméis, o Vale de Cambra, o Canas de Senhorim, o Leça da Palmeira, o Figueira de Castelo Rodrigo, o Freixo de Numão, o Sobral de Monte Agraço, o Lajes do Pico, o Santiago do Cacém, o Vila Nova de Cerveira e o Antunes de Pevidém, que nem sequer foi à tropa e ninguém sabe como é que começou a aparecer...
Pecando por defeito
Pecava muito por defeito. E que queriam? Que pecasse por virtude?...
In vino veritas, in aqua planing
Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas?...
A impressão de Deus
Era apenas uma impressão, mas: quanto mais se afastava da Igreja, mais próximo de Deus se sentia.
A polícia anda à procura de Jesus. O Ministério Público pretende acusá-l'O de incentivo à violência em Jo 8, 7 e subtracção e ocultação de cadáver em Lc 24, 1-3.
Lições de História: o pecado original
Corria tudo bem no Paraíso. Quer-se dizer: corria tudo na paz do Senhor. Poder-se-ia até afirmar, creio que sem forçar demasiado a nota, que o Paraíso era, naquele tempo, um autêntico paraíso. Estava escrito, porém, que Adão e Eva tinham de asnear. Podiam ter cometido um pecado qualquer, um pecadinho de nada, um pecado repetido, copiado, um que estivesse na moda. Mas não! - quiseram ser originais. E deu na merda que deu. Até hoje.
Graças a Deus
Quando o poeta disse "É preciso acreditar", a plateia respondeu "Amém"...
O intolerante
Era realmente uma pessoa com um feitio difícil. Tinha um problema com o álcool. E outro com o betadine.
Encontro de espíritos
Reuniram-se os espíritos no seu tradicional encontro de fim de ano. E lá estavam: o espírito de equipa, o espírito empreendedor, o espírito indomável, o espírito desportivo, o espírito de entreajuda, o espírito de sacrifício, o espírito positivo, o espírito de finura, o espírito geométrico, o espírito al negro e o espírito santo de orelha, que presidia aos trabalhos e perguntou: - Está tudo? Podemos começar?...
Que não. Era melhor esperar um bocadinho. Faltava o espírito natalício...
Like an angel
Canta como um anjo. Toca como um anjo. Dança como um anjo. Dizem.
E eu pergunto: quem é que já viu um anjo a cantar, a tocar ou a dançar?...
Dezassete magníficos e um atrevido
Já restavam poucos, cada vez menos, mas juntavam-se ano após ano, vindos do país inteiro: o Aguiar da Beira, o Ferreira do Alentejo, o Vieira do Minho, o Miranda do Douro, o Castanheira do Ribatejo, o Costa da Caparica, o Nogueira da Maia, o Oliveira de Azeméis, o Vale de Cambra, o Canas de Senhorim, o Leça da Palmeira, o Figueira de Castelo Rodrigo, o Freixo de Numão, o Sobral de Monte Agraço, o Lajes do Pico, o Santiago do Cacém, o Vila Nova de Cerveira e o Antunes de Pevidém, que nem sequer foi à tropa e ninguém sabe como é que começou a aparecer...
Pecando por defeito
Pecava muito por defeito. E que queriam? Que pecasse por virtude?...
In vino veritas, in aqua planing
Compareceram todos. Ab Initio, Modus Operandi, Lapsus Linguae, Curriculum Vitae, Honoris Causa, In Dubio Pro Reo, E Pluribus Unum, Habeas Corpus, Ex Aequo, Ipso Facto, Mea Culpa, Per Capita, o casal Dura Lex, Sed Lex, Post Scriptum, Sine Die e Sine Qua Non, Ad Hoc, Statu Quo e Procol Harum, Sui Generis, Vade Retro, Totus Tuus e Deo Gracias, Data Venia, Ipsis Verbis e Ipsis Litteris, A Priori e A Posteriori, Apud, Carpe Diem, Grosso Modo, In Loco, In Memoriam e In Vitro, RIP, Dux Veteranorum, Alter Ego, Fac Simile, Verbi Gratia, Ibidem e os irmãos A Contrario Sensu, Lato Sensu e Stricto Sensu.
Honoris Causa abriu os trabalhos e foi directo ao assunto. Disse: - E se nos deixássemos de merdas?...
A impressão de Deus
Era apenas uma impressão, mas: quanto mais se afastava da Igreja, mais próximo de Deus se sentia.
Fernando Castro 2
Adolescência
triste é a queda da chuva
escorrendo inapelável nas superfícies.
é nesse espaço que aparece o grito da fonte
e medo terrível da aproximação.
se diluem forças contagiando
as cortinas da tarde,
e uma silhueta pálida
sem futuro,
perpetua-se na linha da mente.
cria-se no sexo plantação da carne.
lanceiros infalíveis desencadeiam marchas
em países delineados por ventres,
onde constituições liberam
passaportes para excursões infindáveis.
mas um gemido,
um aceno
arrematam caminhos anulados.
e são enfermeiros deles mesmos,
engenheiros de estrada particular.
Fernando Castro
(Fernando Castro nasceu no dia 24 de Dezembro de 1935)
triste é a queda da chuva
escorrendo inapelável nas superfícies.
é nesse espaço que aparece o grito da fonte
e medo terrível da aproximação.
se diluem forças contagiando
as cortinas da tarde,
e uma silhueta pálida
sem futuro,
perpetua-se na linha da mente.
cria-se no sexo plantação da carne.
lanceiros infalíveis desencadeiam marchas
em países delineados por ventres,
onde constituições liberam
passaportes para excursões infindáveis.
mas um gemido,
um aceno
arrematam caminhos anulados.
e são enfermeiros deles mesmos,
engenheiros de estrada particular.
Fernando Castro
(Fernando Castro nasceu no dia 24 de Dezembro de 1935)
O amigo dos animais
Etelvino Ferraz da Cunha gosta muito de animais. Coelhos, perdizes, tordos e sobretudo toiros. E só lamenta que em Portugal não sejam de morte.
domingo, 23 de dezembro de 2018
Profissão de risco
Queria uma profissão de risco. Tinha apenas uma dúvida: cabeleireiro ao alfaiate?...
Filinto Elísio 6
Cristo morreu há mil e tantos anos,
Foi descido da cruz, logo enterrado;
Mas até aqui de pedir não têm cessado
Para o sepulcro dele os franciscanos.
Tornou Cristo a surgir entre os humanos,
Subiu da terra aos céus, lá está sentado,
E ainda à saúde dele sepultado
Bebem (o saco o paga) estes maganos.
E cuida quem lhes dá a sua esmola
Que eles a gastam em função tão pia?
Quanto vos enganais, ó gente tola!
O altar-mor com dois cotos se alumia;
E o frade, com a puta que o consola,
Gasta de noite o que lhe dais de dia.
Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
Foi descido da cruz, logo enterrado;
Mas até aqui de pedir não têm cessado
Para o sepulcro dele os franciscanos.
Tornou Cristo a surgir entre os humanos,
Subiu da terra aos céus, lá está sentado,
E ainda à saúde dele sepultado
Bebem (o saco o paga) estes maganos.
E cuida quem lhes dá a sua esmola
Que eles a gastam em função tão pia?
Quanto vos enganais, ó gente tola!
O altar-mor com dois cotos se alumia;
E o frade, com a puta que o consola,
Gasta de noite o que lhe dais de dia.
Filinto Elísio
(Filinto Elísio nasceu no dia 23 de Dezembro de 1734. Morreu em 1819.)
"Domingo", de Manuel da Fonseca
Domingo
Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.
Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
"Bom tempo para amanhã"…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina…
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
- porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste principio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores…
Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia.
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
- ao sol como num ritual consagrado a um deus! -
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…
Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos.
