sábado, 8 de maio de 2021

Pela alminha de quem lá tem...

Ser pobre é fodido. Mas, para quem não sabe o que é a pobreza, "pobre" é apenas título de jornal, cinco caracteres sem pessoas dentro. Pessoas de pele e osso. O jornal Público anunciava no tempo da troika e de Pedro Passos Coelho: os "pobres passam a ter acesso a refeições take away em 950 cantinas em todo o país". Vejam bem o que se escrevia e escreve em Portugal e já vamos no século vinte e um, o tal que nem deveria existir se houvesse respeito pelas profecias: os "pobres" têm outra vez direito à senhazinha da sopa dos ditos. Se os pobres morrerem de fome é porque não deram o nome. Ou então porque não sabem o que quer dizer take away. Problema deles. Os pobres não são leitores do Público.

Havia o clero, havia a nobreza e havia o povo. E isto estava muito bem percebido. Depois apareceu a burguesia, que meteu um bocado de nojo, amantizando-se com o clero, com a nobreza e com o povo, consoante, porque a burguesia é muito dada a certas e determinadas promiscuidades. E a seguir, mas isto já foi um a seguir que demorou muito tempo e ainda está a doer, veio o proletariado, lá do fundo do fundo do clero, da nobreza, do povo e da burguesia que estava distraída a chá e torradas. E do sarro dos pés do proletariado, tipo cogumelos, renasceram os pobres, que aqui atrasado eram uns desgraçados rotos e sujos que em dias certos batiam à porta da nossa casa, em Fafe, a pedirem "uma esmolinha pela alminha de quem lá tem". Porque nós éramos pobres, mas menos pobres do que eles.

Sei muito bem como tudo isto já funcionou em Portugal. Antes do 25 de Abril de 1974, lembram-se? E era desde os bancos da escola - da Escola Primária - que se aprendia, na carne, e com a crueldade própria daquela idade, a diferença entre ricos e pobres. A diferença entre os que tinham tudo e os que não tinham nada. A diferença entre a pasta de cabedal e a sacola de pano. A diferença entre os que escreviam em cadernos e os que ainda usavam a lousa. A diferença entre os meninos ricos que nunca apanhavam do professor e os miúdos pobres que levavam pancada de criar bicho. A diferença entre o sapatinho de verniz e as chancas ou o pé descalço. A diferença entre os que traziam lanchinho com pãezinhos com manteiga e marmelada e os que pediam a senha para ir comer uma sopinha. Pediam.

Exactamente: a sopa e a senha. Naquele tempo - no tempo em que os rapazes não se misturavam com as raparigas e os ricos também não se misturavam com os pobres -, as escolas não tinham cantina e havia muita fome. Havia uma espécie de cozinha, às vezes num edifício anexo ou próximo, e ali servia-se uma sopa. Assim era na minha Escola Conde Ferreira, em Fafe.
Para terem direito à sopa, os miúdos pobres pediam todos os dias uma senha, que era um pequeno quadrado de papel com um carimbo e um sarrabisco feito pelo professor armado em médico. Aqui há anos sugeri que o Governo de Passos Coelho copiasse tão peregrina ideia para o seu tempo: um carimbo na testa de todos os pobres, dos pobres pobres, para que o aparelho do Estado saiba imediata e inequivocamente quem pode comer a sopa.
Claro que já então - no antes do 25 de Abril de 1974, que de verdade existiu - havia quem tivesse vergonha de ser pobre, quem tivesse vergonha de ser apontado publicamente como pobre, e preferia passar fome. Eu sei que não falta por aí quem sustente que fome é um conceito muito relativo, mas eu acho que é cada vez mais uma realidade copulativa. E só peço que quando chegar a minha vez, quando me vierem entregar a minha misericordiosa dose de "alimentação, vestuário e medicamentos", façam o favor de me deixar também os caixotes de cartão. É que as noites ameaçam ficar mais frescas.

P.S. - Hoje, 9 de Maio, é Dia Da Europa. Estamos na Europa, somos europeus, parabéns à prima!

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