Foto Hernâni Von Doellinger |
segunda-feira, 29 de junho de 2015
domingo, 28 de junho de 2015
Lições de História 8: Robert Schumann
Robert Schumann foi durante muitos anos um compositor alemão, famoso sobretudo pela peça "Carnaval. Scènes mignonnes sur quatre notes, Opus 9", para piano, que pode (e deve) ser ouvida um bocadinho aqui. Mais tarde, e depois de ter morrido, Robert deixou de ser alemão, largou a música e o "n" final do apelido, fez-se luxemburguês e ministro dos Negócios Estrangeiros de França. Robert Schuman é considerado um dos "pais da Europa", foi o primeiro presidente daquilo que hoje se chama Parlamento Europeu e está na lista de espera do Vaticano para ser declarado santo.
(Robert Schuman, o político e candidato à canonização, nasceu no dia 29 de Junho de 1886. Morreu em 1963.)
(Robert Schuman, o político e candidato à canonização, nasceu no dia 29 de Junho de 1886. Morreu em 1963.)
Foi comprar tabaco e não voltou (a outra versão)
Noémia era uma esposa exemplar. Uma esposa. Todos os dias ia comprar tabaco para o marido. Um dia foi e não voltou.
sexta-feira, 26 de junho de 2015
Guimarães Rosa 3
Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser se viu; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, essa figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, carão de cão: determinaram era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.
"Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa
(Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)
"Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa
(Guimarães Rosa nasceu no dia 27 de Junho de 1908. Morreu em 1967.)
quinta-feira, 25 de junho de 2015
Francisco Otaviano 2
Morrer... dormir...
Morrer... dormir... não mais! Termina a vida,
E com ela terminam nossas dores;
Um punhado de terra, algumas flores,
E, às vezes, uma lágrima fingida!
Sim! minha morte não será sentida;
Não deixo amigos, e nem tive amores!
Ou, se os tive, mostraram-se traidores,
- Algozes vis de uma alma consumida.
Tudo é podre no mundo! Que me importa
Que ele amanhã se esboroe e que desabe,
Se a natureza para mim é morta!
É tempo já que o meu exílio acabe...
Vem, pois, ó Morte, ao nada me transporta...
Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?
Francisco Otaviano
(Francisco Otaviano nasceu no dia 26 de Junho de 1825. Morreu em 1889.)
Morrer... dormir... não mais! Termina a vida,
E com ela terminam nossas dores;
Um punhado de terra, algumas flores,
E, às vezes, uma lágrima fingida!
Sim! minha morte não será sentida;
Não deixo amigos, e nem tive amores!
Ou, se os tive, mostraram-se traidores,
- Algozes vis de uma alma consumida.
Tudo é podre no mundo! Que me importa
Que ele amanhã se esboroe e que desabe,
Se a natureza para mim é morta!
É tempo já que o meu exílio acabe...
Vem, pois, ó Morte, ao nada me transporta...
Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?
Francisco Otaviano
(Francisco Otaviano nasceu no dia 26 de Junho de 1825. Morreu em 1889.)
quarta-feira, 24 de junho de 2015
Gosto da palavra parreca
Gosto de nomes, gosto de palavras. Gosto do falar antigo: gosto de dizer que está "tudo na ponta da unha", quando me perguntam "como é que vai essa merda?", gosto de dizer que é "daqui, detrás da orelha", quando me perguntam "que tal?" a propósito de uma pinga de arrebenta que fazem o favor de dar-me a provar, verde tinto de preferência.
Gosto da palavra parreca. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis ao pirilau. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo), até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie.
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca.
Diga-se em abono da verdade, o doce resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber... até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes. Era coisa para umas horas, se respeitada na íntrega.
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida avó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca para me entreter a tarde. Foi decerto daí que eu fiquei a gostar.
Gosto da palavra parreca. Pachacha, não. Nem crica. Pito, cona, buceta, siririca, vulva, rata, pássara, passarinha ou perereca, apesar de legalmente registadas, então é que nem admito. Pior, só mesmo vagina, uma obscenidade que me tira do sério e absolutamente comparável à alarvidade de chamarem pénis ao pirilau. Pénis e Vagina (neste caso leia-se vajaina, se não for incómodo), até parecem nomes de um casal da Mattel, e se calhar ambos de virilhas vazias, como os outros dois, o Ken e a Barbie.
Da parreca é que eu gosto. Para além de uns rebuçados de açúcar suponho que amarelo, formatados em pequenos ladrilhos e embrulhados em papéis de cores diversas e garridas, vendia-se antigamente nas feiras e festas de Fafe uma espécie de doce alegadamente em forma de pato, ou de pata, vá lá - e esse doce era a parreca.
Diga-se em abono da verdade, o doce resumia-se a uma somítica camada exterior de açúcar, agora branco, se não me engano, e o resto era um pedaço de massa castanha, azeda e dura como cornos, para lamber, lamber, lamber, lamber... até se desfazer à força de dentes, se a gente não desistisse antes. Era coisa para umas horas, se respeitada na íntrega.
Quando nos vinha visitar, às quartas-feiras, pelos 16 de Maio e na Senhora de Antime, a querida avó de Basto trazia-me sempre uma mancheia dos tais rebuçados e, infalível, uma parreca para me entreter a tarde. Foi decerto daí que eu fiquei a gostar.
Ruy Barata 2
Auto-retrato
Entre a espuma e a navalha sou legenda.
O espelho neutraliza o ângulo da morte,
a barba estrangulou a metafísica
e o problema do mal é bem remoto.
Aqui sim.
Aqui resistirei à mímica,
ao dicionário e ao laboratório.
(a herança do punhal brilha de novo,
o fantasma de Abel não me intimida).
Vejo a testa crescer
entre espirais de fumo,
o olhar que não vacila
da ruga a pré-história
e o peito rasgado
pela fúria do poema.
Aqui sim,
aqui iniciarei a espécie nova,
aqui derrotarei o homem-harpa
e pronto estou para a descoberta do sexo.
O pincel dá-me o poder do patriarca,
a navalha reduz a timidez e o medo,
o palavrão rola na boca e salva o mundo.
"A Linha Imaginária", Ruy Barata
(Ruy Barata nasceu no dia 25 de Junho de 1920. Morreu em 1990.)
Entre a espuma e a navalha sou legenda.
O espelho neutraliza o ângulo da morte,
a barba estrangulou a metafísica
e o problema do mal é bem remoto.
Aqui sim.
Aqui resistirei à mímica,
ao dicionário e ao laboratório.
(a herança do punhal brilha de novo,
o fantasma de Abel não me intimida).
Vejo a testa crescer
entre espirais de fumo,
o olhar que não vacila
da ruga a pré-história
e o peito rasgado
pela fúria do poema.
Aqui sim,
aqui iniciarei a espécie nova,
aqui derrotarei o homem-harpa
e pronto estou para a descoberta do sexo.
O pincel dá-me o poder do patriarca,
a navalha reduz a timidez e o medo,
o palavrão rola na boca e salva o mundo.
"A Linha Imaginária", Ruy Barata
(Ruy Barata nasceu no dia 25 de Junho de 1920. Morreu em 1990.)
terça-feira, 23 de junho de 2015
Pedro Oom 2
História do meu boneco
Cresceu comigo
neste espaço que se diz português
e neste tempo (histórico)
Maricas (era de esperar)
mas rebelde como um felino
ninguém se lhe pôs inteiro
ficou sempre um bocadinho
porque rangia a dentadura.
Depois de 45
afundou-se na continuidade
farfalhou o bigode, à guarda nacional antigo
e esperto como um corisco
instalou-se então, decidido
à mesa do orçamento.
"Actuação Escrita", Pedro Oom
(Pedro Oom nasceu no dia 24 de Junho de 1926. Morreu em 1974.)
Cresceu comigo
neste espaço que se diz português
e neste tempo (histórico)
Maricas (era de esperar)
mas rebelde como um felino
ninguém se lhe pôs inteiro
ficou sempre um bocadinho
porque rangia a dentadura.
Depois de 45
afundou-se na continuidade
farfalhou o bigode, à guarda nacional antigo
e esperto como um corisco
instalou-se então, decidido
à mesa do orçamento.
"Actuação Escrita", Pedro Oom
(Pedro Oom nasceu no dia 24 de Junho de 1926. Morreu em 1974.)
Joaquim Manuel de Macedo 3
Fazei de conta que vos achais agora comigo no aprazível terraço do Passeio Público do Rio de Janeiro.
O dia foi calmoso. Em compensação, porém, a tarde é bela e fresca. O sol derrama sobre a terra seus últimos raios. Anuncia-se a hora do crepúsculo. A viração festeja docemente as verdes folhas das árvores que sussurram com um leve ruído.
Imaginai tudo isso. Embalar-vos-ei com uma ficção que já tem sido e será mil vezes uma verdade.