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
- rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
- Olha, quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
- …. no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água…
… um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou…
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?…
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.
Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!
Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!
Manuel da Fonseca, "Rosa dos Ventos"
Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.
Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
"Bom tempo para amanhã"…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina…
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
- porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.
Partindo deste principio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!
Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores…
Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia.
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
- ao sol como num ritual consagrado a um deus! -
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…
Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!
E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos.
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
- rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
- Olha, quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
- …. no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água…
… um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou…
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?…
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.
Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!
Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!
Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!
Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!
Manuel da Fonseca, "Rosa dos Ventos"
sábado, 22 de dezembro de 2018
Em palhas deitado 22
Caro Amigo,
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.
Melhores cumprimentos,
Haniceto.
Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emoticons. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
Dá-se abraço em segunda mão
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura respondeu-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Lembrei-me de te escrever hoje. Há que tempos, não é? Andei a mexer nas gavetas, faço-o uma vez por ano, sei lá porquê, e no meio da papelada encontrei meia dúzia de abraços antigos mas ainda em razoável estado de conservação. É o que me resta. Acho que é uma pena deitá-los fora. Vou mandar-te um. Espero que te sirva.
Melhores cumprimentos,
Haniceto.
Paroles, paroles, paroles
Dizem-me que as palavras já não valem nada. Mentira. As palavras são cada vez mais poderosas, as palavras dominam as nossas vidas. As palavras até tomaram o lugar dos afectos, dos carinhos. Reparem: antigamente davam-se beijos, davam-se abraços; agora dizem-se beijos, dizem-se abraços. O gesto ancestral e puro foi substituído pela retórica etiquetada, o contacto físico acabou vergado ao esboço da intenção - à simulação. À dissimulação?
Dizemos "Beijinhos", dizemos "Abraço", e assim ficamos. Pelas palavras. Beijos e abraços são só vocábulos. Mantemos uma distância alegadamente higiénica entre nós, os alegados amigos uns dos outros. Dizemos. Ao telefone, por escrito, ao vivo na pressa da rua, na patetice dos emoticons. Dar a sério (à séria, se lido em Lisboa) é que não. Ninguém dá nada a ninguém - nem sequer beijos, nem sequer abraços. Fazemos votos de. "O que lhe estimo é um beijo", "Desejo-lhe um excelente abraço"...
É. Olhem bem à volta: as palavras estão em alta, navegam de vento em popa. As palavras. O que verdadeiramente está em crise é a palavra, a palavra singular e definitiva, essa vaga memória de uma honra démodée que se arrasta pelas ruas da amargura - abandonada, pobre, cega e nua. Mas isto, claro, sou eu a dizer e são apenas... palavras, palavras, palavras.
Dá-se abraço em segunda mão
O meu amigo fazia anos e eu mandei-lhe uma SMS: "Parabéns. Abraço."
O meu amigo respondeu-me, também por SMS: "Devolvo o abraço. Obrigado."
E eu pensei: o abraço teria defeito?
Saudações amigas?
Escrevi aí a uma criatura e, no final, mandei-lhe um "grande abraço". A criatura respondeu-me e, no final, mandou-me, para a troca, "saudações amigas". Saudações amigas? Mas o que raio são saudações amigas? Evidentemente serão o contrário de saudações inimigas, mas o que são saudações inimigas? Abraço, eu sei: o abraço é sólido, palpável, vê-se, sente-se, dá-se, recebe-se, aperta-nos, aproxima-nos, humaniza-nos. Agora, saudações amigas...
Álvaro Cunqueiro 6
Illa: oco insumiso
infantil xogo:
xa non estás
entre a tua mesma luz.
Xa rodas lonxe dobregada en todo,
¡qué perfeita e qué descoñecida!
illa.
"Mar ao Norde", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
infantil xogo:
xa non estás
entre a tua mesma luz.
Xa rodas lonxe dobregada en todo,
¡qué perfeita e qué descoñecida!
illa.
"Mar ao Norde", Álvaro Cunqueiro
(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu em 1981.)
Os louros a quem os merece
- Que injustiça! - queixou-se o velho pederasta -, os louros deviam ser todos para mim...
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
A Igreja da pedofilia e outros abusos
O cardeal e os foguetes
O cardeal-patriarca de Lisboa garantiu ontem, em entrevista à rádio TSF e ao jornal Diário de Notícias, que não conhece casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas, à cautela, acrescentou que "não podemos estar a deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Faz muito bem o senhor D. José Policarpo. Foguetes, não! Ainda lhe rebentam nas mãos.
(19 de Dezembro de 2011)
Os nossos bispos, a pedofilia e a hipocrisia deles
José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, garantia em Dezembro do ano passado, meia dúzia de dias antes do Natal, que não conhecia casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas também dizia que o melhor era não "deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Pois pode e é preciso ter cuidado. Não faltam por aí manetas, por eles, os foguetes, lhes terem rebentado nas mãos - avisei eu.
Ontem, José Policarpo anunciou que os bispos portugueses querem que as vítimas de abusos sexuais por parte de membros do clero participem os casos "às autoridades civis competentes".
Não sei se o cardeal arrepiou caminho apenas para salvar as mãozinhas ou se teve um rebate de consciência. Mas este desafio dos bispos, tal como foi lançado cá para fora, enrodilhado em alegadas questões legais (e não morais, valha-nos Deus), é uma indecência e de uma hipocrisia e crueldade para com as vítimas que envergonham o Jesus Cristo que as excelências reverendíssimas deviam pregar e viver.
Quem é esta gente que fala em nome da minha Igreja e já não sabe o que é o amor ao próximo e a caridade cristã? O que é que acontece a esta gente quando se veste de vermelho, para tão escandalosamente desdenhar dos mais fracos e indefesos, dos estropiados?
E, no entanto, José Policarpo e os seus bispos (não sei quem os empurrou) deram um passo em direcção à verdade: há pedófilos e vítimas de pedofilia na Igreja portuguesa. A Hierarquia anda muito devagar e por isso eu só lhe peço que tente, para já, mais um passo. Um pequeno passo até ao enorme tapete para baixo do qual tem varrido, pelo menos ao longo dos últimos quarenta anos, os diversos casos de abusos sexuais sobre menores que conhece e a que fecha os olhos. E que tenha a dignidade mínima de expor, expurgar e fazer castigar os violadores e não as vítimas.
(20 de Abril de 2012)
Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo
Eurico Dias Nogueira, antigo arcebispo de Braga, é da minha opinião: a Igreja Católica portuguesa "esteve demasiado calada" sobre os casos de pedofilia que aconteceram no seu seio. Em entrevista à rádio Antena 1, o prelado confirma ter informações de casos de abusos sexuais de menores dentro da instituição, que critica por ter tentado "abafar" as situações, sem "resolver" o problema. "Fazia-se isso secretamente", diz.
E querem saber como é que a Hierarquia "abafava" os casos? Por exemplo, mudando os padres pedófilos de paróquia em paróquia e de escola em escola, assim multiplicando o número de vítimas.
(21 de Abril de 2012)
Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo 2
Manuel Morujão, padre porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, continua a falar demais e a falar de menos. Agora a propósito da pedofilia no interior da Igreja. É. Não têm emenda os nossos bispos: dão um passinho em frente e logo dois passos atrás. Não têm emenda e não têm perdão.
(11 de Dezembro de 2012)
E as provas? E os nomes?
A Conferência Episcopal Portuguesa garante ter dado "passos muito concretos na luta contra a pedofilia". Deu? Pois então que apresente provas, que diga nomes, como exige àqueles que denunciam os abusos praticados no interior da Igreja. Porque "não se deve dizer mais do que a verdade".
