segunda-feira, 30 de setembro de 2019
O velho do saco
Mandaram-no meter a viola no saco e ele meteu. Era velho e já não estava para grandes flostrias.
Vicente Risco 7
Os
esqueletes perderon xa o pouco xuicio que lles quedaba:
- ¡A de Dios!
- ¡Fuxamos!
- ¡Auxilios!
- ¡Sálvese quen poída!
- ¡Por eiqui!
- ¡Pol-a porta!
Turraban pol-o Alveiros, cando d'un lado, cando do-outro, ninguén s'entendía, bufaban de presa e de medo, topando os us cos outros, caindo, erguendose...
Apagáronse todal-as luces.
Alveiros sentiu qu'o arrempuxaban, qu'o collían, qu'o levaban d'arrastro, logo no aire...
Logo comenzou a sentire un afogo, unha estreitura y-un medo que s'arripiaba... Sentía que por todol-os lados tiña pedra pegad'ô corpo unha pedra mollada que fedía a podre; tiña un frío que se lle metía nos osos... Botou a man y-atopou un esquelete deitado a veira d'él. Sacudiuno:
- ¡Señor Dehmel! ¡Ay, señor Dehmel!
O esquelete non respondía. Aquelo si qu'era gordo. Alveiros enrabechado e tremendo de medo pegou a berrar y-a petar nas pedras e no esquelete, arrimándolle cada suco que lle descompuño os osos... Sudaba afogábase, por que ll'iba fallando o aire, y-o mesmo tempo s'arreguiraba de frio...
Por fin, botous'a chorar...
- ¡Fuxamos!
- ¡Auxilios!
- ¡Sálvese quen poída!
- ¡Por eiqui!
- ¡Pol-a porta!
Turraban pol-o Alveiros, cando d'un lado, cando do-outro, ninguén s'entendía, bufaban de presa e de medo, topando os us cos outros, caindo, erguendose...
Apagáronse todal-as luces.
Alveiros sentiu qu'o arrempuxaban, qu'o collían, qu'o levaban d'arrastro, logo no aire...
Logo comenzou a sentire un afogo, unha estreitura y-un medo que s'arripiaba... Sentía que por todol-os lados tiña pedra pegad'ô corpo unha pedra mollada que fedía a podre; tiña un frío que se lle metía nos osos... Botou a man y-atopou un esquelete deitado a veira d'él. Sacudiuno:
- ¡Señor Dehmel! ¡Ay, señor Dehmel!
O esquelete non respondía. Aquelo si qu'era gordo. Alveiros enrabechado e tremendo de medo pegou a berrar y-a petar nas pedras e no esquelete, arrimándolle cada suco que lle descompuño os osos... Sudaba afogábase, por que ll'iba fallando o aire, y-o mesmo tempo s'arreguiraba de frio...
Por fin, botous'a chorar...
"D'o Caso que Ll'aconteceu ô Doutor Alveiros", Vicente Risco
(Vicente Risco nasceu no dia 1 de Outubro de 1884. Morreu em 1963.)
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Poesias completas e praticamente reunidas (vol. XII)
Crime perfeito
Arranjou uma amante
contratou um mordomo
atrasou o relógio
matou a mulher
e
chamou a polícia.
Por esta ordem.
Razão sólida
"Mas afinal
o que é que o Icónico
tem mais do que eu!?",
queixava-se o Icúbico.
Une petite différence
A diferença entre
panache e panachê
é
gasosa.
Ingratidão
Quando o Feitiço
se virou contra
o Feiticeiro,
o Feiticeiro resmungou:
- Mal agradecido...
Passodoblando
Quando o poeta
disse
"Entram velhas doidas
e turistas
entram excursões
entram benefícios
e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas
e coristas
entram galifões
de crista"
alguém perguntou:
- Mas quem caralho é o porteiro?...
O último a rir
Quando o poeta
disse
"Deixa-me rir"
o pessoal
- a verdade é para ser dita -
encolheu os ombros
e bebeu mais um copo...
É assim
O poeta disse
"É preciso avisar toda a gente"
e assim começou a toléria
dos telemóveis nos concertos.
É só fazer as contas
Quando o poeta
disse
"Foram não sei quantos mil",
embora pareça,
não estava a exagerar...
Arranjou uma amante
contratou um mordomo
atrasou o relógio
matou a mulher
e
chamou a polícia.
Por esta ordem.
Razão sólida
"Mas afinal
o que é que o Icónico
tem mais do que eu!?",
queixava-se o Icúbico.
Une petite différence
A diferença entre
panache e panachê
é
gasosa.
Ingratidão
Quando o Feitiço
se virou contra
o Feiticeiro,
o Feiticeiro resmungou:
- Mal agradecido...
Passodoblando
Quando o poeta
disse
"Entram velhas doidas
e turistas
entram excursões
entram benefícios
e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas
e coristas
entram galifões
de crista"
alguém perguntou:
- Mas quem caralho é o porteiro?...
O último a rir
Quando o poeta
disse
"Deixa-me rir"
o pessoal
- a verdade é para ser dita -
encolheu os ombros
e bebeu mais um copo...
É assim
O poeta disse
"É preciso avisar toda a gente"
e assim começou a toléria
dos telemóveis nos concertos.
É só fazer as contas
Quando o poeta
disse
"Foram não sei quantos mil",
embora pareça,
não estava a exagerar...
domingo, 29 de setembro de 2019
O bem-mandado
Mandaram-no à merda e ele foi. Regressou carregado e perguntou: - É para todos ou alguém está de dieta?