Sentemo-nos nestes bancos de mármore e de azulejos. Voltemos as costas para o mar. O espetáculo dessa natureza opulenta, grandiosa, sublime, absorver-nos-ia em uma contemplação insaciável. Cerremos por algum tempo os olhos à majestade das obras de Deus. A hora do crepúsculo é suave, melancólica e propícia aos sonhos do futuro e às recordações do passado.
Deixemos o futuro a Deus no céu e aos poetas na terra.
Lembremos antes o passado, e, ligados pelo mesmo pensamento, vamos buscar no último quartel do século décimo oitavo o princípio da história deste jardim público.
Suponhamos ainda e finalmente que por unanimidade de votos me escolhestes para vosso orador: foi uma eleição inteiramente livre, sem cabala, sem fósforos, sem intervenção da polícia, sem duplicatas, sem anulações de votos fatais, um verdadeiro milagre constitucional. Tenho consciência da pureza do meu mandato.
Falo em nome de todos vós.
"Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro", Joaquim Manuel de Macedo
(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1820. Morreu em 1882.)
O dia foi calmoso. Em compensação, porém, a tarde é bela e fresca. O sol derrama sobre a terra seus últimos raios. Anuncia-se a hora do crepúsculo. A viração festeja docemente as verdes folhas das árvores que sussurram com um leve ruído.
Imaginai tudo isso. Embalar-vos-ei com uma ficção que já tem sido e será mil vezes uma verdade.
Sentemo-nos nestes bancos de mármore e de azulejos. Voltemos as costas para o mar. O espetáculo dessa natureza opulenta, grandiosa, sublime, absorver-nos-ia em uma contemplação insaciável. Cerremos por algum tempo os olhos à majestade das obras de Deus. A hora do crepúsculo é suave, melancólica e propícia aos sonhos do futuro e às recordações do passado.
Deixemos o futuro a Deus no céu e aos poetas na terra.
Lembremos antes o passado, e, ligados pelo mesmo pensamento, vamos buscar no último quartel do século décimo oitavo o princípio da história deste jardim público.
Suponhamos ainda e finalmente que por unanimidade de votos me escolhestes para vosso orador: foi uma eleição inteiramente livre, sem cabala, sem fósforos, sem intervenção da polícia, sem duplicatas, sem anulações de votos fatais, um verdadeiro milagre constitucional. Tenho consciência da pureza do meu mandato.
Falo em nome de todos vós.
"Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro", Joaquim Manuel de Macedo
(Joaquim Manuel de Macedo nasceu no dia 24 de Junho de 1820. Morreu em 1882.)
III Encontro de Palhaços do Mundo, em Fafe
Quinta, sexta e sábado - dias 25, 26 e 27 de Junho -, III Encontro de Palhaços do Mundo, em Fafe. Doces, risos e sorrisos. Mais informação e programa, aqui.
segunda-feira, 22 de junho de 2015
A felicidade agarra-se pelos tomates
Jasmina era uma mulher feliz. Fazia o que queria do marido. Em casa mandava ela, e mandava nele também. O homem gostava assim. As vizinhas e amigas de Jasmina - à qual, pelas costas, chamavam Felismina - perguntavam-se, roídas de inveja: "Como é que ela consegue, como é que ela consegue?!..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..."
E um dia Jasmina explicou: "Trago-o bem preso pelos tomates, um bocadinho mais acima..."
domingo, 21 de junho de 2015
sábado, 20 de junho de 2015
Machado de Assis 3
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
- Continue, disse eu acordando.
- Já acabei, murmurou ele.
- São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você". - "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo". - "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça".
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
"Dom Casmurro", Machado de Assis
(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu em 1908.)
- Continue, disse eu acordando.
- Já acabei, murmurou ele.
- São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você". - "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo". - "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça".
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
"Dom Casmurro", Machado de Assis
(Machado de Assis nasceu no dia 21 de Junho de 1839. Morreu em 1908.)
Encantos e Recantos do Rio Febros
Exposição de fotografia "Encantos e Recantos do Rio Febros". Inaugura no próximo dia 27 de Junho, pelas 10h30, no Parque Biológico de Gaia.
sexta-feira, 19 de junho de 2015
Festas da Senhora de Antime 2015
Revista Alfa, número sete
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Fafe e a morte do Dr. António Marques Mendes
A mim, pareceu-me curto o "voto de pesar" tornado público pela "Câmara Municipal de Fafe e o seu executivo na pessoa do seu Presidente, Dr. Raul Cunha", a propósito da morte de António Marques Mendes. Pareceu-me pró-fórmico, aproveitador, desagradecido, desmemoriado e sobretudo ignorante. Também estava mal escrito, mas isso já faz parte.
Tinha esta entalada, tentei deixar passar os dias a ver se me passava, mas não passou. Peço desculpa à família Marques Mendes por fazer caso disto, aos outros não.
Tinha esta entalada, tentei deixar passar os dias a ver se me passava, mas não passou. Peço desculpa à família Marques Mendes por fazer caso disto, aos outros não.
A diferença entre um vigarista e um vigarista
Faustino foi ao banco pedir um empréstimo. Quantia avultada. Pretendia construir e montar de raiz uma fábrica de papel canelado, investimento para cima de milhões de euros e emprego garantido para cerca de 23 pessoas, talvez vinte e duas e meia ou vinte e três e meia, ainda não sabia bem. O senhor do banco riu-se: "Fábrica de cartão canelado? Vê-se logo que é golpe, vigarice das antigas". "Golpe, não, caríssimo senhor, e faça o favor de reparar que eu disse caríssimo sem saber sequer a taxa de juro. Em todo o caso, se eu fosse vigarista, e dos antigos, ter-lhe-ia indicado que precisava do dinheiro para abrir um banco", ripostou Faustino, sem se rir, e foi roubar carteiras para outro lado.
quarta-feira, 17 de junho de 2015
Piratas 2015 em Leça da Palmeira
Os piratas estão de volta a Leça da Palmeira. De 26 a 28 de Junho, nos arredores do Forte de Nossa Senhora das Neves, recriação histórica e viagem ao tempo em que os velhos piratas - os da perna de pau, olho de vidro e cara de mau - se passeavam por Matosinhos. Tal como os novos, hoje em dia. Mais informação e programa, aqui.
terça-feira, 16 de junho de 2015
segunda-feira, 15 de junho de 2015
Ariano Suassuna
Há muito tempo que eu desejava me instruir sobre aquela profunda Filosofia clementina, para me ajudar em meus logogrifos. Por isso, avancei:
- Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer "penetral", hein?
Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado assim, respondeu:
- Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
- Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso, Clemente? -Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é o "único-amplo"! Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da "desconhecença" para a "sabença"?
- Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.
- Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gavínico de conhecimento penetrálico, feche os olhos!
- Fechei! - disse eu, obedecendo.
- Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
- O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
- Em que é que você está pensando?
- Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
"Romance d'A Pedra do Reino", Ariano Suassuna
(Ariano Suassuna nasceu no dia 16 de Junho de 1927. Morreu em 2014.)
- Clemente, esse nome de "penetral" é uma beleza! É bonito, difícil, esquisito, e, só por ele, a gente vê logo como sua Filosofia é profunda e importante! O que é que quer dizer "penetral", hein?
Clemente, às vezes, deixava escapar "vulgaridades e plebeísmos" quando falava, segundo sublinhava Samuel. Naquele dia, indagado assim, respondeu:
- Olhe, Quaderna, o "penetral" é de lascar! Ou você tem "a intuição do penetral" ou não tem intuição de nada! Basta que eu lhe diga que "o penetral" é "a união do faraute com o insólito regalo", motivo pelo qual abarca o faraute, a quadra do deferido, o trebelho da justa, o rodopelo, o torvo torvelim e a subjunção da relápsia!
- Danou-se! - exclamei, entusiasmado. - O penetral é tudo isso, Clemente? -Tudo isso e muito mais, Quaderna, porque o penetral é o "único-amplo"! Você sabe como é que "a centúria dos íncolas primeiros", isto é, os homens, sai da "desconhecença" para a "sabença"?
- Sei não, Clemente! - confessei, envergonhado.
- Bem, então, para ir conhecendo logo o processo gavínico de conhecimento penetrálico, feche os olhos!
- Fechei! - disse eu, obedecendo.
- Agora, pense no mundo, no mundo que nos cerca!
- O mundo, o mundo... Pronto, pensei!
- Em que é que você está pensando?
- Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro do cumaru e num jumento trepando uma jumenta!
"Romance d'A Pedra do Reino", Ariano Suassuna
(Ariano Suassuna nasceu no dia 16 de Junho de 1927. Morreu em 2014.)
Dante Milano 3
Ao tempo
Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida
A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?
Dante Milano
(Dante Milano nasceu no dia 16 de Junho de 1899. Morreu em 1991.)
Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida
A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?
Dante Milano
(Dante Milano nasceu no dia 16 de Junho de 1899. Morreu em 1991.)
domingo, 14 de junho de 2015
Eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente
Quando eu era pequeno queria ser grande. E quando fosse grande queria ser palhaço, maquinista de comboio, famoso, padre, polícia à paisana, pianista, advogado, jornalista, actor, bombeiro, jogador de futebol, tarzan, presidente da república, terrorista, papa, escritor, herói, cantor, ciclista, santo e piloto de avião de guerra. Já há muito que sou grande e, francamente, sou tarzan e é um pau.
De tanga. Estou de tanga como a maioria dos portugueses, se bem que os números sejam cada vez mais favoráveis, sobretudo os homólogos. Todos os pequenos almoços eu como números homólogos barrados com psivinte e gosto muito. Os meus pequenos almoços são ao meio-dia, para darem para o dia inteiro. São almoços ma non troppo, e por isso é que se chamam pequenos almoços sem hífen e um copo de água. Da torneira. Do vizinho.
Por outro lado, ainda não procuro o almoço nos contentores do lixo. Portugal está muito melhor, principalmente se comparado como o Portugal homólogo, mas são cada vez mais as pessoas e as famílias que eu vejo nos ecopontos esgadanhando sustento nos restos dos outros. Esta gente não lê os jornais, não vê televisão, não dá valor ao Governo, não ouve o de Belém, não liga aos números, tão favoráveis e tão homólogos. Esta gente gosta de chafurdar.
Eu queria ser palhaço, é verdade. Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes sou um bocado palhaço. Alguns filhos da puta que não me gramam dizem-me também que eu às vezes sou um bocado palhaço. Palavra de honra, às vezes e um bocado não me chega: eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.
(De 25 a 27 de Junho, a cidade de Fafe acolhe o III Encontro de Palhaços do Mundo. Com um bocado de sorte, saberemos o programa antes.)
De tanga. Estou de tanga como a maioria dos portugueses, se bem que os números sejam cada vez mais favoráveis, sobretudo os homólogos. Todos os pequenos almoços eu como números homólogos barrados com psivinte e gosto muito. Os meus pequenos almoços são ao meio-dia, para darem para o dia inteiro. São almoços ma non troppo, e por isso é que se chamam pequenos almoços sem hífen e um copo de água. Da torneira. Do vizinho.
Por outro lado, ainda não procuro o almoço nos contentores do lixo. Portugal está muito melhor, principalmente se comparado como o Portugal homólogo, mas são cada vez mais as pessoas e as famílias que eu vejo nos ecopontos esgadanhando sustento nos restos dos outros. Esta gente não lê os jornais, não vê televisão, não dá valor ao Governo, não ouve o de Belém, não liga aos números, tão favoráveis e tão homólogos. Esta gente gosta de chafurdar.
Eu queria ser palhaço, é verdade. Alguns amigos, lisonjeiros, dizem-me que eu às vezes sou um bocado palhaço. Alguns filhos da puta que não me gramam dizem-me também que eu às vezes sou um bocado palhaço. Palavra de honra, às vezes e um bocado não me chega: eu queria ser palhaço, mas palhaço completamente.
(De 25 a 27 de Junho, a cidade de Fafe acolhe o III Encontro de Palhaços do Mundo. Com um bocado de sorte, saberemos o programa antes.)
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sábado, 13 de junho de 2015
Um título a que nem o Governo bota defeito
Diz o Público, em manchete digital: "TAP abre inquérito a piloto que orquestrou greve de Maio". Orquestrou? Um piloto? A greve? Orquestrou? Palavra de honra? No Público? Só mais uma pergunta, e com esta me fico: alguém estava distraído quando "picou" o press-realese exclusivo e confidencial mandado pelo Ministério da Economia na costumeira sorrateirice dos sábados?
sexta-feira, 12 de junho de 2015
Fernando Pessoa 3
O menino de sua mãe
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino de sua mãe".
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.
Fernando Pessoa
(Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de Junho de 1888. Morreu em 1935.)
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino de sua mãe".
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino de sua mãe.
Fernando Pessoa
(Fernando Pessoa nasceu no dia 13 de Junho de 1888. Morreu em 1935.)
Palhaços do mundo em Fafe
Terceiro Encontro de Palhaços do Mundo, em Fafe. Dias 25, 26 e 27 de Junho, com base no Jardim do Calvário. Doces, risos e sorrisos. Mais informação, aqui.
quinta-feira, 11 de junho de 2015
Toiros à corda na ilha Terceira 7
Bicho bom é malcriado para todos
José Henrique, primeira figura que se preza, garante que sozinho lida melhor. Toiros, há-os "bons e os que não prestam". Mas raramente é surpreendido: "Conheço-os a todos e eles conhecem-me a mim. O toiro sabe por onde eu vou e eu sei por onde ele vai. Por isso posso muitas vezes pôr-lhe a mão em cima da testa", que é do que o povo gosta. A alguns animais foi ele quem os toureou na "primeira corda, na segunda e na terceira". E chega a lidá-los até cinco vezes.
Mas o que verdadeiramente dá gozo a José Henrique, capinha, é que os toiros lhe apareçam "bravos", que lhe saiam "o 309 ou o 314, o melhor, que é malcriado para todos". O que se compreende: afinal, já lá vai quase uma dúzia de anos e, não sossega o gabanço, nunca foi "pegado".
Passou um quarto de hora, e dois foguetes ordenam a recolha do primeiro da tarde. Por momentos a rua volta a encher-se de heróis refractários que, sumários minutos escorridos, ao aviso estrondoso de mais um foguete, outra vez voam supersónicos a esconderem-se no quentinho dos abrigos. Aí vem o segundo. E tudo se repetirá mais duas vezes, que a função completa é assim, quatro-toiros-quatro.
Tourada à corda, um espectáculo de reis. D. Carlos e D. Amélia estiveram uma vez na corrida de São João de Deus. Um espectáculo de rua e de mar, para onde se atiram toiro e homem, no Porto de Pipas, para o banho sacramental. E um espectáculo para todos na RTP Açores, que transmite em directo as principais corridas.
In loco, é a delícia de uma multidão paciente, conhecedora, apaixonada. Devota. Na Terceira vai-se aos toiros praticamente desde que se nasce. Incontornável ponto de encontros, à sombra daquele desbragado sol selam-se amizadades de vidas, e muito casamento é ali mesmo que se ajeita. Convívio, é isso. As corridas à corda são também por fora: muito convívio a fazer a festa da festa.
Com 70 anos bem medidos, João Gatim ("Nos toiros, por este nome, toda a gente sabe quem sou"), pescador na reforma, vê toiros desde que se lembra de enxergar alguma coisa. "Porque gosto, e pronto, muito mais do que das corridas na Praça. E aí vou eu, com os meus amigos, já há muitos anos, por esses arraiais fora", diz-me.
Claro que, no seu tempo, Dom Gatim também deu o seu gostinho à sapatilha à frente dos toiros e trambolhou vira-cus que são o seu orgulho. Recorda: "Fui pegado três vezes - da primeira estive quinze dias de cama, mas das outras duas, é claro, já sabia mais e saí-me limpinho".
Mestre João Gatim contenta-se agora como espectador. Não um qualquer, atenção! Peregrina, batendo-as a todas. Mais sôfrego por corridas à corda que o Libaninho do Eça por missas, papa quantas pode. Por ano, vai aos toiros aí umas cem tardes. Santo consolo...
(Sétima e última parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol".)
José Henrique, primeira figura que se preza, garante que sozinho lida melhor. Toiros, há-os "bons e os que não prestam". Mas raramente é surpreendido: "Conheço-os a todos e eles conhecem-me a mim. O toiro sabe por onde eu vou e eu sei por onde ele vai. Por isso posso muitas vezes pôr-lhe a mão em cima da testa", que é do que o povo gosta. A alguns animais foi ele quem os toureou na "primeira corda, na segunda e na terceira". E chega a lidá-los até cinco vezes.
Mas o que verdadeiramente dá gozo a José Henrique, capinha, é que os toiros lhe apareçam "bravos", que lhe saiam "o 309 ou o 314, o melhor, que é malcriado para todos". O que se compreende: afinal, já lá vai quase uma dúzia de anos e, não sossega o gabanço, nunca foi "pegado".
Passou um quarto de hora, e dois foguetes ordenam a recolha do primeiro da tarde. Por momentos a rua volta a encher-se de heróis refractários que, sumários minutos escorridos, ao aviso estrondoso de mais um foguete, outra vez voam supersónicos a esconderem-se no quentinho dos abrigos. Aí vem o segundo. E tudo se repetirá mais duas vezes, que a função completa é assim, quatro-toiros-quatro.