(4 de Janeiro de 2013)
O homem que sabia uma coisa terminada em "ia"
José Policarpo sabia de uma coisa terminada em "ia". Pedofilia?, perguntaram-lhe logo. Não, de pedofilia não sei nada, respondeu. Compaixão?, insistiram. Vão-se lixar, isso não interessa para nada e nem sequer termina em "ia", protestou o príncipe da Igreja na reforma. Economia, sei é de economia, acabou por se abrir o emérito, parece que um tudo nada afrontado com a maneira leviana como sindicatos e oposição estão a governar Portugal. Ou então seriam gases.
(27 de Outubro de 2013)
Igreja reúne-se de emergência
"A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima", avisa o JN. Não sei se é verdade, mas, a ser, é preciso tomar nota: em Fátima evidentemente, e de emergência. E por que razão reúne a Igreja portuguesa, de emergência, em Fátima? Por causa da pedofilia interna? Não. Por causa da fome externa? Não. Por causa da pobreza geral? Não. Por causa do desemprego dos outros? Não. Por causa da crise de vocações sacerdotais? Não. Por causa da falta de povo e de fé nas igrejas e nas procissões? Não. Por causa do burquíni? Não. Por causa dos incêndios de Verão? Não. Por causa do terramoto em Itália? Não. Por causa dos atentados na Turquia? Não. Por causa da guerra na Síria? Não, não e não. "A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima, para decidir a resposta a enviar ao Estado, que recentemente notificou a maioria das 4376 paróquias a nível nacional para pagarem imposto municipal sobre imóveis dos seus edifícios e terrenos."
(26 de Agosto de 2016)
Os gays, ou quando a Igreja não sabe ser mãe
Diz que vai por aí uma certa e determinada confusão a propósito de umas tais declarações da "psicóloga católica" Maria José Vilaça. A Psicologia Católica é uma especialidade clínica (suponho) que eu ignorava, mas não sou dos que negam à partida uma ciência que desconheço. Portanto...
Maria José Vilaça diz que disse à revista Família Cristã que ter um filho homossexual é como ter um filho toxicodependente. "Eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer", diz que disse a senhora doutora. Quer-se dizer, ter um filho homossexual ou toxicodepente é o mesmo que ter um filho trolha que a mãezinha sempre soube que nasceu para ser presidente da república. Isto é, ter um filho homossexual, toxidependente ou trolha é praticamente como ter um filho propriamente dito...
Também não sabia dos homossexuais católicos, que certamente serão completamente diferentes dos homossexuais protestantes, dos homossexuais ortodoxos, dos homossexuais judeus, dos homossexuais budistas, dos homossexuais islâmicos, dos homossexuais agnósticos, dos homossexuais ateus, dos homossexuais bissextos e dos homossexuais apenas. Mas, palavra de honra, não quero saber o que é que objectivamente os diferencia...
Mas sei que, por exemplo, a Igreja Católica Apostólica Romana, que impõe o celibato aos seus funcionários de topo (de padres ao Papa) e lhes exige a castidade, desculpa-lhes o pinanço com mulheres, ainda que casadas, e varre para debaixo do tapete o abuso sobre rapazinhos, posto que inocentes. Os clérigos homossexuais que exigem os seus direitos também me fazem rir, porque não sei qual foi a parte que eles não perceberam quando, no acto da ordenação, perante família e testemunhas, se deitaram no chão aos pés do bispo e aceitaram e juraram desatarraxar a pila para todo o sempre, amém.
A ver se me explico: os padres católicos, enquanto a "Lei" for lamentavelmente assim, não podem reclamar direito a sexualidade de marca nenhuma - nem homo, nem hetero, nem bi, nem pan, nem tudo ao monte e fé em Deus, nem sequer à punheta, escusam de vir com paninhos quentes. Não há sexo para ninguém! Os padres não podem ser sexuais.
O lamentável, o triste, o nojo é que a Igreja instrumental, especialista circense em malabarismos hipócritas, cirrosada em pecado e vício até aos entrefolhos, continue a oprobrizar os seus filhos homossexuais que afinal nunca juraram a Deus castidade e que só querem ser felizes com quem escolheram e acreditando e vivendo em Jesus, tenham ou não cartão de católico em dia. Uma Igreja assim não é boa mãe...
(14 de Novembro de 2016)
Bispo pede campanha contra pedofilia na Igreja
O título deste texto é mentira, e o que se segue também. O bispo de Viana do Castelo, Anacleto Oliveira, apelou hoje ao Presidente da República para "liderar a mobilização de toda a nação" numa "causa nacional" contra a pedofilia na Igreja, por considerar que o que tem sido feito "não chega".
"Nada há de mais poderoso e eficaz [do] que um povo inteiro unido pela mesma causa, no comum modo de viver e pensar, numa mesma cultura", fez notar o prelado, defendendo que "chegou a hora" de o País "gritar bem alto: basta de pedofilia nos colégios católicos, nos seminários e nas sacristias".
A última parte desta última parte também é inventada. A versão verdadeira, que tem a ver com incêndios e é um bocado de rir, está no jornal Público, que copiou da agência Lusa.
Repiro: o título deste texto é mentira. E é pena.
(20 de Agosto de 2017)
Cardeal-patriarca fala do que não sabe
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, não sabe nada de casamento - o que até se compreende, porque é solteiro. Também não sabe nada de sexo - o que se pode aceitar, porque certamente nunca praticou. Ainda assim, ignorante em toda a linha, debita palpite sobre os dois assuntos, defendendo que os católicos recasados "em situação irregular" devem ser aconselhados a viverem sem relações sexuais.
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, sabe muito bem da pedofilia na Igreja portuguesa. Falando do que sabe e do que realmente lhe diz respeito, gostaria de o ouvir propor que os padres devem ser aconselhados a deixarem as pilinhas dos meninos em paz.
(8 de Fevereiro de 2018)
P. S. - Apanhado de textos do Tarrenego! publicado no dia 21 de Agosto de 2018, com dois acrescentos. Hoje, no seu discurso de Natal, o Papa Francisco garantiu que a Igreja "nunca mais encobrirá ou desvalorizará" os abusos sexuais perpetrados por membros do seu clero e apelou aos padres abusadores para que se entreguem às autoridades. Em Portugal, os nossos bispos, como é seu timbre, continuarão galhardamente a assobiar para o lado e a varrer para debaixo do tapete...
O cardeal-patriarca de Lisboa garantiu ontem, em entrevista à rádio TSF e ao jornal Diário de Notícias, que não conhece casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas, à cautela, acrescentou que "não podemos estar a deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Faz muito bem o senhor D. José Policarpo. Foguetes, não! Ainda lhe rebentam nas mãos.
(19 de Dezembro de 2011)
Os nossos bispos, a pedofilia e a hipocrisia deles
José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, garantia em Dezembro do ano passado, meia dúzia de dias antes do Natal, que não conhecia casos de pedofilia na Igreja portuguesa. Mas também dizia que o melhor era não "deitar foguetes antes da festa, porque um caso pode sempre aparecer". Pois pode e é preciso ter cuidado. Não faltam por aí manetas, por eles, os foguetes, lhes terem rebentado nas mãos - avisei eu.
Ontem, José Policarpo anunciou que os bispos portugueses querem que as vítimas de abusos sexuais por parte de membros do clero participem os casos "às autoridades civis competentes".
Não sei se o cardeal arrepiou caminho apenas para salvar as mãozinhas ou se teve um rebate de consciência. Mas este desafio dos bispos, tal como foi lançado cá para fora, enrodilhado em alegadas questões legais (e não morais, valha-nos Deus), é uma indecência e de uma hipocrisia e crueldade para com as vítimas que envergonham o Jesus Cristo que as excelências reverendíssimas deviam pregar e viver.