Paulo Bomfim 3
A água
Despe, na solidão da tarde,
Tua roupagem manchada de quotidiano,
E deixa que a chuva molhe teus cabelos
E vista teu corpo de escamas de prata.
Pousa, em teus ombros, o manto dos lagos
E colhe no cântaro de tuas mãos
A música dos dias que adormeceram
No fundo de teu ser.
Mármores líquidos moldarão teu corpo.
Nuvem,
Penetrarás a carne da manhã.
"Quinze Anos de Poesia", Paulo Bomfim
(Paulo Bomfim nasceu no dia 30 de Setembro de 1926)
Despe, na solidão da tarde,
Tua roupagem manchada de quotidiano,
E deixa que a chuva molhe teus cabelos
E vista teu corpo de escamas de prata.
Pousa, em teus ombros, o manto dos lagos
E colhe no cântaro de tuas mãos
A música dos dias que adormeceram
No fundo de teu ser.
Mármores líquidos moldarão teu corpo.
Nuvem,
Penetrarás a carne da manhã.
"Quinze Anos de Poesia", Paulo Bomfim
(Paulo Bomfim nasceu no dia 30 de Setembro de 1926)
O Grosso da Coluna e o Maciço Central
A diferença entre o Grosso da Coluna e o Maciço Central pode
resumir-se-se assim: o primeiro é corredor de bicicletas e o segundo
joga no eixo da defesa, como agora se diz. E o que têm em comum?
Fisicamente falando, pertencem ambos à família dos Armários.
Pantominices
O sem-abrigo apresentou-se nos serviços sociais e disse Bom dia, sou cão e preciso de uma casa! Deram-lhe um T3+1 decorado e mobilado.
sábado, 28 de setembro de 2019
A família
Tinha realmente uma família numerosa: sete filhos, vinte e três netos, quarenta e sete bisnetos, dezassete trinetos, duas tetranetas e uma trotineta.
Elvira Vigna 2
Tenho vinte e poucos anos e moro com Mariana, fato do conhecimento do João, que deduz, a partir daí, que sou lésbica. Sendo lésbica, ele também deduz, sou uma pessoa vivida, que saberá como são os fatos da vida. E sendo uma pessoa vivida que saberá como são os fatos da vida, sei sem dúvida apreciar a vida dele, João, que não é que seja uma vida legal apesar de ele ter feito programas com garotas de programa sua vida inteira. A vida dele é uma vida legal porque ele fez programas com garotas de programa sua vida inteira. Não apesar de. Porque. Sublinha o porque.
E eu sou capaz de entender isso.
"Porque tem dessas coisas. Não é?"
"Como Se Estivéssemos Em Um Palimpsesto de Putas", Elvira Vigna
(Elvira Vigna nasceu no dia 29 de Setembro de 1947. Morreu em 2017.)
(Elvira Vigna nasceu no dia 29 de Setembro de 1947. Morreu em 2017.)
Luís Miguel Nava 4
Um prego
Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.
Luís Miguel Nava
(Luís Miguel Nava nasceu no dia 29 de Setembro de 1957. Morreu em 1995.)
Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.
Luís Miguel Nava
(Luís Miguel Nava nasceu no dia 29 de Setembro de 1957. Morreu em 1995.)
Xosé Trapero Pardo 3
¿Decides que son tolo?... ¡Será certo!
Así e todo.... ¡deixádeme soñar!
pois pra o home que está sempre desperto,
a Vida é un deserto
qu'entre bágoas se ten que atravesar.
"Lóstregos e Moxenas", Xosé Trapero Pardo
(Xosé Trapero Pardo nasceu no dia 29 de Setembro de 1900. Morreu em 1995.)
Alexandre Cribeiro 4
As rosas do mencer caladas;
e o loito viaxaba nas paredes
coma carbón usado.
Estaba o amor ferido.
"Acoitelado na Espera", Alexandre Cribeiro
(Alexandre Cribeiro nasceu no dia 29 de Setembro de 1936. Morreu em 1995.)
e o loito viaxaba nas paredes
coma carbón usado.
Estaba o amor ferido.
"Acoitelado na Espera", Alexandre Cribeiro
(Alexandre Cribeiro nasceu no dia 29 de Setembro de 1936. Morreu em 1995.)
Quando as eleições eram livres e democráticas
Houve um tempo, a seguir ao 25 de Abril de 1974 e ao Verão Quente de 1975, em que as eleições corriam sempre bem, chovesse ou fizesse sol. Sobretudo as eleições autárquicas, que eram assim uma coisa mais maneirinha, mais caseira, mais privada, para não ir mais longe. Mas era geral. O mapa do País não interessava para nada, a logística era um pormenor, os cadernos eleitorais um mero adereço, as chapeladas as do costume mas gloriosamente ao contrário. Bebiam-se uns copos à boca das urnas e nas urnas propriamente ditas, fazia-se uma almoçarada com o pessoal de serviço de todos os partidos, que eram o PPD e o "da mãozinha" mais o gajo do PC que viera de fora e era um picuinhas e a senhora do CDS que era catequista e virgem segundo as últimas sondagens. O pai votava pelo filho que era tolinho e estava internado, o filho que era tolinho e estava internado votava pelo pai que já falecera, pai e filho votavam pela avó que se encontrava muito atacadinha e por isso não pôde ir, e depois a avó que se encontrava muito atacadinha ia e votava também. Havia quem votasse em dois lados, havia quem votasse duas ou três vezes no mesmo lado, havia quem votasse em dois partidos, e valia, havia quem votasse em quantas freguesias fosse preciso, era só dizer, havia quem quisesse e pudesse votar e não deixavam, havia quem se fizesse de ambulância, havia quem se fizesse de parvo, havia quem chamasse a polícia, havia quem chamasse o gregório agarrado ao garrafão levado pelo presidente da mesa a mando do presidente da junta. Chegada a hora das contas, ia-se aos cadernos e à acta, acrescentava-se aqui, desarriscava-se ali, rasgavam-se uns papéis, queimavam-se noves fora nada, o chato do PC também assinava, a beata do CDS amém, e no fim batia tudo certo. Podem crer: batia tudo certo.