Tourada à corda, um espectáculo de reis. D. Carlos e D. Amélia estiveram uma vez na corrida de São João de Deus. Um espectáculo de rua e de mar, para onde se atiram toiro e homem, no Porto de Pipas, para o banho sacramental. E um espectáculo para todos na RTP Açores, que transmite em directo as principais corridas.
In loco, é a delícia de uma multidão paciente, conhecedora, apaixonada. Devota. Na Terceira vai-se aos toiros praticamente desde que se nasce. Incontornável ponto de encontros, à sombra daquele desbragado sol selam-se amizadades de vidas, e muito casamento é ali mesmo que se ajeita. Convívio, é isso. As corridas à corda são também por fora: muito convívio a fazer a festa da festa.
Com 70 anos bem medidos, João Gatim ("Nos toiros, por este nome, toda a gente sabe quem sou"), pescador na reforma, vê toiros desde que se lembra de enxergar alguma coisa. "Porque gosto, e pronto, muito mais do que das corridas na Praça. E aí vou eu, com os meus amigos, já há muitos anos, por esses arraiais fora", diz-me.
Claro que, no seu tempo, Dom Gatim também deu o seu gostinho à sapatilha à frente dos toiros e trambolhou vira-cus que são o seu orgulho. Recorda: "Fui pegado três vezes - da primeira estive quinze dias de cama, mas das outras duas, é claro, já sabia mais e saí-me limpinho".
Mestre João Gatim contenta-se agora como espectador. Não um qualquer, atenção! Peregrina, batendo-as a todas. Mais sôfrego por corridas à corda que o Libaninho do Eça por missas, papa quantas pode. Por ano, vai aos toiros aí umas cem tardes. Santo consolo...
(Sétima e última parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol".)
quarta-feira, 10 de junho de 2015
Ronaldo, Ronaldo, Ronaldo
No dia 5 de Junho, o nosso Cristiano Ronaldo pediu à imprensa que não se meta na vida dele. No dia 9 de Junho, o nosso Cristiano Ronaldo anunciou que está a ser produzido um filme sobre a vida dele. Ontem, lamentável 10 de Junho, a imprensa revelou que o nosso Cristiano Ronaldo "é o terceiro desportista mais bem pago do planeta", logo a seguir a dois pugilistas. A notícia não será um abuso? Ou antes pelo contrário?
Toiros à corda na ilha Terceira 6
Capinha, e com muito gosto
Os capinhas, em pose inicial algo parecida com a do forcado da cara nas corridas à portuguesa, enfrentam o toiro, citam, provocam, correm-lhe ao encontro, ensaiam o "temple", "aguentam" ou, momento supremo, "adornam-se", tocando-lhe entre hastes. E raspam-se a mil à hora. Mas reincidem. Sempre pela frente. "Passar por detrás do rabo de um toiro é desconsideração, é uma falta de respeito ao animal", elucida-me um purista, velho aficionado. Compete aos capinhas "levantar" o toiro, fazê-lo dar o máximo ao espectáculo.
E aqui é que bate o ponto. Algumas más-línguas desconversam que estes espontâneos em full-time recebem dinheiro dos ganadeiros para fazerem brilhar especialmente os seus toiros ou, coisa medonha, são pagos por criadores terceiros para reduzirem ao fiasco a exibição dos animais da concorrência...
Maldades ditas do piorio. A pés ambos, José Henrique e Noé - dois dos quatro ou cinco capinhas sobreviventes em toda a ilha ("Há por aí uns rapazes a aprender") - juram que não, e que não, e que não: "Não há negócio nenhum, nem com os ganadeiros nem com as comissões de festas". Pois...
"É só por gosto, a gente gosta. Tourear toiros é bonito. Isto para mim é como o futebol, o meu verdadeiro futebol", explica-me José Henrique, na arte há onze anos e em vésperas de pendurar as sapatilhas.
José Henrique considera-se "um toureiro toureiro realizado", faz questão de frisar para os meus apontamentos. Toureiro toureiro, assim mesmo, não foi engano. "Já toureei na América, toda a gente que vem aos toiros me conhece", acrescenta, com orgulho internacional. Passou pela escola de toureio da Praça de Angra do Heroísmo, mas "não tinha gosto nem vagar". Ainda assim não resiste a dar lá uns saltos, à Monumental, para expor a sua valentia, desafiando toiros "sem muleta, sem capa, de peito aberto".
Conta-me: "Uma vez, eu, o Ananias, o Dimas, o Magalhães e o Rosas lá estivemos. Eram toiros bem bravos, o 163 e o 164. Toureiros do Continente e de São Miguel nem lhes conseguiam chegar, e a gente ali, a ajudarmo-nos uns aos outros, a escorregarmos quando calhava, mas a fazermos ver àquele povo. É bonito é ir ao meio da praça e chamar o toiro com o guarda-sol"...
Note-se que raros capinhas se aventuram hoje em dia ao famigerado passe de guarda-sol, executado em duo: um, empunhando o guarda-sol propriamente dito, e o acólito ao lado, com a samarra nas mãos; um a servir de engodo ao toiro e o outro a rematar o número em beleza; ou vice-versa. São raros. E por via disso é que os mais antigos recordam com saudade e emoção as grandes tardes do Prosa, exímio executante daquela arte.
(Sexta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
Os capinhas, em pose inicial algo parecida com a do forcado da cara nas corridas à portuguesa, enfrentam o toiro, citam, provocam, correm-lhe ao encontro, ensaiam o "temple", "aguentam" ou, momento supremo, "adornam-se", tocando-lhe entre hastes. E raspam-se a mil à hora. Mas reincidem. Sempre pela frente. "Passar por detrás do rabo de um toiro é desconsideração, é uma falta de respeito ao animal", elucida-me um purista, velho aficionado. Compete aos capinhas "levantar" o toiro, fazê-lo dar o máximo ao espectáculo.
E aqui é que bate o ponto. Algumas más-línguas desconversam que estes espontâneos em full-time recebem dinheiro dos ganadeiros para fazerem brilhar especialmente os seus toiros ou, coisa medonha, são pagos por criadores terceiros para reduzirem ao fiasco a exibição dos animais da concorrência...
Maldades ditas do piorio. A pés ambos, José Henrique e Noé - dois dos quatro ou cinco capinhas sobreviventes em toda a ilha ("Há por aí uns rapazes a aprender") - juram que não, e que não, e que não: "Não há negócio nenhum, nem com os ganadeiros nem com as comissões de festas". Pois...
"É só por gosto, a gente gosta. Tourear toiros é bonito. Isto para mim é como o futebol, o meu verdadeiro futebol", explica-me José Henrique, na arte há onze anos e em vésperas de pendurar as sapatilhas.
José Henrique considera-se "um toureiro toureiro realizado", faz questão de frisar para os meus apontamentos. Toureiro toureiro, assim mesmo, não foi engano. "Já toureei na América, toda a gente que vem aos toiros me conhece", acrescenta, com orgulho internacional. Passou pela escola de toureio da Praça de Angra do Heroísmo, mas "não tinha gosto nem vagar". Ainda assim não resiste a dar lá uns saltos, à Monumental, para expor a sua valentia, desafiando toiros "sem muleta, sem capa, de peito aberto".
Conta-me: "Uma vez, eu, o Ananias, o Dimas, o Magalhães e o Rosas lá estivemos. Eram toiros bem bravos, o 163 e o 164. Toureiros do Continente e de São Miguel nem lhes conseguiam chegar, e a gente ali, a ajudarmo-nos uns aos outros, a escorregarmos quando calhava, mas a fazermos ver àquele povo. É bonito é ir ao meio da praça e chamar o toiro com o guarda-sol"...
Note-se que raros capinhas se aventuram hoje em dia ao famigerado passe de guarda-sol, executado em duo: um, empunhando o guarda-sol propriamente dito, e o acólito ao lado, com a samarra nas mãos; um a servir de engodo ao toiro e o outro a rematar o número em beleza; ou vice-versa. São raros. E por via disso é que os mais antigos recordam com saudade e emoção as grandes tardes do Prosa, exímio executante daquela arte.
(Sexta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
O tipo do mito urbano e o mito do tipo rústico
Foto Hernâni Von Doellinger |
- Faz favor de desculpar, o senhor é o tipo do mito urbano, não é?
- Mito quê?
- Mito urbano. Urbano. Citadino, civilizado, cortês, polido, gafonha, urbanita, urbícola, correcto, afável, aprazível, fruitivo, lisonjeiro, mavioso, amorável, charmoso, peralta, lhano, tirone, refinado, esticadinho, delicioso, educado...
- O que são as palavras, veja lá o senhor. Não, não sou o tipo do mito urbano. Na verdade fiz-me homem em Valnogueiras, Vila Real de cima, sou portanto e pelo contrário, se me está a acompanhar, o mito do tipo rústico.
- Tipo quê?