Quem é esta gente que fala em nome da minha Igreja e já não sabe o que é o amor ao próximo e a caridade cristã? O que é que acontece a esta gente quando se veste de vermelho, para tão escandalosamente desdenhar dos mais fracos e indefesos, dos estropiados?
E, no entanto, José Policarpo e os seus bispos (não sei quem os empurrou) deram um passo em direcção à verdade: há pedófilos e vítimas de pedofilia na Igreja portuguesa. A Hierarquia anda muito devagar e por isso eu só lhe peço que tente, para já, mais um passo. Um pequeno passo até ao enorme tapete para baixo do qual tem varrido, pelo menos ao longo dos últimos quarenta anos, os diversos casos de abusos sexuais sobre menores que conhece e a que fecha os olhos. E que tenha a dignidade mínima de expor, expurgar e fazer castigar os violadores e não as vítimas.
(20 de Abril de 2012)
Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo
Eurico Dias Nogueira, antigo arcebispo de Braga, é da minha opinião: a Igreja Católica portuguesa "esteve demasiado calada" sobre os casos de pedofilia que aconteceram no seu seio. Em entrevista à rádio Antena 1, o prelado confirma ter informações de casos de abusos sexuais de menores dentro da instituição, que critica por ter tentado "abafar" as situações, sem "resolver" o problema. "Fazia-se isso secretamente", diz.
E querem saber como é que a Hierarquia "abafava" os casos? Por exemplo, mudando os padres pedófilos de paróquia em paróquia e de escola em escola, assim multiplicando o número de vítimas.
(21 de Abril de 2012)
Os bispos e a pedofilia: mais um pequeno passo 2
Manuel Morujão, padre porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa, continua a falar demais e a falar de menos. Agora a propósito da pedofilia no interior da Igreja. É. Não têm emenda os nossos bispos: dão um passinho em frente e logo dois passos atrás. Não têm emenda e não têm perdão.
(11 de Dezembro de 2012)
E as provas? E os nomes?
A Conferência Episcopal Portuguesa garante ter dado "passos muito concretos na luta contra a pedofilia". Deu? Pois então que apresente provas, que diga nomes, como exige àqueles que denunciam os abusos praticados no interior da Igreja. Porque "não se deve dizer mais do que a verdade".
(4 de Janeiro de 2013)
O homem que sabia uma coisa terminada em "ia"
José Policarpo sabia de uma coisa terminada em "ia". Pedofilia?, perguntaram-lhe logo. Não, de pedofilia não sei nada, respondeu. Compaixão?, insistiram. Vão-se lixar, isso não interessa para nada e nem sequer termina em "ia", protestou o príncipe da Igreja na reforma. Economia, sei é de economia, acabou por se abrir o emérito, parece que um tudo nada afrontado com a maneira leviana como sindicatos e oposição estão a governar Portugal. Ou então seriam gases.
(27 de Outubro de 2013)
Igreja reúne-se de emergência
"A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima", avisa o JN. Não sei se é verdade, mas, a ser, é preciso tomar nota: em Fátima evidentemente, e de emergência. E por que razão reúne a Igreja portuguesa, de emergência, em Fátima? Por causa da pedofilia interna? Não. Por causa da fome externa? Não. Por causa da pobreza geral? Não. Por causa do desemprego dos outros? Não. Por causa da crise de vocações sacerdotais? Não. Por causa da falta de povo e de fé nas igrejas e nas procissões? Não. Por causa do burquíni? Não. Por causa dos incêndios de Verão? Não. Por causa do terramoto em Itália? Não. Por causa dos atentados na Turquia? Não. Por causa da guerra na Síria? Não, não e não. "A Igreja vai reunir-se de emergência na segunda-feira, em Fátima, para decidir a resposta a enviar ao Estado, que recentemente notificou a maioria das 4376 paróquias a nível nacional para pagarem imposto municipal sobre imóveis dos seus edifícios e terrenos."
(26 de Agosto de 2016)
Os gays, ou quando a Igreja não sabe ser mãe
Diz que vai por aí uma certa e determinada confusão a propósito de umas tais declarações da "psicóloga católica" Maria José Vilaça. A Psicologia Católica é uma especialidade clínica (suponho) que eu ignorava, mas não sou dos que negam à partida uma ciência que desconheço. Portanto...
Maria José Vilaça diz que disse à revista Família Cristã que ter um filho homossexual é como ter um filho toxicodependente. "Eu aceito o meu filho, amo-o se calhar até mais, porque sei que ele vive de uma forma que eu sei que não é natural e que o faz sofrer", diz que disse a senhora doutora. Quer-se dizer, ter um filho homossexual ou toxicodepente é o mesmo que ter um filho trolha que a mãezinha sempre soube que nasceu para ser presidente da república. Isto é, ter um filho homossexual, toxidependente ou trolha é praticamente como ter um filho propriamente dito...
Também não sabia dos homossexuais católicos, que certamente serão completamente diferentes dos homossexuais protestantes, dos homossexuais ortodoxos, dos homossexuais judeus, dos homossexuais budistas, dos homossexuais islâmicos, dos homossexuais agnósticos, dos homossexuais ateus, dos homossexuais bissextos e dos homossexuais apenas. Mas, palavra de honra, não quero saber o que é que objectivamente os diferencia...
Mas sei que, por exemplo, a Igreja Católica Apostólica Romana, que impõe o celibato aos seus funcionários de topo (de padres ao Papa) e lhes exige a castidade, desculpa-lhes o pinanço com mulheres, ainda que casadas, e varre para debaixo do tapete o abuso sobre rapazinhos, posto que inocentes. Os clérigos homossexuais que exigem os seus direitos também me fazem rir, porque não sei qual foi a parte que eles não perceberam quando, no acto da ordenação, perante família e testemunhas, se deitaram no chão aos pés do bispo e aceitaram e juraram desatarraxar a pila para todo o sempre, amém.
A ver se me explico: os padres católicos, enquanto a "Lei" for lamentavelmente assim, não podem reclamar direito a sexualidade de marca nenhuma - nem homo, nem hetero, nem bi, nem pan, nem tudo ao monte e fé em Deus, nem sequer à punheta, escusam de vir com paninhos quentes. Não há sexo para ninguém! Os padres não podem ser sexuais.
O lamentável, o triste, o nojo é que a Igreja instrumental, especialista circense em malabarismos hipócritas, cirrosada em pecado e vício até aos entrefolhos, continue a oprobrizar os seus filhos homossexuais que afinal nunca juraram a Deus castidade e que só querem ser felizes com quem escolheram e acreditando e vivendo em Jesus, tenham ou não cartão de católico em dia. Uma Igreja assim não é boa mãe...
(14 de Novembro de 2016)
Bispo pede campanha contra pedofilia na Igreja
O título deste texto é mentira, e o que se segue também. O bispo de Viana do Castelo, Anacleto Oliveira, apelou hoje ao Presidente da República para "liderar a mobilização de toda a nação" numa "causa nacional" contra a pedofilia na Igreja, por considerar que o que tem sido feito "não chega".
"Nada há de mais poderoso e eficaz [do] que um povo inteiro unido pela mesma causa, no comum modo de viver e pensar, numa mesma cultura", fez notar o prelado, defendendo que "chegou a hora" de o País "gritar bem alto: basta de pedofilia nos colégios católicos, nos seminários e nas sacristias".
A última parte desta última parte também é inventada. A versão verdadeira, que tem a ver com incêndios e é um bocado de rir, está no jornal Público, que copiou da agência Lusa.
Repiro: o título deste texto é mentira. E é pena.