As eleições eram do povo, eram, por assim dizer, um arraial libertário, mas cumpriam a função. Trafulhice, aquilo? Não. Bagatelas, pequenos truques de ilusionismo, alguns até bastante ingénuos e que geralmente acabavam por anular-se entre si e nem davam caso. Agora seria impossível que tal acontecesse, com a experiência burocrática entretanto adquirida, com o rigor vigente e o cada vez mais apertado controlo nos actos eleitorais, com os doutores a tomarem conta. Acabou-se o descaramento, isso é verdade. Agora os cambalachos fazem-se pelo soleno...
As eleições eram do povo, eram, por assim dizer, um arraial libertário, mas cumpriam a função. Trafulhice, aquilo? Não. Bagatelas, pequenos truques de ilusionismo, alguns até bastante ingénuos e que geralmente acabavam por anular-se entre si e nem davam caso. Agora seria impossível que tal acontecesse, com a experiência burocrática entretanto adquirida, com o rigor vigente e o cada vez mais apertado controlo nos actos eleitorais, com os doutores a tomarem conta. Acabou-se o descaramento, isso é verdade. Agora os cambalachos fazem-se pelo soleno...
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
À batatada
Há muito que andavam esquinudos. Um dia sentaram-se à mesa, barafustaram-se, cresceram-se, amansaram-se, tomaram-se de palavras espertas e resolveram tudo à batatada. Com bacalhau.
Manuel Casado Nieto 3
Soño
Unha noite no muiño,
unha sola... quén me dera!
"Canta de Lonxe o Corazón do Tempo", Manuel Casado Nieto
(Manuel Casado Nieto nasceu no dia 28 de Setembro de 1912. Morreu em 1983.)
Unha noite no muiño,
unha sola... quén me dera!
"Canta de Lonxe o Corazón do Tempo", Manuel Casado Nieto
(Manuel Casado Nieto nasceu no dia 28 de Setembro de 1912. Morreu em 1983.)
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Soño
António Jacinto 7
Era uma vez...
Vovô Bartolomé, ao sol que se coava da mulembeira
por sobre a entrada da casa de chapa,
enlanguescido em carcomida cadeira
vivia
- relembrando-a -
a história de Teresa mulata
Teresa Mulata!
essa mulata Teresa
tirada lá do sobrado
por um preto d'Ambaca
bem vestido,
bem falante,
escrevendo que nem nos livros!
Teresa Mulata
- alumbramento de muito moço -
pegada por um pobre d'Ambaca
fez passar muitas conversas
andou na boca de donos e donas...
Quê da mulata Teresa?
A história da Teresa mulata...
Hum...
Vovô Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu
o sol se coando da mulembeira veio brincar com as moscas nos lábios ressequidos que sorriem
Chiu! Vovô tá dormindo!
... O moço d'Ambaca sonhando...
António Jacinto
(António Jacinto nasceu no dia 28 de Setembro de 1924. Morreu em 1991.)
Vovô Bartolomé, ao sol que se coava da mulembeira
por sobre a entrada da casa de chapa,
enlanguescido em carcomida cadeira
vivia
- relembrando-a -
a história de Teresa mulata
Teresa Mulata!
essa mulata Teresa
tirada lá do sobrado
por um preto d'Ambaca
bem vestido,
bem falante,
escrevendo que nem nos livros!
Teresa Mulata
- alumbramento de muito moço -
pegada por um pobre d'Ambaca
fez passar muitas conversas
andou na boca de donos e donas...
Quê da mulata Teresa?
A história da Teresa mulata...
Hum...
Vovô Bartolomé enlanguescido em carcomida cadeira adormeceu
o sol se coando da mulembeira veio brincar com as moscas nos lábios ressequidos que sorriem
Chiu! Vovô tá dormindo!
... O moço d'Ambaca sonhando...
António Jacinto
(António Jacinto nasceu no dia 28 de Setembro de 1924. Morreu em 1991.)
quinta-feira, 26 de setembro de 2019
Abaixo de Braga
Mandaram-no abaixo de Braga e ele foi. Quando chegou a Celeirós, telefonou a perguntar se já chegava.
Bernardino Graña 3
Soño-vento
O vento aquel da ruindade
ama securas, cavorcos,
separacións, pardiñeiros,
resoares de voz de choro.
Inxectoume un pesadelo,
negror de río de noite:
"Afúndese o mundo todo,
demolicións, tristes golpes,
amor en sangue perdido...
O canto faise balbordo."
Mais xa pasou. Vén o abrente
nun sol que renace morno.
Desperto. Ti estás enteira
en ondas de doces roupas.
Non es aquel vento, es man
lene e quente no meu colo.
Navegas nun rir dos ollos.
E vou neles, nos teus labios
máis mornos que o sol, gloriosos.
E o vento aquel do mal soño
xa vai no seu lonxe, morto.
"Himno verde", Bernardino Graña
(Bernardino Graña nasceu no dia 27 de Setembro de 1932)
O vento aquel da ruindade
ama securas, cavorcos,
separacións, pardiñeiros,
resoares de voz de choro.