- Tipo rústico. Rústico. Rusticano, rural, aldeão, camponês, campino, campesino, campesinho, campestre, campónio, agrário, casca-grossa, labrego, parolo, lavrador, grosseiro, bruto, boçal, besta, bronco, grunho, labrego, malcriado...
- Realmente o que são as palavras. Mas é tão parecido com ele...
- Porém, não sou ele. Por favor, não me comprometa. Se o senhor disser que eu sou ele, eu nego. Ene-é-gê-ó. Nego!
- Palavra de honra, aqui que ninguém nos ouve, o senhor nunca foi o tipo do mito urbano nem por um bocadinho? Ande lá...
- Nunca, meu caro senhor. Aliás, se me permite, desafio qualquer um a recordar alguma intervenção ou escrito que eu tenha tido nesse sentido e que, de uma ou outra forma, me possa conectar a essa lamentável problemática. Desafio. Eu sou o mito, não sou o tipo, e ponto final.
terça-feira, 9 de junho de 2015
Anderson Herzer 2
Meu eterno crucifixo
Sumindo, vagando e o verde desbotando,
e a terra ressecando,
o sol já não mais brilha,
está tudo escurecendo, está tudo sumindo, tudo vagando.
E eu te perdendo e eu te procurando,
e você talvez seja castrado em sentimentos,
você se derreteu em gotas de dor,
você impuro, você derrotado,
você com marcas, cicatrizes de amor.
E a dor ameaça, o sofrimento transborda sangue;
na garganta um nó que te impede de falar,
no ouvido um som que me obriga a soluçar,
no coração um aperto que te obriga a gritar.
Me deito no solo, rolo no mato sujo,
me agarro num tronco oco
para não cair na desgraça e não ser comido pela traça,
e devorado pelo amargo desgosto.
Suma, vague...
morra de sede, chore sangue coalhado.
Se você morresse só, sem dó,
eu jamais teria duvidado e me matado.
Me matei num sonho rouco,
num amor derrotado, vagando.
Acordei agora, você partiu e voltou,
você ressuscitou, meu Deus, estou te amando.
Deus, eu te critiquei, eu te xinguei,
te maltratei, nunca te respeitei
e nunca em você pude acreditar,
e você morreu e renasceu
e para mim veio eterno se provar.
Será que és tão humano assim
para depois de tudo me perdoar?
Eu não ouvia tua voz, não te encontrava,
te humilhava, não te via.
Mas agora você me perdoou, te vejo em todos os cantos
- Deus, você é eterno, não é mito, nem poesia.
"A Queda para o Alto", Anderson Herzer
(Anderson Herzer nasceu no dia 10 de Junho de 1962. Morreu em 1982.)
Sumindo, vagando e o verde desbotando,
e a terra ressecando,
o sol já não mais brilha,
está tudo escurecendo, está tudo sumindo, tudo vagando.
E eu te perdendo e eu te procurando,
e você talvez seja castrado em sentimentos,
você se derreteu em gotas de dor,
você impuro, você derrotado,
você com marcas, cicatrizes de amor.
E a dor ameaça, o sofrimento transborda sangue;
na garganta um nó que te impede de falar,
no ouvido um som que me obriga a soluçar,
no coração um aperto que te obriga a gritar.
Me deito no solo, rolo no mato sujo,
me agarro num tronco oco
para não cair na desgraça e não ser comido pela traça,
e devorado pelo amargo desgosto.
Suma, vague...
morra de sede, chore sangue coalhado.
Se você morresse só, sem dó,
eu jamais teria duvidado e me matado.
Me matei num sonho rouco,
num amor derrotado, vagando.
Acordei agora, você partiu e voltou,
você ressuscitou, meu Deus, estou te amando.
Deus, eu te critiquei, eu te xinguei,
te maltratei, nunca te respeitei
e nunca em você pude acreditar,
e você morreu e renasceu
e para mim veio eterno se provar.
Será que és tão humano assim
para depois de tudo me perdoar?
Eu não ouvia tua voz, não te encontrava,
te humilhava, não te via.
Mas agora você me perdoou, te vejo em todos os cantos
- Deus, você é eterno, não é mito, nem poesia.
"A Queda para o Alto", Anderson Herzer
(Anderson Herzer nasceu no dia 10 de Junho de 1962. Morreu em 1982.)
Toiros à corda na ilha Terceira 5
Muitos armantes e poucos valentes, pouquíssimos
A entrada em cena da fera espanta a preguiçosa turbamulta, que corre agora a esconder-se por trás dos taipais e a empoleirar-se nas cristas dos muros. No entanto, quer parecer de repente que há ali valentes - muitos, alguns, cada vez menos... -, que, desajeitados, de largo, arremedam manobras patuscas a que o bicho faz o favor de não deitar sentido. Mas não. Era afinal a armar à precária coragem de encomenda. Logo que se encurtam as distâncias, ala que se faz tarde, os heróis de pacotilha enxotam-se rua fora em carreiras destrambelhadas.
Em menos de um susto, o terreno fica limpo, entregue aos que verdadeiramente lhe têm direito: o toiro mais os pastores e os capinhas - um, dois ou, no máximo, três. Capinhas? Vá-se lá saber o porquê do nome. Estes jovens não vestem "trajes de luzes", não usam capote nem manejam a espada. Sem farpela especial, precisam, isso sim, de umas boas sapatilhas. E ali estão! Agora é que é, assunto para esclarecer entre verdadeiros artistas, os capinhas e o toiro. E então se enovela uma dança-luta de prender atenções e cortar respirações, arca por arca, mano a mano, sem truques.
Nada na mão, nada na manga. Ordena o Regulamento das Touradas à Corda da Região Autónoma dos Açores que "todos os participantes na lide ou corrida não podem utilizar instrumentos susceptíveis de provocar ferimentos no toiro, como "aguilhões", podendo, todavia, fazer uso dos instrumentos consagrados como tradicionais, nomeadamente o bordão, blusa ou pano, a varinha e o guarda-sol".
(Quinta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
A entrada em cena da fera espanta a preguiçosa turbamulta, que corre agora a esconder-se por trás dos taipais e a empoleirar-se nas cristas dos muros. No entanto, quer parecer de repente que há ali valentes - muitos, alguns, cada vez menos... -, que, desajeitados, de largo, arremedam manobras patuscas a que o bicho faz o favor de não deitar sentido. Mas não. Era afinal a armar à precária coragem de encomenda. Logo que se encurtam as distâncias, ala que se faz tarde, os heróis de pacotilha enxotam-se rua fora em carreiras destrambelhadas.
Em menos de um susto, o terreno fica limpo, entregue aos que verdadeiramente lhe têm direito: o toiro mais os pastores e os capinhas - um, dois ou, no máximo, três. Capinhas? Vá-se lá saber o porquê do nome. Estes jovens não vestem "trajes de luzes", não usam capote nem manejam a espada. Sem farpela especial, precisam, isso sim, de umas boas sapatilhas. E ali estão! Agora é que é, assunto para esclarecer entre verdadeiros artistas, os capinhas e o toiro. E então se enovela uma dança-luta de prender atenções e cortar respirações, arca por arca, mano a mano, sem truques.
Nada na mão, nada na manga. Ordena o Regulamento das Touradas à Corda da Região Autónoma dos Açores que "todos os participantes na lide ou corrida não podem utilizar instrumentos susceptíveis de provocar ferimentos no toiro, como "aguilhões", podendo, todavia, fazer uso dos instrumentos consagrados como tradicionais, nomeadamente o bordão, blusa ou pano, a varinha e o guarda-sol".
(Quinta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
segunda-feira, 8 de junho de 2015
José Gomes Ferreira 3
Viver sempre também cansa!
Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo...
José Gomes Ferreira
(José Gomes Ferreira nasceu no dia 9 de Junho de 1900. Morreu em 1985.)
Toiros à corda na ilha Terceira 4
A primeira é do toiro e a segunda é dos pastores
Quem quiser assistir a uma lide à moda antiga, sob a ortodoxa liturgia das origens, deverá deslocar-se à Canada das Cales, nos Altares; mas quem pretender viver uma das corridas mais interessantes e famosas, então terá de ir à Ladeira Grande. "Os melhores animais estão reservados para ali. Aquilo é uma montra de toiros", dizem-me os da tarimba. Mas, é verdade, também não se enfastiará quem resolver vadiar aos toiros pelas Doze Ribeiras, por Vila Nova ou pelas Lajes.
Ligada tradicionalmente às festas e romarias da freguesia ou do sítio, a tourada à corda é corrida em plena rua, na estrada, com portas e cancelas convenientemente resguardadas com taipais à medida, num percurso que não poderá exceder os 500 metros, e os seus limites estão marcados, em ambos os extremos, por dois riscos brancos, pintados no chão com um intervalo de cinco metros entre si. Estas linhas servem também para discriminar responsabilidades em caso de estragos e prejuízos: a cargo dos mordomos da festa, se dentro; por conta do ganadeiro, quando fora.