(20 de Agosto de 2017)
Cardeal-patriarca fala do que não sabe
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, não sabe nada de casamento - o que até se compreende, porque é solteiro. Também não sabe nada de sexo - o que se pode aceitar, porque certamente nunca praticou. Ainda assim, ignorante em toda a linha, debita palpite sobre os dois assuntos, defendendo que os católicos recasados "em situação irregular" devem ser aconselhados a viverem sem relações sexuais.
Manuel Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, sabe muito bem da pedofilia na Igreja portuguesa. Falando do que sabe e do que realmente lhe diz respeito, gostaria de o ouvir propor que os padres devem ser aconselhados a deixarem as pilinhas dos meninos em paz.
(8 de Fevereiro de 2018)
P. S. - Apanhado de textos do Tarrenego! publicado no dia 21 de Agosto de 2018, com dois acrescentos. Hoje, no seu discurso de Natal, o Papa Francisco garantiu que a Igreja "nunca mais encobrirá ou desvalorizará" os abusos sexuais perpetrados por membros do seu clero e apelou aos padres abusadores para que se entreguem às autoridades. Em Portugal, os nossos bispos, como é seu timbre, continuarão galhardamente a assobiar para o lado e a varrer para debaixo do tapete...
Nelson Rodrigues 7
Os idiotas confessos
Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: - tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: - o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.
Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: - "Uma santa! Uma santa!" Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia, etc., etc.
Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: - "Eu sou um quadrúpede!" Nenhuma objeção. E, então, insistia, heroico: - "Sou um quadrúpede de 28 patas!" Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.
[...]
"O Homem Fatal", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu no dia 21 de Dezembro de 1980.)
Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: - tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: - o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.
Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: - "Uma santa! Uma santa!" Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia, etc., etc.
Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: - "Eu sou um quadrúpede!" Nenhuma objeção. E, então, insistia, heroico: - "Sou um quadrúpede de 28 patas!" Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.
[...]
"O Homem Fatal", Nelson Rodrigues
(Nelson Rodrigues nasceu no dia 23 de Agosto de 1912. Morreu no dia 21 de Dezembro de 1980.)
Em palhas deitado 21
Um "santo Natal", o raio que vos parta!...
Rais parta a moda dos votos de "santo Natal". Rais parta o vírus. Parece que não chegava o desejo de "feliz Natal", a encomenda de "bom Natal", parece que não era suficiente. Não, agora pregam-me com o "santo Natal", esfregam-mo no focinho. Está certo os meus dois amigos padres que me fazem sempre questão de "santo Natal", são padres, é-lhes de direito e de ofício, estão perdoados. Agora outros, certos e determinados, venais, filisteus, alguns até concubinados, criaturas que não vão à missa, que não rezam o terço, que não fazem novenas, que não põem os pés nas procissões, que não abrem a porta ao compasso, que vão a Fátima por causa do leitão na Mealhada, que acham que o Te Deum jogava no Sporting, que pensam que a besta do Apocalipse é um gajo muito burro chamado Apocalipse, que tampouco sabem quantas são as pessoas da Santíssima Trindade, virem-me com o "santo Natal", sem sequer suspeitarem do que a coisa quer dizer, isso eu não deixo passar. E portanto aqui fica o meu mais veemente protesto, amém.
A verdade é esta, com efeito: os votos de boas festas andam cada vez mais chochos. Como as nozes. Então este ano saíram uma desgraça, as nozes e os votos de boas festas, complicados e chochos. São uns poeminhas a puxar ao sentimento, são uns "o melhor possível" muito envergonhados, são uns "nunca pior" do piorio, são uns seja o que Deus quiser embrulhados numa espécie de pedido de desculpas e, na verdade, parece que desejos implícitos de infelicidade geral. São uma tristeza. Um choradinho que desconsola. Ai que saudades que eu tenho dos bons velhos votos de um feliz Natal e um ano novo cheio de propriedades...
Lições de História: Salomão
Salomão era muito rico e muito sábio. Ordenou a construção do Templo de Jerusalém e mandou cortar um bebé ao meio. Depois fugiu para o Brasil e entrou na telenovela "O Astro".
Rais parta a moda dos votos de "santo Natal". Rais parta o vírus. Parece que não chegava o desejo de "feliz Natal", a encomenda de "bom Natal", parece que não era suficiente. Não, agora pregam-me com o "santo Natal", esfregam-mo no focinho. Está certo os meus dois amigos padres que me fazem sempre questão de "santo Natal", são padres, é-lhes de direito e de ofício, estão perdoados. Agora outros, certos e determinados, venais, filisteus, alguns até concubinados, criaturas que não vão à missa, que não rezam o terço, que não fazem novenas, que não põem os pés nas procissões, que não abrem a porta ao compasso, que vão a Fátima por causa do leitão na Mealhada, que acham que o Te Deum jogava no Sporting, que pensam que a besta do Apocalipse é um gajo muito burro chamado Apocalipse, que tampouco sabem quantas são as pessoas da Santíssima Trindade, virem-me com o "santo Natal", sem sequer suspeitarem do que a coisa quer dizer, isso eu não deixo passar. E portanto aqui fica o meu mais veemente protesto, amém.
A verdade é esta, com efeito: os votos de boas festas andam cada vez mais chochos. Como as nozes. Então este ano saíram uma desgraça, as nozes e os votos de boas festas, complicados e chochos. São uns poeminhas a puxar ao sentimento, são uns "o melhor possível" muito envergonhados, são uns "nunca pior" do piorio, são uns seja o que Deus quiser embrulhados numa espécie de pedido de desculpas e, na verdade, parece que desejos implícitos de infelicidade geral. São uma tristeza. Um choradinho que desconsola. Ai que saudades que eu tenho dos bons velhos votos de um feliz Natal e um ano novo cheio de propriedades...
Lições de História: Salomão
Salomão era muito rico e muito sábio. Ordenou a construção do Templo de Jerusalém e mandou cortar um bebé ao meio. Depois fugiu para o Brasil e entrou na telenovela "O Astro".
Pronto, já me estragaram o Natal...
"Noite
da consoada e dia de Natal com frio, chuva e neve", avisa o título do
jornal. Parece impossível, em Dezembro. Será do tempo?
Deolindo Tavares 3
[Estamos irremediavelmente perdidos]
Estamos irremediavelmente perdidos,
e só nos resta esperarmos o fim de tudo
neste mundo onde ninguém se compreende
apesar de todos falarem a mesma língua,
sofrerem as mesmas dores,
viverem os mesmos segundos, sob um mesmo céu.
Estamos irremediavelmente perdidos,
olhando os campos que já não nos pertencem mais,
olhando um céu insensível
que apesar de tudo ainda é nosso e ninguém nos tomará.
Enquanto não vem o fim,
pensemos no princípio, tragicamente imóveis nesta planície
onde todos vêem e estão miseramente cegos,
onde todos ouvem e estão miseramente surdos,
onde todos falam e estão miseramente mudos.
Estamos irremediavelmente perdidos.
Só as mãos e os olhos ainda se compreendem mas se calam.
Deolindo Tavares
(Deolindo Tavares nasceu no dia 21 de Dezembro de 1918. Morreu em 1942.)
Estamos irremediavelmente perdidos,
e só nos resta esperarmos o fim de tudo
neste mundo onde ninguém se compreende
apesar de todos falarem a mesma língua,
sofrerem as mesmas dores,
viverem os mesmos segundos, sob um mesmo céu.
Estamos irremediavelmente perdidos,
olhando os campos que já não nos pertencem mais,
olhando um céu insensível
que apesar de tudo ainda é nosso e ninguém nos tomará.
Enquanto não vem o fim,
pensemos no princípio, tragicamente imóveis nesta planície
onde todos vêem e estão miseramente cegos,
onde todos ouvem e estão miseramente surdos,
onde todos falam e estão miseramente mudos.
Estamos irremediavelmente perdidos.