Inxectoume un pesadelo,
negror de río de noite:
"Afúndese o mundo todo,
demolicións, tristes golpes,
amor en sangue perdido...
O canto faise balbordo."
Mais xa pasou. Vén o abrente
nun sol que renace morno.
Desperto. Ti estás enteira
en ondas de doces roupas.
Non es aquel vento, es man
lene e quente no meu colo.
Navegas nun rir dos ollos.
E vou neles, nos teus labios
máis mornos que o sol, gloriosos.
E o vento aquel do mal soño
xa vai no seu lonxe, morto.
"Himno verde", Bernardino Graña
(Bernardino Graña nasceu no dia 27 de Setembro de 1932)
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Poesias completas e praticamente reunidas (vol. XI)
Suores
Tinha suores
frios no Verão
e quentes no Inverno.
O que lhe era
deveras conveniente.
O reclamador
Reclamava Camões
reclamava Pessoa
reclamava Sophia
reclamava Eugénio
reclamava Drummond
reclamava Vinicius
reclamava Baudelaire
reclamava Lorca
e reclamava Neruda.
Reclamava até Eliot
e Shakespeare.
Era
enfim
um grande reclamador.
Futuro
Tinha um futuro perfeito.
Mas não:
queria um futuro melhor...
Conflito
Era parte
interessada.
E outra parte
não.
A raiz ao pensamento
Quando o poeta disse
"Não há machado que corte",
trouxeram-lhe uma serra.
Um toque de
O rectal
pertence
à classe
dos toques.
É
portanto
um toque de
classe.
Quem dá e torna a tirar
Deu o corpo
ao manifesto
arrependeu-se
e pediu-o de volta.
Tarde piou.
Quem dá e torna a tirar
ao inferno vai parar...
O senhor do monte
Era uma alma
sensível e só.
Comovia-se com a natureza.
Gostava de subir
ao monte
para ver as vistas.
E ouvir as audições.
E cheirar os olfactos...
Graças a Deus
Quando o poeta disse
"É preciso acreditar",
a plateia respondeu
"Amém"...
Tinha suores
frios no Verão
e quentes no Inverno.
O que lhe era
deveras conveniente.
O reclamador
Reclamava Camões
reclamava Pessoa
reclamava Sophia
reclamava Eugénio
reclamava Drummond
reclamava Vinicius
reclamava Baudelaire
reclamava Lorca
e reclamava Neruda.
Reclamava até Eliot
e Shakespeare.
Era
enfim
um grande reclamador.
Futuro
Tinha um futuro perfeito.
Mas não:
queria um futuro melhor...
Conflito
Era parte
interessada.
E outra parte
não.
A raiz ao pensamento
Quando o poeta disse
"Não há machado que corte",
trouxeram-lhe uma serra.
Um toque de
O rectal
pertence
à classe
dos toques.
É
portanto
um toque de
classe.
Quem dá e torna a tirar
Deu o corpo
ao manifesto
arrependeu-se
e pediu-o de volta.
Tarde piou.
Quem dá e torna a tirar
ao inferno vai parar...
O senhor do monte
Era uma alma
sensível e só.
Comovia-se com a natureza.
Gostava de subir
ao monte
para ver as vistas.
E ouvir as audições.
E cheirar os olfactos...
Graças a Deus
Quando o poeta disse
"É preciso acreditar",
a plateia respondeu
"Amém"...
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
O maior defeito
- O meu maior defeito? - enfatizou o político -, sou muito exigente e perfeccionista, confesso.
Microcontos & outras miudezas 171
Sexta-feira 13
Ano de 2019. Dois mais zero é dois, mais um é três. É claro: três! Três mais nove é doze, noves fora três. Três, estão a ver?! Zero mais um é um e mais nove é dez, noves fora um. Um, evidentemente! Dois mais nove é onze, noves fora dois, e, curiosamente, nove mais dois é onze, noves fora dois. Atenção, dois! Temos, portanto, dois, zero, um e nove, mais três, mais doze, mais dez, mais onze, o que dá quarenta e oito, quatro e oito doze, noves fora três. Três, eu avisei! Mais revelador ainda: o contrário de 2019 é 9102, some-se-lhe, por exemplo, 898 e dá exactamente 10000. Dez mil certos! O que é extraordinário. Agora, sexta-feira 13. Seis mais um é sete, sete mais três é dez, noves fora um. Cá estamos, um! Seis mais três é nove, noves fora nada. Nada! Seis mais treze é dezanove, um mais nove é dez, noves fora um. Cuidado! Um mais três é quatro, adicione-se-lhe um número qualquer ao acaso, seja 9994, e dá exactamente 10000. Brrr!... Isto realmente anda tudo ligado.
Lapidar
Era uma pessoa com uma extraordinária experiência de vida. E dizia: "Morrer só custa da primeira vez".
Sunset
O dia em que morreu foi um dos melhores dias da sua vida. No velório até disse aos amigos: - Temos de fazer isto mais vezes...
Como um passarinho
Morreu como um passarinho. Abatido a tiro.
Bravo!
Morreu tão bem, que a família pediu bis.
O ambientador
Era a gentileza em pessoa. Onde quer que estivesse ou chegasse, criava sempre bom ambiente. Cheirava a alfazema...
Penteando macacos
Mandaram-no pentear macacos e ele foi. Começou por baixo, evidentemente, mas já é cabeleireiro-chefe em Gibraltar.
