segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Lembro-me da voz do Nélson


Lembro-me da voz do Nélson. O Nélson tinha uma loja muito pequenina mesmo ao lado do consultório do Dr. Antunes, uma montra e pouco mais, e gostava de estar à porta a dizer bom dia ou boa tarde às pessoas que passavam, não por interesse de negócio, coisa rara, mas porque era assim do seu feitio, dado, gentil, bom. Vendia electrodomésticos. Foi no Nélson que eu comprei a primeira televisão para a minha mãe, foi do Nélson que eu, já casado, trouxe para o Porto a primeira varinha mágica da Mi, talvez no nosso primeiro Natal, palermices que os homens faziam antigamente, oferecerem instrumentos de trabalho às mulheres, como se fossem prendas. Hoje em dia, fôramos nós outra vez novos, dava-lhe um Porshe Panamera ou talvez um beijo, que é com o que nos temos governado. O Nélson, atenção, muita atenção!, sabia de amplificadores, sabia de altifalantes, era mestre de "instalações sonoras", tinha sido esse o seu princípio, e suponho que nem será preciso dizer mais nada para que saibais que ele era um dos meus heróis.
Coincidíamos às vezes no tasco. O Nélson, o Sr. Nélson, não era um bebedor, era um conversador, mas só falava se valesse a pena. E eu lembro-me da voz dele, tão respeitadora, tão amiga, tão mansa, como se pedisse desculpa por se fazer ouvir. E, no entanto, era sábio. O Nélson é certamente uma das pessoas mais decentes que eu tive a sorte de conhecer em toda a minha vida, e há séculos que não sabia dele. Soube hoje. Morreu.
Nélson Novais, 95 anos, o sócio n.º 2 do Grupo Nun'Álvares, faleceu há uma semana, acabei de saber, por acaso, numa passagem distraída pelo Facebook da colectividade fafense. O Nélson morreu e eu, caramba, foi como se me tivesse caído a noite, fiquei tão triste... Até que me lembrei da voz do Nélson, ouvi-a de repente, juro, sem palavras certas, numa espécie de relambório sem sentido, era apenas aquele som calmo, meigo, agradável, apaziguador, voz de anjo, pensei. Isso, se os anjos falassem, haveriam de falar com a voz do Nélson. Quer-se dizer, afinal o Nélson esteve cá em baixo apenas emprestado e agora finalmente regressa a casa, ao Céu, ao sítio aonde deveras sempre pertenceu. Que descanse em paz.

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