Só as mãos e os olhos ainda se compreendem mas se calam.
Deolindo Tavares
(Deolindo Tavares nasceu no dia 21 de Dezembro de 1918. Morreu em 1942.)
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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018
Em palhas deitado 20
Lições de História: Sodoma e Gomorra (ou há moralidade ou...)
Os sodomitas, habitantes de Sodoma, ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários. A História às vezes é muito injusta.
Para contar entre o rapa a pinhões e a abertura dos presentes (e dos ausentes)
Juntaram-se um alemão multinacional, um americano, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol e um português, todos gente de rebimba o malho. E diz o Albert Einstein: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento". E diz o Mark Twain: "O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler". E diz o Charles Dickens: "Nunca nos devemos envergonhar das nossas próprias lágrimas". E diz o Antoine Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E diz o Leonardo da Vinci: "Do mesmo modo que o metal enferruja com a ociosidade e a água parada perde a sua pureza, assim a inércia esgota a energia da mente". E diz o Miguel de Unamuno: "Viaja-se não para encontrar o destino, mas para fugir de onde se parte". E diz o Antonino Floriano Teixeira, definitivo: "Quem é que paga a última rodada?"...
Lições de História: Hipócrates
Hipócrates, ou Ἱπποκράτης, assim lhe chamava a mulher quando se zangava com ele, nasceu 460 anos antes de Nosso Senhor Jesus Cristo, era grego como o Tsrípras, ou Τσίπρας, e começou por ser considerado o pai da medicina. Depois tornou-se juramento e foi a partir daí que os médicos deixaram de ser de fiar. Não é por acaso que agora, quando sabemos que vamos morrer e nos dizem que estamos sãos como pêros, pedimos sempre "uma segunda opinião"...
Os sodomitas, habitantes de Sodoma, ficaram com a pior parte da fama. Os gomorritas safaram-se, vá-se lá saber porquê, e nem constam nos dicionários. A História às vezes é muito injusta.
Para contar entre o rapa a pinhões e a abertura dos presentes (e dos ausentes)
Juntaram-se um alemão multinacional, um americano, um inglês, um francês, um italiano, um espanhol e um português, todos gente de rebimba o malho. E diz o Albert Einstein: "A imaginação é mais importante do que o conhecimento". E diz o Mark Twain: "O homem que não lê bons livros não tem nenhuma vantagem sobre o homem que não sabe ler". E diz o Charles Dickens: "Nunca nos devemos envergonhar das nossas próprias lágrimas". E diz o Antoine Lavoisier: "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". E diz o Leonardo da Vinci: "Do mesmo modo que o metal enferruja com a ociosidade e a água parada perde a sua pureza, assim a inércia esgota a energia da mente". E diz o Miguel de Unamuno: "Viaja-se não para encontrar o destino, mas para fugir de onde se parte". E diz o Antonino Floriano Teixeira, definitivo: "Quem é que paga a última rodada?"...
Lições de História: Hipócrates
Hipócrates, ou Ἱπποκράτης, assim lhe chamava a mulher quando se zangava com ele, nasceu 460 anos antes de Nosso Senhor Jesus Cristo, era grego como o Tsrípras, ou Τσίπρας, e começou por ser considerado o pai da medicina. Depois tornou-se juramento e foi a partir daí que os médicos deixaram de ser de fiar. Não é por acaso que agora, quando sabemos que vamos morrer e nos dizem que estamos sãos como pêros, pedimos sempre "uma segunda opinião"...
Alcides Werk 3
Da espera
Direi aos pássaros que esperem,
enquanto perdurar a ronda dos morcegos.
Mas, quando se avizinhar a madrugada,
exigirei
que todas as canções tecidas no silêncio
deixem o verde tímido dos bosques
e povoem de sons as avenidas
para que os homens se alegrem
e conheçam que o mundo é bom.
Alcides Werk
(Alcides Werk nasceu no dia 20 de Dezembro de 1934. Morreu em 2003.)
Direi aos pássaros que esperem,
enquanto perdurar a ronda dos morcegos.
Mas, quando se avizinhar a madrugada,
exigirei
que todas as canções tecidas no silêncio
deixem o verde tímido dos bosques
e povoem de sons as avenidas
para que os homens se alegrem
e conheçam que o mundo é bom.
Alcides Werk
(Alcides Werk nasceu no dia 20 de Dezembro de 1934. Morreu em 2003.)
Vítor Matos e Sá 3
Dá-me as tuas mãos
As mãos foram feitas
para trazer o futuro,
encurtar a tristeza, encher
o que fica das mãos
de ontem - intervalos
(duros, fiéis) das palavras,
vocação urgente
da ternura, pensamento
entreaberto até
aos dedos longos
pelas coisas fora
pelos anos dentro.
"Companhia Violenta", Vítor Matos e Sá
(Vítor Matos e Sá nasceu no dia 20 de Dezembro de 1926. Morreu em 1975.)
As mãos foram feitas
para trazer o futuro,
encurtar a tristeza, encher
o que fica das mãos
de ontem - intervalos
(duros, fiéis) das palavras,
vocação urgente
da ternura, pensamento
entreaberto até
aos dedos longos
pelas coisas fora
pelos anos dentro.
"Companhia Violenta", Vítor Matos e Sá
(Vítor Matos e Sá nasceu no dia 20 de Dezembro de 1926. Morreu em 1975.)
quarta-feira, 19 de dezembro de 2018
Alexandre O'Neill 6
O atro abismo
Quando o poeta escreveu: "... o atro abismo!",
Umas virgulas por ele mal dispostas,
Irritadas gritaram: "É estrabismo!"
Mas um ponto que viveu no dicionário,
De admiração caiu de costas
E abismado seguiu o seu destino.
"Poesias Completas & Dispersos", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
Quando o poeta escreveu: "... o atro abismo!",
Umas virgulas por ele mal dispostas,
Irritadas gritaram: "É estrabismo!"
Mas um ponto que viveu no dicionário,
De admiração caiu de costas
E abismado seguiu o seu destino.
"Poesias Completas & Dispersos", Alexandre O'Neill
(Alexandre O'Neill nasceu no dia 19 de Dezembro de 1924. Morreu em 1986.)
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Vitorino Nemésio 6
Tenho uma saudade tão braba
Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.
Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.
Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.
Quando se diz "Seja feita"
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.
"Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga", Vitorino Nemésio
(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)
Tenho uma saudade tão braba
Da ilha onde já não moro,
Que em velho só bebo a baba
Do pouco pranto que choro.
Os meus parentes, com dó,
Bem que me querem levar,
Mas talvez que nem meu pó
Mereça a Deus lá ficar.
Enfim, só Nosso Senhor
Há-de decidir se posso
Morrer lá com esta dor,
A meio de um Padre Nosso.
Quando se diz "Seja feita"
Eu sentirei na garganta
A mão da Morte, direita
A este peito, que ainda canta.
"Caderno de Caligraphia e Outros Poemas a Marga", Vitorino Nemésio
(Vitorino Nemésio nasceu no dia 19 de Dezembro de 1901. Morreu em 1978.)
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Ernesto Guerra da Cal 5
Fado chorado sobre um amor passado
Pelo teu corpo
de limão maduro
desço
seguro
ao fundo
do mais fundo
rincão
do meu adorabundo coração
Que
ainda comigo agora
na saudosa desora
do passado
chora
a fio
como um rio
pelo jasmim errado
cuja doce e equívoca fragrância
amargando está em mim
inveterado
a tal
astral
distância
"Ramalhete de Poemas Carnais", Ernesto Guerra da Cal
(Ernesto Guerra da Cal nasceu no dia 19 de Dezembro de 1911. Morreu em 1994.)