Ano de 2019. Dois mais zero é dois, mais um é três. É claro: três! Três mais nove é doze, noves fora três. Três, estão a ver?! Zero mais um é um e mais nove é dez, noves fora um. Um, evidentemente! Dois mais nove é onze, noves fora dois, e, curiosamente, nove mais dois é onze, noves fora dois. Atenção, dois! Temos, portanto, dois, zero, um e nove, mais três, mais doze, mais dez, mais onze, o que dá quarenta e oito, quatro e oito doze, noves fora três. Três, eu avisei! Mais revelador ainda: o contrário de 2019 é 9102, some-se-lhe, por exemplo, 898 e dá exactamente 10000. Dez mil certos! O que é extraordinário. Agora, sexta-feira 13. Seis mais um é sete, sete mais três é dez, noves fora um. Cá estamos, um! Seis mais três é nove, noves fora nada. Nada! Seis mais treze é dezanove, um mais nove é dez, noves fora um. Cuidado! Um mais três é quatro, adicione-se-lhe um número qualquer ao acaso, seja 9994, e dá exactamente 10000. Brrr!... Isto realmente anda tudo ligado.
Lapidar
Era uma pessoa com uma extraordinária experiência de vida. E dizia: "Morrer só custa da primeira vez".
Sunset
O dia em que morreu foi um dos melhores dias da sua vida. No velório até disse aos amigos: - Temos de fazer isto mais vezes...
Como um passarinho
Morreu como um passarinho. Abatido a tiro.
Bravo!
Morreu tão bem, que a família pediu bis.
O ambientador
Era a gentileza em pessoa. Onde quer que estivesse ou chegasse, criava sempre bom ambiente. Cheirava a alfazema...
Penteando macacos
Mandaram-no pentear macacos e ele foi. Começou por baixo, evidentemente, mas já é cabeleireiro-chefe em Gibraltar.
terça-feira, 24 de setembro de 2019
Augusto Casas 4
Vai o rio Miño
coa Lúa da man.
A noite está leda
e van a bailar.
A soma do monte
í-o arume do val,
as frores das ondas,
as pedras do chan,
a terra í-o ceo
a roda lle fan.
"Cantigas da Noite Moza", Augusto Casas
(Augusto Casas nasceu no dia 25 de Setembro de 1906. Morreu em 1973.)
coa Lúa da man.
A noite está leda
e van a bailar.
A soma do monte
í-o arume do val,
as frores das ondas,
as pedras do chan,
a terra í-o ceo
a roda lle fan.
"Cantigas da Noite Moza", Augusto Casas
(Augusto Casas nasceu no dia 25 de Setembro de 1906. Morreu em 1973.)
Daniel Pernas Nieto 5
A Naiciña d'os Remedios
N-a fala da musa miña
e d'os versos n'as rudeces
hai unha frol sin espiña,
remanso pr'o que camiña
d'este mundo entre fraqueces.
Solece. Pelra orballada,
po-lo respiro d'aurora,
feitura d'o Ben, amada
d'as estrelas, coroada,
a que d'o mundo é Señora.
Doíña; bágoa d'o Ceo,
tola d’amores, sin lixo
prendeo a Dios n-o seu seo,
co-as cordas d'aquel deseo
de querer canto Dios quixo.
Pech'a noite d'o pecado,
trem-a lus, i-o novo día
esquence tempo pasado
que s'amosa enguedellado
tras a impiedade qu'espía.
E mentras qu'aló lapea
en fogueiradas o Sol,
ten d'abondo quen non cea,
quen nos seus ollos estea,
sendo d'o mund'o remol.
A Dona, pomba sinxela,
trocou con Dios un biquiño,
i-en Nazaret unha estrela
olla o carreiro qu'ourela...
i-a Nai quedou n-o camiño.
"Fala das Musas e Outros Poemas", Daniel Pernas Nieto
(Daniel Pernas Nieto nasceu no dia 25 de Setembro de 1884. Morreu em 1946.)
N-a fala da musa miña
e d'os versos n'as rudeces
hai unha frol sin espiña,
remanso pr'o que camiña
d'este mundo entre fraqueces.
Solece. Pelra orballada,
po-lo respiro d'aurora,
feitura d'o Ben, amada
d'as estrelas, coroada,
a que d'o mundo é Señora.
Doíña; bágoa d'o Ceo,
tola d’amores, sin lixo
prendeo a Dios n-o seu seo,
co-as cordas d'aquel deseo
de querer canto Dios quixo.
Pech'a noite d'o pecado,
trem-a lus, i-o novo día
esquence tempo pasado
que s'amosa enguedellado
tras a impiedade qu'espía.
E mentras qu'aló lapea
en fogueiradas o Sol,
ten d'abondo quen non cea,
quen nos seus ollos estea,
sendo d'o mund'o remol.
A Dona, pomba sinxela,
trocou con Dios un biquiño,
i-en Nazaret unha estrela
olla o carreiro qu'ourela...
i-a Nai quedou n-o camiño.
"Fala das Musas e Outros Poemas", Daniel Pernas Nieto
(Daniel Pernas Nieto nasceu no dia 25 de Setembro de 1884. Morreu em 1946.)
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segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Carlos Pimentel 3
Pioneiro vencedor
Doido me chamaram
sem loucura, sou criança
nas trincheiras
na fome, tomando homem
no combate, ensinado
Doido me chamaram
sem loucura
aprendi
cortando o espaço
ganhei
morrendo no tempo
e sobrevivo
nas trincheiras
africano
pioneiro
sempre pioneiro vencedor
"Tijolo a Tijolo", Carlos Pimentel
(Carlos Pimentel nasceu no dia 24 de Setembro de 1944. Morreu em 2016.)