A rua esborda de uma multidão passeante que o calor abafado empurra a entornar-se na cerveja e no vinho de cheiro. Às cinco da tarde em ponto, uma solitário foguete rasga o céu anunciando com estrondo a saída da primeiro toiro. Comandam-no os pastores, com uma corda de 90, 95 metros, espécie de arreata que, por assim dizer, conduz e mantém o animal nas balizas do arraial.
Os pastores, homens do ganadeiro, vestem para o acto chapéu de feltro preto, camisola branca com feitio e calça preta ou cinzenta. Como manda a lei, deverão ser sete, divididos pelo meio e pelo fim da corda, mas o povo não gosta de lá ver muita gente. À frente, o rodador, que "vira a mão" consoante o toiro vai "pedindo", ajudado pelo resto do grupo da "pancada", para suster o animal no limite da corda durante toda a corrida. A pancada, há que saber dá-la: nunca por nunca "de estaca" (isto é: de supetão), porque então o toiro tombaria. Uma vergonha!
Entre estes homens guarda-se e respeita-se uma tradição que vai marcar o desenrolar da lide e que ordena que "a primeira é do toiro e a segunda é dos pastores". Quer-se dizer: o animal é livre de arremeter o primeiro ataque ("só assim a luta é leal"... - dizem-me os mais antigos), mas na segunda investida já poderá ser refreado pelos pastores.
(Quarta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
Quem quiser assistir a uma lide à moda antiga, sob a ortodoxa liturgia das origens, deverá deslocar-se à Canada das Cales, nos Altares; mas quem pretender viver uma das corridas mais interessantes e famosas, então terá de ir à Ladeira Grande. "Os melhores animais estão reservados para ali. Aquilo é uma montra de toiros", dizem-me os da tarimba. Mas, é verdade, também não se enfastiará quem resolver vadiar aos toiros pelas Doze Ribeiras, por Vila Nova ou pelas Lajes.
Ligada tradicionalmente às festas e romarias da freguesia ou do sítio, a tourada à corda é corrida em plena rua, na estrada, com portas e cancelas convenientemente resguardadas com taipais à medida, num percurso que não poderá exceder os 500 metros, e os seus limites estão marcados, em ambos os extremos, por dois riscos brancos, pintados no chão com um intervalo de cinco metros entre si. Estas linhas servem também para discriminar responsabilidades em caso de estragos e prejuízos: a cargo dos mordomos da festa, se dentro; por conta do ganadeiro, quando fora.
A rua esborda de uma multidão passeante que o calor abafado empurra a entornar-se na cerveja e no vinho de cheiro. Às cinco da tarde em ponto, uma solitário foguete rasga o céu anunciando com estrondo a saída da primeiro toiro. Comandam-no os pastores, com uma corda de 90, 95 metros, espécie de arreata que, por assim dizer, conduz e mantém o animal nas balizas do arraial.
Os pastores, homens do ganadeiro, vestem para o acto chapéu de feltro preto, camisola branca com feitio e calça preta ou cinzenta. Como manda a lei, deverão ser sete, divididos pelo meio e pelo fim da corda, mas o povo não gosta de lá ver muita gente. À frente, o rodador, que "vira a mão" consoante o toiro vai "pedindo", ajudado pelo resto do grupo da "pancada", para suster o animal no limite da corda durante toda a corrida. A pancada, há que saber dá-la: nunca por nunca "de estaca" (isto é: de supetão), porque então o toiro tombaria. Uma vergonha!
Entre estes homens guarda-se e respeita-se uma tradição que vai marcar o desenrolar da lide e que ordena que "a primeira é do toiro e a segunda é dos pastores". Quer-se dizer: o animal é livre de arremeter o primeiro ataque ("só assim a luta é leal"... - dizem-me os mais antigos), mas na segunda investida já poderá ser refreado pelos pastores.
(Quarta parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
Toiros à corda na ilha Terceira 3
O "Descornado" ou "Galho e Meio" e o "Mulato", os ídolos das multidões
Tudo começa pelo cedo, no "mato", horas antes da tourada propriamente dita. Sob o olhar interessado e crítico de muitos aficionados, os pastores (espécie de campinos apeados) apartam e conduzem para o redondel do ganadeiro contratado um lote de animais de onde sairão, após vistoria veterinária, os quatro para a lide.
Não se trata, em boa verdade, de uma escolha. De facto, os toiros são conhecidos e requisitados consoante a fama que os precede. Depois de corrido na praça, o toiro é tratado para regressar à pastagem. É, apesar de tudo, um "puro", e estará então pronto para a sua "primeira corda". Daí para a frente, dos três aos nove anos, será o seu valor (que "a corrida é boa quando o toiro é ruim") a determinar o número de funções e de temporadas em que se manterá em cartaz. E mesmo depois, com dez ou doze anos, já passado e em idade de aposentação, ainda colaborará em corridas de segunda ou de oferta benificente do ganadeiro. Reclamam, solenes, os fundamentalistas, que não estão virados para vacadas com recurso a decadentes velhas glórias...
O nome próprio do toiro da corda é um número. Os bons desempenhos e o sucesso poderão conferir-lhe, por distinção, o privilégio da alcunha. O "Descornado" ou "Galho e Meio", no activo pelos anos 50 e 60 do século passado, é dos mais famosos: tudo o que é bom - garentem alguns entendidos - descendeu dali. Mas era o "Mulato" ("o velhaco", "o traiçoeiro", "o sabido") que por aquela altura convocava as multidões. Toda a gente o queria ver, se bem que ao longe. Dele se afirma, quase por unanimidade, ter sido "o melhor de todos". Ao "Mulato" podem juntar-se, na selecta tribuna dos notáveis, o 90 e o 14. Nos últimos tempos, o 309 e o 314 são do melhor que por ali se corre - diz quem sabe.
A questão tem mesmo muito que se lhe diga. Na verdade, é singularmente à volta do toiro, e de mais nenhum dos intervenientes na corrida, que as opiniões dos entendidos se extremam, se incendeiam. Espontâneas tertúlias maliciosamente picadas por infiltrados amigos da onças, marralham, discutem, barafustam quase em vias de facto pela imposição dos melhores, dos seus melhores. Exactamente: na corrida à corda, os aficionados são pelo toiro...
(Terceira parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
Tudo começa pelo cedo, no "mato", horas antes da tourada propriamente dita. Sob o olhar interessado e crítico de muitos aficionados, os pastores (espécie de campinos apeados) apartam e conduzem para o redondel do ganadeiro contratado um lote de animais de onde sairão, após vistoria veterinária, os quatro para a lide.
Não se trata, em boa verdade, de uma escolha. De facto, os toiros são conhecidos e requisitados consoante a fama que os precede. Depois de corrido na praça, o toiro é tratado para regressar à pastagem. É, apesar de tudo, um "puro", e estará então pronto para a sua "primeira corda". Daí para a frente, dos três aos nove anos, será o seu valor (que "a corrida é boa quando o toiro é ruim") a determinar o número de funções e de temporadas em que se manterá em cartaz. E mesmo depois, com dez ou doze anos, já passado e em idade de aposentação, ainda colaborará em corridas de segunda ou de oferta benificente do ganadeiro. Reclamam, solenes, os fundamentalistas, que não estão virados para vacadas com recurso a decadentes velhas glórias...
O nome próprio do toiro da corda é um número. Os bons desempenhos e o sucesso poderão conferir-lhe, por distinção, o privilégio da alcunha. O "Descornado" ou "Galho e Meio", no activo pelos anos 50 e 60 do século passado, é dos mais famosos: tudo o que é bom - garentem alguns entendidos - descendeu dali. Mas era o "Mulato" ("o velhaco", "o traiçoeiro", "o sabido") que por aquela altura convocava as multidões. Toda a gente o queria ver, se bem que ao longe. Dele se afirma, quase por unanimidade, ter sido "o melhor de todos". Ao "Mulato" podem juntar-se, na selecta tribuna dos notáveis, o 90 e o 14. Nos últimos tempos, o 309 e o 314 são do melhor que por ali se corre - diz quem sabe.
A questão tem mesmo muito que se lhe diga. Na verdade, é singularmente à volta do toiro, e de mais nenhum dos intervenientes na corrida, que as opiniões dos entendidos se extremam, se incendeiam. Espontâneas tertúlias maliciosamente picadas por infiltrados amigos da onças, marralham, discutem, barafustam quase em vias de facto pela imposição dos melhores, dos seus melhores. Exactamente: na corrida à corda, os aficionados são pelo toiro...