Pelo teu corpo
de limão maduro
desço
seguro
ao fundo
do mais fundo
rincão
do meu adorabundo coração
Que
ainda comigo agora
na saudosa desora
do passado
chora
a fio
como um rio
pelo jasmim errado
cuja doce e equívoca fragrância
amargando está em mim
inveterado
a tal
astral
distância
"Ramalhete de Poemas Carnais", Ernesto Guerra da Cal
(Ernesto Guerra da Cal nasceu no dia 19 de Dezembro de 1911. Morreu em 1994.)
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Manoel de Barros 7
Os deslimites da palavra
Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.Ando muito completo de vazios.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas
Manoel de Barros
(Manoel de Barros nasceu no dia 19 de Dezembro de 1916. Morreu em 2014.)
Lauro Leite 2
Os tempos
Tinha uma porção de anjos
segurando o algodão daquela nuvem branca;
e o que pintou de azul o fundo
manchou de cinza o fim dos nossos olhos
e nos beijámos.
Tinha um lago calmo
e o vento sussurrava malícias,
o peixe prata luar de agosto saltou
e nos amámos.
Tinha o fogo dos infernos,
um Lucifer danado
e homens se matando;
eu tinha lágrimas nos olhos
e tu também choravas
quando nos deixámos.
"Os Filhos de Dom Quixote", Lauro Leite
(Lauro Leite nasceu no dia 19 de Dezembro de 1937. Morreu em 2016.)
Tinha uma porção de anjos
segurando o algodão daquela nuvem branca;
e o que pintou de azul o fundo
manchou de cinza o fim dos nossos olhos
e nos beijámos.
Tinha um lago calmo
e o vento sussurrava malícias,
o peixe prata luar de agosto saltou
e nos amámos.
Tinha o fogo dos infernos,
um Lucifer danado
e homens se matando;
eu tinha lágrimas nos olhos
e tu também choravas
quando nos deixámos.
"Os Filhos de Dom Quixote", Lauro Leite
(Lauro Leite nasceu no dia 19 de Dezembro de 1937. Morreu em 2016.)
terça-feira, 18 de dezembro de 2018
Desprotecção civil
Quando o SIRESP vinha de motorizada
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, Forças no Terreno, Frentes Activas, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os políticos que os pariram inventaram um novo dicionário, especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam muito do que sabem nada...
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Minúsculo esclarecimento, provavelmente desnecessário: Teatro de Operações, vulgo TO.
(7 de Agosto de 2016)
E cá vamos morrendo, graças a Deus
Ninguém diga que está livre. Mas. Em Portugal não precisamos do terrorismo alheio para nos refodermos com assinável pertinácia: temos os incêndios, temos árvores carunchosas, temos andores idiotas e temos a Autoridade Nacional de Protecção Civil. E cá vamos morrendo, graças a Deus, que também não somos menos do que os estrangeiros.
P.S. - Temos também, evidentemente, as selfies com o Presidente da República.
(19 de Agosto de 2017)
Combustão espontânea e... organizada
Os incêndios por combustão espontânea acontecem, mas, ao contrário do que o próprio nome indica, às vezes dão algum trabalho a organizar. Lembram-se ou já ouviram falar das populares manifestações espontâneas de apoio ao Senhor Presidente do Conselho no tempo de Salazar? Manifestações espontâneas, exactamente. Imaginam o que esse teatro a preto e branco implicava de preparação e logística, de aluguer de camionetas e distribuição de letreiros a bem da Nação, de farnéis e garrafões de vinho a encomendar, de reuniões nos grémios e nas corporações, de noites sem dormir por parte de presidentes de junta, regedores, párocos fascistas, presidentes de câmara, governadores civis, comandantes locais da Legião Portuguesa e dos Bombeiros, chefes da Polícia e sargentos da Guarda, bufos da Pide, patrões da indústria e caciques de outras marcas?...
Pois com os incêndios é o mesmo. Para que aconteçam espontaneamente, e acontecem, é regra geral preciso que alguém acenda um fósforo. Há coisa de duas semanas fomos dar uma voltinha de mata-saudades pelo Alto Minho. De Esposende para cima, passámos por queimada atrás de queimada com ninguém à volta e à vista. Eu abro a janela, porque gosto daquele cheirinho a Natal antecipado, mas a minha mulher ficou aflita, disse-me que ainda não estávamos na época, que aquilo era ilegal e perigoso, muito perigoso. E se calhar a minha mulher tinha razão...
(17 de Outubro de 2017)
Francisco George e o jovem Mourato Nunes
O extraordinário director-geral da Saúde Francisco George foi reformado há quinze dias porque fez 70 anos, o velhote. A Dra. Graça Freitas que o substitui de momento e que me perdoe, mas estávamos tão bem servidos...
Por outro lado: o tenente-general Mourato Nunes, antigo comandante-geral da GNR, foi hoje anunciado como novo presidente da Autoridade Nacional de Protecção Civil. O jovem Mourato Nunes fez 71 anos em Abril e está aí para as curvas...
Eu não posso, porque sou uma pessoa educada, mas alguém havia de mandar foder quem faz pouco de nós assim...
(5 de Novembro de 2017)
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. É uma questão de orgulho macho. E então arrebitam e continuam a arder lampeiramente uma semana depois de terem sido decretados dominados aos microfones da CMTV, e a CMTV fica toda contente, porque a CMTV é do ramo do sarrabulho e do fumeiro - disso vive, em lume brando. Os oficiais da Protecção Civil, doutores da mula ruça porém pessoas muito honradas e de boina, que antes deste rico emprego nunca tinham posto os pés num incêndio, tiraram um curso relâmpago de Teatro de Operações, Forças no Terreno, Frentes Activas, Meios Aéreos & Pontos de Ignição e gostam de dar na televisão: o mais que dizem é que os incêndios de manhã, se não estão já dominados, vão entregar-se às autoridades a meio da tarde. Os oficiais da Protecção Civil e os políticos que os pariram inventaram um novo dicionário, especializaram-se em semântica, graduaram-se em eufemística e falam muito do que sabem nada...
Os bombeiros estão lá no centro do vulcão a derreter, mas a eles agora ninguém lhes pode perguntar. E ainda bem, porque lá dentro faz muito calor e o calor dilata os copos. O senhor da boina no camião de Fórmula 1 com ar condicionado é que sabe, e bebe águas das pedras. Geladas. E há briefings bidiários com groselha.
Quando o monte ardia, os bombeiros iam. Os bombeiros voluntários. Naquele tempo ninguém sequer sonhava ganhar dinheiro por fazer de conta que apaga incêndios - eram uns tolos. Não havia rede, satélites, parabólicas ou fibra óptica, ainda não havia radiotelefones ao serviço, os telemóveis ainda não tinham sido inventados e nem sequer havia cabinas telefónicas nos montes. Parece impossível, mas lá em cima, no meio da penedia e das giestas, no Portugal das cabras e dos cabrões, não havia telefone de espécie nenhuma. E não havia SIRESP, graças a Deus. Que se segue: se eram precisos reforços, alguém vinha de motorizada dar o recado ao quartel...
O mal dos incêndios dominados é que não gostam que lhes chamem isso: dominados. Freud explicaria muito melhor do que eu, mas eu, de momento, não tenho o Freud aqui à mão e, com isto do desemprego, perdi-lhe o número do telemóvel. Por outro lado, os incêndios estão desgostosos por lhes terem trocado o nome e mudado o objecto social. Objecto social, sim: o fogo é hoje em dia um negócio como outro qualquer - como a guerra, como a droga ou como a cirurgia plástica, por exemplo -, com múltiplas plataformas de exploração e sinergias que não param de exponenciar-se, a jusante e a montante, um extraordinário negócio que distribui transversalmente milhões e milhões e milhões de euros ou dólares consoante o paraíso, uma indústria em que todos ganham e em que apenas Portugal e os portugueses do rés-do-chão ficamos a perder.