Doido me chamaram
sem loucura, sou criança
nas trincheiras
na fome, tomando homem
no combate, ensinado
Doido me chamaram
sem loucura
aprendi
cortando o espaço
ganhei
morrendo no tempo
e sobrevivo
nas trincheiras
africano
pioneiro
sempre pioneiro vencedor
"Tijolo a Tijolo", Carlos Pimentel
(Carlos Pimentel nasceu no dia 24 de Setembro de 1944. Morreu em 2016.)
Augusto, o imperador da botinha amarela
Depois de ter sido o primeiro imperador romano e de ter imperado com toda a pertinácia durante 41 anos, menos sete do que o fascismo português, e
depois de ter morrido faz hoje exactamente 2005 anos, Augusto, também
conhecido como Caio Otávio ou Caio Júlio César Otaviano, apareceu em
Fafe de chuteiras amarelas ou vermelhas, consoante, fazendo-se passar
por defesa direito. Estávamos às portas do 25 de Abril de 1974 e era
ainda tempo de botas negras. Menos o Augusto, que ia ao secador todos os
dias e disfarçava muito mal como jogador de futebol.
A augusta figura coincidiu na AD Fafe com memoráveis jogadores como Zé Maria, Neto, Costa, Leitão, Cláudio, Ismael, Martinho, Cândido, Manuel Duarte, Nino, Testas, Alfredo, Daniel Lopes ou Valença, recém-tornado do Ultramar. Só Augusto destoava, quer-se dizer.
No entanto, apesar daquele aspecto colorido e aprumadinho, Augusto, não sendo génio, era genioso. Uma vez, num "amigável" com o Vitória de Guimarães, pegou-se à pancada tenho na ideia que com o Romeu, que também era de gancho e acabou por jogar mais tarde no Benfica, no Porto e no Sporting. O Augusto, não.
As chuteiras de Augusto estavam muito à frente do seu tempo, como hoje se sabe. E o cabelo de Augusto marcou uma época em Fafe. Na época seguinte, de facto, Augusto foi enganar para outro lado. Em Barcelos, no Gil Vicente, e depois disso a História perdeu-lhe o rasto.
P.S. - Publicado no passado dia 19 de Agosto. Augusto, o imperador romano, faria hoje 2082 anos se fosse vivo.
A augusta figura coincidiu na AD Fafe com memoráveis jogadores como Zé Maria, Neto, Costa, Leitão, Cláudio, Ismael, Martinho, Cândido, Manuel Duarte, Nino, Testas, Alfredo, Daniel Lopes ou Valença, recém-tornado do Ultramar. Só Augusto destoava, quer-se dizer.
No entanto, apesar daquele aspecto colorido e aprumadinho, Augusto, não sendo génio, era genioso. Uma vez, num "amigável" com o Vitória de Guimarães, pegou-se à pancada tenho na ideia que com o Romeu, que também era de gancho e acabou por jogar mais tarde no Benfica, no Porto e no Sporting. O Augusto, não.
As chuteiras de Augusto estavam muito à frente do seu tempo, como hoje se sabe. E o cabelo de Augusto marcou uma época em Fafe. Na época seguinte, de facto, Augusto foi enganar para outro lado. Em Barcelos, no Gil Vicente, e depois disso a História perdeu-lhe o rasto.
P.S. - Publicado no passado dia 19 de Agosto. Augusto, o imperador romano, faria hoje 2082 anos se fosse vivo.
domingo, 22 de setembro de 2019
O candidato e o microfone
Cansado de esperar pela sua vez, o candidato levantou-se e pediu o
microfone. Melhor dizendo: saltou da cadeira e exigiu o microfone,
porque ele é que é o candidato, o povo o que quer é ouvir o candidato e
blablablá paisano não ganha votos nem dá empregos. O candidato agarrou pois no microfone, coçou-lhe a
cabecinha com a unhaca da cera, soprou-lhe o pó num imenso perdigoto
e, sem mais delongas, dirigiu-se aos seus caríssimos e suspensíssimos
apoiantes, praticamente quinze e em transe:
- Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.
- Alô, chape, chape, um, dois. Um, dois, três, microfone, experiência. Chape, chape, um, dois. Um, dois, três, quatro, microfone...
E a multidão irrompeu em aplausos.
Abel Botelho 7
Devia de ser rapaz quem ele procurava; porque os olhos deste homem alto e seco poisavam de preferência nas faces imberbes, levemente penujosas, dos adolescentes. Fitava-os um instante, com uma fixidez gulosa e sombria, e desandava logo para outro lado. Percebia-se mesmo, ao cabo de alguns minutos de observação, que ele não procurava determinadamente alguém. Ao contrário, parecia comparar, confrontar, escolher. Se havia garotos por junto dos quais passava rápido, após um olhar furtivo, havia também outros a cuja descoberta lhe arrepanhava as faces a mais pungente sensualidade. E então, com estes, não havia meio que não empregasse para lhes ferir a atenção. Roçava-os de leve com o braço; tocava-lhes a coxa com a bengala, como distraído; postava-se-lhes ao lado, fitando-os com o olhar seco e vítreo, persistente; soprava-lhes na nuca uma baforada de fumo, ao passar. Todo este jogo, - é de saber -, feito sempre sonsamente, com cautelas de hipócrita, com astúcias felinas, todo sabiamente intervalado com olhares perscrutadores em torno... não fosse por aí aparecer e surpreendê-lo alguém conhecido.
E, de cada vez que o jovem interpelado se afastava, aborrecido ou indiferente, o noctívago caçador de efebos lá seguia em cata de outro, cortando os grupos, atravessando a rua, numa incoerência de vertigem, não se sabia bem se tiranizado por um vício secreto, se esmagado por uma feroz melancolia.