(Terceira parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
domingo, 7 de junho de 2015
Toiros à corda na ilha Terceira 2
Nem à lei da bala conseguiram acabar com as corridas
A história das touradas na ilha Terceira é rica em peripécias. Para que conste e se não incomodem em desgostos os pouco secretos participantes em recente vernissage de morte, foi aqui, a 13 de Setembro de 1895, que pela primeira vez um artista espanhol, Mateíto, matou a estoque um toiro em Portugal. Deu-se o caso no pátio da Quinta do Rosário, na Terra Chã, propriedade do conde de Barcelos.
No último quartel do século XIX, a função à corda deverá ter-se revestido de alguma selvajaria, já que não faltam relatos e denúncias de maus tratos aos animais. Em 1900, uma certa "inovação" numa corrida em São Carlos (nos arrabaldes de Angra) veio alterar os ânimos da imprensa local - à época, atenta e vigilante -, que logo bradou contra o "abuso" de se lidarem dois toiros ao mesmo tempo. Contam os arquivos: "Em São Carlos deu em resultado ficar bastante magoado um indivíduo que, procurando desviar-se de um dos animais, foi apanhado pelo outro". Depressa acabaram as modernices.
De 1910 ficou notícia de uma tourada como paga de promessa pela cura de um pequeno ferido numa corrida da temporada anterior. E da maneira como esta tradição se impregnou nas gentes terceirenses é bom exemplo o acontecido em 1916, tempo de guerra: o general Augusto de Oliveira Guimarães, governador militar dos Açores, proibiu as corridas à corda; a sua autoridade é que não resistiu às pressões da população, e logo dois meses passados eram concedidas "algumas" licenças para desaugar o povo.
Em 1919 as touradas voltaram em força. Às vezes quatro no mesmo sítio, umas atrás das outras. O povo deslocava-se em multidões, em lanchas e barcos, carros e camionetas e, em 1922, uma dessas excursões serviu até para a viagem esperimental do primeiro auto-omnibus das ilhas. O ritual do cortejo, desde o campo até ao terreiro, mantém-se ainda hoje, porém já com o folclore a desbotar-se-lhe.
As restrição nunca vingaram. Na Terceira era este, definitivamente, o divertimento do povo. Apesar de, por exemplo, o jornal A União prosseguir severa cruzada, afligindo-se então que as touradas à corda "são uma vergonha; o mesmo que impelir para o abismo uma população inteira".
(Segunda parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
A história das touradas na ilha Terceira é rica em peripécias. Para que conste e se não incomodem em desgostos os pouco secretos participantes em recente vernissage de morte, foi aqui, a 13 de Setembro de 1895, que pela primeira vez um artista espanhol, Mateíto, matou a estoque um toiro em Portugal. Deu-se o caso no pátio da Quinta do Rosário, na Terra Chã, propriedade do conde de Barcelos.
No último quartel do século XIX, a função à corda deverá ter-se revestido de alguma selvajaria, já que não faltam relatos e denúncias de maus tratos aos animais. Em 1900, uma certa "inovação" numa corrida em São Carlos (nos arrabaldes de Angra) veio alterar os ânimos da imprensa local - à época, atenta e vigilante -, que logo bradou contra o "abuso" de se lidarem dois toiros ao mesmo tempo. Contam os arquivos: "Em São Carlos deu em resultado ficar bastante magoado um indivíduo que, procurando desviar-se de um dos animais, foi apanhado pelo outro". Depressa acabaram as modernices.
De 1910 ficou notícia de uma tourada como paga de promessa pela cura de um pequeno ferido numa corrida da temporada anterior. E da maneira como esta tradição se impregnou nas gentes terceirenses é bom exemplo o acontecido em 1916, tempo de guerra: o general Augusto de Oliveira Guimarães, governador militar dos Açores, proibiu as corridas à corda; a sua autoridade é que não resistiu às pressões da população, e logo dois meses passados eram concedidas "algumas" licenças para desaugar o povo.
Em 1919 as touradas voltaram em força. Às vezes quatro no mesmo sítio, umas atrás das outras. O povo deslocava-se em multidões, em lanchas e barcos, carros e camionetas e, em 1922, uma dessas excursões serviu até para a viagem esperimental do primeiro auto-omnibus das ilhas. O ritual do cortejo, desde o campo até ao terreiro, mantém-se ainda hoje, porém já com o folclore a desbotar-se-lhe.
As restrição nunca vingaram. Na Terceira era este, definitivamente, o divertimento do povo. Apesar de, por exemplo, o jornal A União prosseguir severa cruzada, afligindo-se então que as touradas à corda "são uma vergonha; o mesmo que impelir para o abismo uma população inteira".
(Segunda parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
sábado, 6 de junho de 2015
O Emplastro, usa-se e deita-se fora
Foto Hernâni Von Doellinger |
As viagens de finalistas já não são o que eram, não há futebol que interesse na televisão (aquilo do Juventus-Barcelona é outra coisa), o país comove-se e revolta-se com um inesperado Jorge Jesus que praticamente paga para treinar o clube do seu coração (maravilhoso coração, maravilhoso) e com o salafrário Marco Silva, despedido por indecente e má figura, nomeada e objectivamente por ter vestido um fato de treino com o emblema do Sporting, o que é pior do que chamar pai à mãe...
Fernando Alves. O Emplastro que, segundo o Expresso em 2008, foi contratado pelas agências turísticas para acompanhar os passeios de mais de 15 mil finalistas universitários a Espanha. Quinze mil doutores, em dinheiro de hoje em dia. O extraordinário Emplastro que até foi ao Herman SIC e teve direito a dentes novos.
O campeonato acabou, e acabou bem, a bem da Nação, estamos no defeso, já não há directos TV para o nosso Fernando brilhar, já ninguém quer saber se o Fernando é filho do Pinto da Costa ou do Filipe Vieira, ou pai do Bruno de Carvalho, e então o que é que se passa? Isto: o Emplastro montou base à porta de um restaurante de Matosinhos, não sei se convidado ou somente tolerado pela gerência, e abrilhanta, à saída, copos de brutos, hic!, quero dizer fotos de grupos, gente bem. Nos intervalos das suas pertinentes intervenções (faz cara de Emplastro, só lhe pedem isso), o Fernando deita-se na soleira da porta ao lado e então faz papel de famélico de Calcutá, o que lhe fica um bocado mal, estando ele gordo como um chino. E pede, se vê uma máquina fotográfica, "Uma moedinha, é para comer, é para comer" - o número do costume. Não sei quem é que actualmente lhe está a cuidar da imagem, mas há ali qualquer coisa que não bate certo. Eu sei, já disse, é o defeso, mas isso não explica tudo.
O Fernando fez-se Emplastro a pulso, porque não é tolo nenhum - ao contrário do que muitas pessoas possam pensar -, mas também deu jeito a certas e determinadas televisões que ele fosse assim. E aos jornais. E às revistas. Pois se até o "entrevistavam"! Por outro lado, também já mete nojo, não é?
Posso dar um palpite? Posso e é o seguinte: ninguém vai querer saber do Emplastro, quando o Fernando estiver na soleira e for a sério (à séria, se lido em Lisboa).
Tobias Barreto
O rei reina e não governa
Não sei porque a língua humana
Os brutos não falam mais,
Quando hoje têm melhor vida,
E há muita besta instruída
Nas ciências sociais...
Ultimamente entenderam
Que tinham também razão
De proclamar seus direitos
Pondo em uso os bons efeitos
Que trouxe a Revolução...
"Seja o leão, diz o asno,
Um rei constitucional:
Com assembléias mudáveis,
Com ministros responsáveis,
Não nos pode fazer mal.
Fiquem-lhe as garras ocultas,
Não ruja, não erga a voz,
Conforme a tese moderna
Qu'ele reina e não governa,
Quem governa somos nós...
Todas as bestas da terra,
Todas as bestas do mar
Tenham os seus delegados,
Sendo os ministros tirados
Do seio parlamentar..."
"Muito bem! grita o macaco,
A gente vai ser feliz!
Respeito a ciência alheia;
Publicista de mão cheia,
O burro sabe o que diz.
Todavia, acho difícil
Que Dom Leão rugidor,
Sujeito à sede e à fome,
Queira ter somente o nome
De rei ou de imperador!...
Acostumado a pegar-nos
Com suas patas reais,
Calar-se, fingir-se fraco!...
Segundo penso eu... macaco...
Dom Leão não pode mais!"
Acode o asno: "Eu lhe explico,
Nada vai a objeção:
Se o rei viola o preceito,
Salvo nos fica o direito
De fazer revolução".
"Mestre burro, isto é asneira,
Palavrão de zurrador,
Esse direito é fumaça,
De que nos serve a ameaça,
Quando nos falta o valor?
Só vejo, que bem nos quadre
No trono, algum animal,
Que coma e viva deitado:
O porco!... Exemplo acabado
De rei constitucional...
Tobias Barreto
(Tobias Barreto nasceu no dia 7 de Junho de 1839. Morreu em 1889.)