Chamavam-se fogos antigamente e eram para apagar. Exactamente, fogos. E para apagar. Velhos tempos, coisas simples: Portugal ardia menos e não havia tanto teatro... de operações.
P.S. - Minúsculo esclarecimento, provavelmente desnecessário: Teatro de Operações, vulgo TO.
(7 de Agosto de 2016)
E cá vamos morrendo, graças a Deus
Ninguém diga que está livre. Mas. Em Portugal não precisamos do terrorismo alheio para nos refodermos com assinável pertinácia: temos os incêndios, temos árvores carunchosas, temos andores idiotas e temos a Autoridade Nacional de Protecção Civil. E cá vamos morrendo, graças a Deus, que também não somos menos do que os estrangeiros.
P.S. - Temos também, evidentemente, as selfies com o Presidente da República.
(19 de Agosto de 2017)
Combustão espontânea e... organizada
Os incêndios por combustão espontânea acontecem, mas, ao contrário do que o próprio nome indica, às vezes dão algum trabalho a organizar. Lembram-se ou já ouviram falar das populares manifestações espontâneas de apoio ao Senhor Presidente do Conselho no tempo de Salazar? Manifestações espontâneas, exactamente. Imaginam o que esse teatro a preto e branco implicava de preparação e logística, de aluguer de camionetas e distribuição de letreiros a bem da Nação, de farnéis e garrafões de vinho a encomendar, de reuniões nos grémios e nas corporações, de noites sem dormir por parte de presidentes de junta, regedores, párocos fascistas, presidentes de câmara, governadores civis, comandantes locais da Legião Portuguesa e dos Bombeiros, chefes da Polícia e sargentos da Guarda, bufos da Pide, patrões da indústria e caciques de outras marcas?...
Pois com os incêndios é o mesmo. Para que aconteçam espontaneamente, e acontecem, é regra geral preciso que alguém acenda um fósforo. Há coisa de duas semanas fomos dar uma voltinha de mata-saudades pelo Alto Minho. De Esposende para cima, passámos por queimada atrás de queimada com ninguém à volta e à vista. Eu abro a janela, porque gosto daquele cheirinho a Natal antecipado, mas a minha mulher ficou aflita, disse-me que ainda não estávamos na época, que aquilo era ilegal e perigoso, muito perigoso. E se calhar a minha mulher tinha razão...
(17 de Outubro de 2017)
Francisco George e o jovem Mourato Nunes
O extraordinário director-geral da Saúde Francisco George foi reformado há quinze dias porque fez 70 anos, o velhote. A Dra. Graça Freitas que o substitui de momento e que me perdoe, mas estávamos tão bem servidos...
Por outro lado: o tenente-general Mourato Nunes, antigo comandante-geral da GNR, foi hoje anunciado como novo presidente da Autoridade Nacional de Protecção Civil. O jovem Mourato Nunes fez 71 anos em Abril e está aí para as curvas...
Eu não posso, porque sou uma pessoa educada, mas alguém havia de mandar foder quem faz pouco de nós assim...
(5 de Novembro de 2017)
Em palhas deitado 19
Um grande igualmente e uma boa continuação
n
na
nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
na
na
Presentes de Natal 1
Ele: - Presente de Natal porreiro era um emprego, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de meias?
Presentes de Natal 2
Ele: - Presente de Natal porreiro era paz no mundo e comida para todas as crianças, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um pacote de Sugus? De framboesa...
Presentes de Natal 3
Ele: - Presente de Natal porreiro era um par de sapatos, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de cornos?
Lições de História: Carlos Magno
Carlos Magno nasceu em 742, filho de Pepino o Breve e de Berta de Laon, também conhecida como Berta dos Pés Grandes. Foi rei dos Francos e imperador do Ocidente, entre outros empregos e honrarias. Mais papista do que o Papa quando lhe dava jeito, conquistou meia Europa e teve, que se saiba, pelo menos quatro mulheres: Desiderata, Hildegarda de Vinzgouw, Fastrada e Luitgarda. Com semelhante folha de serviços, parece impossível que ainda há pouco fosse apenas presidente da ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, e agora nem isso.
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nata
natal
natação
natátil natado
natalino nateiro
natalense natalício
natalidade nateirado
natário natatório natadeiro
batatascozidascombacalhau
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Presentes de Natal 1
Ele: - Presente de Natal porreiro era um emprego, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de meias?
Presentes de Natal 2
Ele: - Presente de Natal porreiro era paz no mundo e comida para todas as crianças, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um pacote de Sugus? De framboesa...
Presentes de Natal 3
Ele: - Presente de Natal porreiro era um par de sapatos, isso é que era.
Ela: - Não queres antes um par de cornos?
Lições de História: Carlos Magno
Carlos Magno nasceu em 742, filho de Pepino o Breve e de Berta de Laon, também conhecida como Berta dos Pés Grandes. Foi rei dos Francos e imperador do Ocidente, entre outros empregos e honrarias. Mais papista do que o Papa quando lhe dava jeito, conquistou meia Europa e teve, que se saiba, pelo menos quatro mulheres: Desiderata, Hildegarda de Vinzgouw, Fastrada e Luitgarda. Com semelhante folha de serviços, parece impossível que ainda há pouco fosse apenas presidente da ERC, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, e agora nem isso.
Xoán Manuel Casado 3
Días sen beber. Coido que fago ben. Como borracho, tendía ultimamente á retrospección e ao pronunciamento edificante.
Segue a afogarnos a estética, esa compracencia nas formas que nos impide tantas veces traspasar a codia e entrar, sen complexos, na materia. Defendía onte, como defenderei mañá, a miña preferencia por aquela arte dotada dunha escura intensidade interior sobre esa outra que exhibe, como virtude primeira, a aparencia fermosa, pola simple razón de que sobrepoño intelixencia a compostura. Argumentei coa esterilidade de quen busca descubrir a unha adolescente recentemente namorada a condición, por certo que ruinzalla, do seu amado.
Sucede en pintura, en cine, en música. Hai un decorativismo dominante que empeza polo propio corpo de cadaquén. (Perdo de vista a amigos que deixaron a bebida por debelaren os lípidos; perdo de vista a amigas que queren mellor a sala de musculación que o meu inverno palabreiro.) Busco, e non atopo, nos prototipos físicos de moda, ese grosor moral que distinguiu aos seus predecesores.
"Diario de Entretempo", Xoán Manuel Casado
(Xoán Manuel Casado nasceu no dia 18 de Dezembro de 1949. Morreu em 2002.)
Segue a afogarnos a estética, esa compracencia nas formas que nos impide tantas veces traspasar a codia e entrar, sen complexos, na materia. Defendía onte, como defenderei mañá, a miña preferencia por aquela arte dotada dunha escura intensidade interior sobre esa outra que exhibe, como virtude primeira, a aparencia fermosa, pola simple razón de que sobrepoño intelixencia a compostura. Argumentei coa esterilidade de quen busca descubrir a unha adolescente recentemente namorada a condición, por certo que ruinzalla, do seu amado.
Sucede en pintura, en cine, en música. Hai un decorativismo dominante que empeza polo propio corpo de cadaquén. (Perdo de vista a amigos que deixaron a bebida por debelaren os lípidos; perdo de vista a amigas que queren mellor a sala de musculación que o meu inverno palabreiro.) Busco, e non atopo, nos prototipos físicos de moda, ese grosor moral que distinguiu aos seus predecesores.
"Diario de Entretempo", Xoán Manuel Casado
(Xoán Manuel Casado nasceu no dia 18 de Dezembro de 1949. Morreu em 2002.)
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