"O Barão de Lavos", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
E, de cada vez que o jovem interpelado se afastava, aborrecido ou indiferente, o noctívago caçador de efebos lá seguia em cata de outro, cortando os grupos, atravessando a rua, numa incoerência de vertigem, não se sabia bem se tiranizado por um vício secreto, se esmagado por uma feroz melancolia.
"O Barão de Lavos", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
Ora batatas
Antigamente as batatas eram batatas, e isso chegava. Eram batatas para todo o
serviço. Batatas unidas, iguais perante a lei, indiscriminadas, batatas universais.
Agora as batatas são apartadas, rotuladas, segregadas, apontadas a
dedo - nos minis, nos supers, nos hipers, nos macros e nos falsos
pomares de esquina: chamam-lhes batatas para fritar, chamam-lhes batatas para cozer, chamam-lhes batatas
para assar. E até faz jeito: olho para o saco, vejo "para cozer" e percebo logo que são óptimas para fritar...
Viagem de Circunvalação
O que mais se ouve dizer por estes dias, entre o Porto e Matosinhos, à porta dos liceus, nas galerias de arte, nos cafés, nas esquinas, nos autocarros, no metro e até nas trotinetas partilhadas, é: - Mas afinal quem foi esse Fernando Magalhães?...
sábado, 21 de setembro de 2019
Microcontos & outras miudezas 170
Salvemos a chita!
Convidaram a supermodelo, famosa, a participar no concurso do vestido de chita. "De chita? Jamais! Sou o mais possível contra a roupa feita com pele de animais!", declinou a supermodelo, famosa e irritada, com o mais possível de veemência e dois pontos de exclamação, como deve declinar uma supermodelo, famosa, irritada e activista, que se preze. "Preferia desfilar nua!", atirou, altiva, e era o terceiro ponto de exclamação, para acabar de vez com a conversa. "Também está bem", concordaram.
O requinte e o requente
A diferença entre requintado e requentado passa quase despercebida. No arroz de marisco é que se nota mais. E na sanita, consequentemente.
É isto, somos pó...
O médico mandou-o para o sanatório. Alguém leu mal o papel e levaram-no para o tanatório. Foi-lhe fatal.
Ao virar da esquina
A Felicidade estava sempre ao virar da esquina. Depois, pumba!, hospital...
Desconstrução civil
Perguntavam-lhe pela profissão e ele respondia, orgulhoso, "operário da desconstrução civil". Era um especialista, com efeito. Ele e mais dois camaradas chegavam, de marreta e pé-de-cabra, picareta pneumática e um ror de sonoras caralhadas, e num mês, mês e meio, escavacavam completamente uma casa, esvaziando-a de pavimentos, divisórias, tectos, portas, janelas, memórias e telhados. Só ficavam os alicerces ao baixo e as paredes exteriores ao alto. Depois vinham os outros, os da construção civil, e faziam mais um alojamento local.
Eles não sabiam que o sono
Dormia, por norma, dezasseis ou dezassete horas, consoante fossem dias ímpares ou pares, respectivamente. Ia ao emprego marcar o ponto de saída e era alvo de todas as críticas, atacado por patrões, colegas e até pelo sindicato. Defendia-se, filosoficamente: - Vocês não sabem que o sono é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer?...
Convidaram a supermodelo, famosa, a participar no concurso do vestido de chita. "De chita? Jamais! Sou o mais possível contra a roupa feita com pele de animais!", declinou a supermodelo, famosa e irritada, com o mais possível de veemência e dois pontos de exclamação, como deve declinar uma supermodelo, famosa, irritada e activista, que se preze. "Preferia desfilar nua!", atirou, altiva, e era o terceiro ponto de exclamação, para acabar de vez com a conversa. "Também está bem", concordaram.
O requinte e o requente
A diferença entre requintado e requentado passa quase despercebida. No arroz de marisco é que se nota mais. E na sanita, consequentemente.
É isto, somos pó...
O médico mandou-o para o sanatório. Alguém leu mal o papel e levaram-no para o tanatório. Foi-lhe fatal.
Ao virar da esquina
A Felicidade estava sempre ao virar da esquina. Depois, pumba!, hospital...
Desconstrução civil
Perguntavam-lhe pela profissão e ele respondia, orgulhoso, "operário da desconstrução civil". Era um especialista, com efeito. Ele e mais dois camaradas chegavam, de marreta e pé-de-cabra, picareta pneumática e um ror de sonoras caralhadas, e num mês, mês e meio, escavacavam completamente uma casa, esvaziando-a de pavimentos, divisórias, tectos, portas, janelas, memórias e telhados. Só ficavam os alicerces ao baixo e as paredes exteriores ao alto. Depois vinham os outros, os da construção civil, e faziam mais um alojamento local.
Eles não sabiam que o sono
Dormia, por norma, dezasseis ou dezassete horas, consoante fossem dias ímpares ou pares, respectivamente. Ia ao emprego marcar o ponto de saída e era alvo de todas as críticas, atacado por patrões, colegas e até pelo sindicato. Defendia-se, filosoficamente: - Vocês não sabem que o sono é uma constante da vida, tão concreta e definida como outra coisa qualquer?...
Político, honesto e poupado
Era um político tão honesto, tão honesto, que ainda tinha a honestidade por estrear.
sexta-feira, 20 de setembro de 2019
Herberto Sales 7
Im afraid of
Tenho medo de perder-te
e de, perdendo-te,
não mais te ver cavalgar sobre a relva úmida
em galope elástico e branco,
num ondular de ancas
brancas
de lua com maciez de jacintas.