Não sei porque a língua humana
Os brutos não falam mais,
Quando hoje têm melhor vida,
E há muita besta instruída
Nas ciências sociais...
Ultimamente entenderam
Que tinham também razão
De proclamar seus direitos
Pondo em uso os bons efeitos
Que trouxe a Revolução...
"Seja o leão, diz o asno,
Um rei constitucional:
Com assembléias mudáveis,
Com ministros responsáveis,
Não nos pode fazer mal.
Fiquem-lhe as garras ocultas,
Não ruja, não erga a voz,
Conforme a tese moderna
Qu'ele reina e não governa,
Quem governa somos nós...
Todas as bestas da terra,
Todas as bestas do mar
Tenham os seus delegados,
Sendo os ministros tirados
Do seio parlamentar..."
"Muito bem! grita o macaco,
A gente vai ser feliz!
Respeito a ciência alheia;
Publicista de mão cheia,
O burro sabe o que diz.
Todavia, acho difícil
Que Dom Leão rugidor,
Sujeito à sede e à fome,
Queira ter somente o nome
De rei ou de imperador!...
Acostumado a pegar-nos
Com suas patas reais,
Calar-se, fingir-se fraco!...
Segundo penso eu... macaco...
Dom Leão não pode mais!"
Acode o asno: "Eu lhe explico,
Nada vai a objeção:
Se o rei viola o preceito,
Salvo nos fica o direito
De fazer revolução".
"Mestre burro, isto é asneira,
Palavrão de zurrador,
Esse direito é fumaça,
De que nos serve a ameaça,
Quando nos falta o valor?
Só vejo, que bem nos quadre
No trono, algum animal,
Que coma e viva deitado:
O porco!... Exemplo acabado
De rei constitucional...
Tobias Barreto
(Tobias Barreto nasceu no dia 7 de Junho de 1839. Morreu em 1889.)
Toiros à corda na ilha Terceira
Da vaca das cordas à farra do boi, ou o "verdadeiro futebol"
Dos terceirenses costumam dizer os açorianos das outras ilhas, se calhar com uma pontinha de inveja, que são gente branda para o trabalho mas lesta para a folia. E tudo, afinal, só por causa das suas Sanjoaninas - consideradas "a mais pujante festa popular do arquipélago" e que, na última semana de Junho, constituem, a bem dizer, o modo de vida de toda a gente -, da sua maneira muito especial de festejar o Espírito Santo, que aqui rende duração extraordinária, desde o domingo de Pentecostes até ao fim do Verão, mas principalmente à conta das suas touradas à corda. "Soltem-lhes um toiro na rua - acirram os vizinhos do outro lado das ondas -, e o dia está-lhes ganho. O resto cá ficamos nós a trabalhar por eles". Um exagero...
A verdade, no entanto, é que não basta aos da Terceira a já de si singular extravagância regional das clássicas corridas de toiros à portuguesa, na Monumental de Angra do Heroísmo, durante a época estival. O temperamento festivo e extrovertido deste povo bom ganha identidade própria somente nesta manifestação bizarra e excitante que é a tourada à corda.
E não o fazem por pouco: de 1 de Maio a 15 de Outubro, cerca de 150 corridas ditas tradicionais, fora as avulsas, cobrem as freguesias dos concelhos de Angra do Heroísmo e Praia da Vitória, com surtidas, entusiasticamente acompanhadas, às Velas e à Calheta, na vizinha ilha de São Jorge.
A primeira referência a uma "tourada de corda" remonta a 1622, por ocasião dos festejos jubilosos da canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loiola, oferecidos pela Câmara de Angra. No entanto, e curiosamente, já em 1588 D. Frei Jorge de Santiago, terceiro prelado diocesano, proibira as touradas nos adros das igrejas.
Os animais talvez tivessem vindo do Algarve, da zona de Sagres, donde partiram as primeiras naus, mas também terá chegado algum gado mirandês, o que nem dará para admirar, pois entre os primeiros colonos havia muita gente do Norte.
O gado bravo, esse, há quem admita ter sido expedido de Espanha, logo após o estabelecimento dos castelhanos, no tempo do domínio filipino, mas mais criterioso será afirmar que o primeiro toiro bravo de esptirpe terá sido importado somente há pouco mais de 70 anos - ensinam-me os entendidos.
Não estão também esclarecidas as origens da tourada à corda. Apesar das suas parecenças com o gallumbo y el toro del aguardiente de Espanha, ela assentou arraiais na Terceira, pode presumir-se, antes da chegada dos castelhanos. E de uma forma, por assim dizer, espontânea, genuína. No "mato", que é como os locais chamam ao interior da ilha, haveria já quem, assim para matar o tempo, tentasse as suas habilidades com os toiros. Pois bem: foi só pegar nessas proezas ocultas e transportá-las para o espectáculo franco dos terreiros.
Ponte de Lima mantém uma evento congénere, com realização anual na quarta-feira anterior ao Corpo de Deus: chama-se ali "vaca das cordas". E no Brasil sobrevive também anualmente uma aparentada "farra do boi", na ilha de Santa Catarina. Mas, a tão grande escala, os toiros à corda da Terceira são, sem dúvida, um acontecimento único. E de exportação... para onde quer que haja um terceirense.
(Primeira parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
Dos terceirenses costumam dizer os açorianos das outras ilhas, se calhar com uma pontinha de inveja, que são gente branda para o trabalho mas lesta para a folia. E tudo, afinal, só por causa das suas Sanjoaninas - consideradas "a mais pujante festa popular do arquipélago" e que, na última semana de Junho, constituem, a bem dizer, o modo de vida de toda a gente -, da sua maneira muito especial de festejar o Espírito Santo, que aqui rende duração extraordinária, desde o domingo de Pentecostes até ao fim do Verão, mas principalmente à conta das suas touradas à corda. "Soltem-lhes um toiro na rua - acirram os vizinhos do outro lado das ondas -, e o dia está-lhes ganho. O resto cá ficamos nós a trabalhar por eles". Um exagero...
A verdade, no entanto, é que não basta aos da Terceira a já de si singular extravagância regional das clássicas corridas de toiros à portuguesa, na Monumental de Angra do Heroísmo, durante a época estival. O temperamento festivo e extrovertido deste povo bom ganha identidade própria somente nesta manifestação bizarra e excitante que é a tourada à corda.
E não o fazem por pouco: de 1 de Maio a 15 de Outubro, cerca de 150 corridas ditas tradicionais, fora as avulsas, cobrem as freguesias dos concelhos de Angra do Heroísmo e Praia da Vitória, com surtidas, entusiasticamente acompanhadas, às Velas e à Calheta, na vizinha ilha de São Jorge.
A primeira referência a uma "tourada de corda" remonta a 1622, por ocasião dos festejos jubilosos da canonização de São Francisco Xavier e Santo Inácio de Loiola, oferecidos pela Câmara de Angra. No entanto, e curiosamente, já em 1588 D. Frei Jorge de Santiago, terceiro prelado diocesano, proibira as touradas nos adros das igrejas.
Os animais talvez tivessem vindo do Algarve, da zona de Sagres, donde partiram as primeiras naus, mas também terá chegado algum gado mirandês, o que nem dará para admirar, pois entre os primeiros colonos havia muita gente do Norte.
O gado bravo, esse, há quem admita ter sido expedido de Espanha, logo após o estabelecimento dos castelhanos, no tempo do domínio filipino, mas mais criterioso será afirmar que o primeiro toiro bravo de esptirpe terá sido importado somente há pouco mais de 70 anos - ensinam-me os entendidos.
Não estão também esclarecidas as origens da tourada à corda. Apesar das suas parecenças com o gallumbo y el toro del aguardiente de Espanha, ela assentou arraiais na Terceira, pode presumir-se, antes da chegada dos castelhanos. E de uma forma, por assim dizer, espontânea, genuína. No "mato", que é como os locais chamam ao interior da ilha, haveria já quem, assim para matar o tempo, tentasse as suas habilidades com os toiros. Pois bem: foi só pegar nessas proezas ocultas e transportá-las para o espectáculo franco dos terreiros.
Ponte de Lima mantém uma evento congénere, com realização anual na quarta-feira anterior ao Corpo de Deus: chama-se ali "vaca das cordas". E no Brasil sobrevive também anualmente uma aparentada "farra do boi", na ilha de Santa Catarina. Mas, a tão grande escala, os toiros à corda da Terceira são, sem dúvida, um acontecimento único. E de exportação... para onde quer que haja um terceirense.
(Primeira parte de uma reportagem que escrevi originalmente para a Revista do Expresso de 6 de Julho de 1996. Convocadora de multidões, curtidora de épicas bebedeiras e alcoviteira de muito casamento, a corrida à corda da Terceira é o "verdadeiro futebol". E amanhã há mais.)
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