quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Quando o homem-estátua abriu a boca

As pombinhas da catrina
As pombinhas da catrina andaram de mão em mão. Acabaram por casar, é certo, mas da fama não se livram...

Porto, vésperas de mais um Natal. Ao fim de 35 anos de inabalável serviço na ex-libríssima Praça da Liberdade, o homem-estátua chamou o fiscal da Câmara num pst! muito bem disfarçado. Veio também um polícia municipal. "Ó colegas, isto aqui já não dá nada. Até o cavalo de D. Pedro IV leva mais do que eu ao fim do dia. Estou no ir, se calhar para Fafe, vou fazer de pedregulho no Largo ou talvez de árvore. Ou então vou para a Suíça trabalhar como boneco de neve ou vaca da Milka, que estamos na época. Lembrais-vos do Dr. Miguel Relvas? Sabíeis que sempre que os portugueses emigram têm uma visão universalista que lhes traz sucesso?", disse o homem-estátua ao fiscal camarário e ao polícia municipal, por entre dentes e sem perder a pose. Era efectivamente um homem-estátua aprumado, muito profissional e filósofo amiúde. "Além disso, estou farto de que me caguem em cima", acrescentou, descendo finalmente do banco de cozinha e arrumando os tarecos e o velho reumatismo em dois sacos plásticos do Pingo Doce do tempo em que os sacos plásticos eram de borla. "As pombas?", perguntou o fiscal da Câmara, que era um bocadinho lerdo de entendimento, porém presto para as multas. "O quê?", perguntou o homem-estátua, que já nem se lembrava do que tinha acabado de dizer. "Cagam-lhe em cima, as pombas?", interveio o polícia municipal, espaçando as sílabas e restabelecendo a ordem. "Os pombos. Os do Governo, os da Assembleia, os da Justiça, os da Saúde, os da TAP, os da CP, os da EDP, os dos Correios, os da Caixa, os da Igreja, os do Espírito Santo, esses pombos todos de gravata ou cabeção mas sem anilha, esses cagões", respondeu o homem-estátua, escarafunchando os bolsos profundos à procura dos apontamentos com a lista completa, nome a nome, a começar em Aníbal e a acabar em Ventura, à procura da lista imensa e do manguito do Bordalo, que também estava para ali metido, há que tempos há espera. Tinham sido realmente muitos anos de gesto suspenso e bico calado.

(Versão revista, actualizada e aumentada, publicada no meu blogue Mistérios de Fafe)

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