Tenho medo de perder-te
e de, perdendo-te,
perder-me também
(irremediavelmente)
numa infecunda solidão floral:
sem o mel da polpa que o fruto oculta,
sem o pólen da rosa escarlate.
Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
Tenho medo de perder-te
e de, perdendo-te,
não mais te ver cavalgar sobre a relva úmida
em galope elástico e branco,
num ondular de ancas
brancas
de lua com maciez de jacintas.
Tenho medo de perder-te
e de, perdendo-te,
perder-me também
(irremediavelmente)
numa infecunda solidão floral:
sem o mel da polpa que o fruto oculta,
sem o pólen da rosa escarlate.
Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
quinta-feira, 19 de setembro de 2019
Sérgio Milliet 4
[Aranha enorme de ventre amarelo]
Aranha enorme de ventre amarelo
sai a lua da teia do arvoredo...
E as estrelas fogem com medo.
Sérgio Milliet
(Sérgio Milliet nasceu no dia 20 de Setembro de 1898. Morreu em 1966.)
Aranha enorme de ventre amarelo
sai a lua da teia do arvoredo...
E as estrelas fogem com medo.
Sérgio Milliet
(Sérgio Milliet nasceu no dia 20 de Setembro de 1898. Morreu em 1966.)
Noémia de Sousa 2
A Billie Holiday, cantora
Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.
E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.
E começava assim a canção:
"Into each heart some rain must fall..."
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...
Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares "blues", dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...
No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...
O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...
Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os "blues" eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,
e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!
Noémia de Sousa
(Noémia de Sousa nasceu no dia 20 de Setembro de 1926. Morreu em 2002.)
Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.
E então,
tua voz, minha irmã americana,
veio do ar, do nada nascida da própria escuridão...
Estranha, profunda, quente,
vazada em solidão.
E começava assim a canção:
"Into each heart some rain must fall..."
Começava assim
e era só melancolia
do princípio ao fim,
como se teus dias fossem sem sol
e a tua alma aí, sem alegria...
Tua voz irmã, no seu trágico sentimentalismo,
descendo e subindo,
chorando para logo, ainda trémula, começar rindo,
cantando no teu arrastado inglês crioulo
esses singulares "blues", dum fatalismo
rácico que faz doer
tua voz, não sei porque estranha magia,
arrastou para longe a minha solidão...
No quarto às escuras, eu já não estava só!
Com a tua voz, irmã americana, veio
todo o meu povo escravizado sem dó
por esse mundo fora, vivendo no medo, no receio
de tudo e de todos...
O meu povo ajudando a erguer impérios
e a ser excluído na vitória...
A viver, segregado, uma vida inglória,
de proscrito, de criminoso...
O meu povo transportando para a música, para a poesia,
os seus complexos, a sua tristeza inata, a sua insatisfação...
Billie Holiday, minha irmã americana,
continua cantando sempre, no teu jeito magoado
os "blues" eternos do nosso povo desgraçado...
Continua cantando, cantando, sempre cantando,
até que a humanidade egoísta ouça em ti a nossa voz,
e se volte enfim para nós,
mas com olhos de fraternidade e compreensão!
Noémia de Sousa
(Noémia de Sousa nasceu no dia 20 de Setembro de 1926. Morreu em 2002.)
Alberto de Lacerda 6
Regresso
Por toda a parte espectros
Do mapa percorrido em cinco e quarenta
Prolongados anos
A cidade encontra
O espectro do que eu fui
Saído dos horrores da adolescência
Filtra obscuramente
O meu imo
Que não conheço
Vem
irreconhecível
Ao meu encontro
Tacteamo-nos no escuro
Apaixonadamente
O amor é cego
Mas só ele permite
Realmente ver
"O Pajem Formidável dos Indícios", Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
Por toda a parte espectros
Do mapa percorrido em cinco e quarenta
Prolongados anos
A cidade encontra
O espectro do que eu fui
Saído dos horrores da adolescência
Filtra obscuramente
O meu imo
Que não conheço
Vem
irreconhecível
Ao meu encontro
Tacteamo-nos no escuro
Apaixonadamente
O amor é cego
Mas só ele permite
Realmente ver
"O Pajem Formidável dos Indícios", Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
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Silva Freire 4
o boi é rococó
- quer ver?
boi barroso
boi socado
boi barrito
boi barroco
Silva Freire, "Giro do couro cru"
(Silva Freire nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 1991.)
- quer ver?
boi barroso
boi socado
boi barrito
boi barroco
Silva Freire, "Giro do couro cru"
(Silva Freire nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 1991.)
Santos Moraes 3
O circo
Na praça antiga da Matriz havia
Um circo que chegara bem recente.
Eu, menino, julgava-o ingenuamente
O palácio encantado da alegria.
Todas as noites, coração ardente,
Àquele mundo de ilusões corria,
E rindo do palhaço eu me sentia
Um ser extraordinário de contente.
Hoje, o circo perdido na distância
Tantas vezes me vem da alma à tona
Que refloresce em mim a leda infância.
Encantamentos vãos que a mente afaga!
Sonhos que o peito avaro aprisiona
E o coração por alto preço os paga!
"Tempo e Espuma", Santos Moraes
(Santos Moraes nasceu no dia 20 de Setembro de 1920)
Na praça antiga da Matriz havia
Um circo que chegara bem recente.
Eu, menino, julgava-o ingenuamente
O palácio encantado da alegria.
Todas as noites, coração ardente,
Àquele mundo de ilusões corria,
E rindo do palhaço eu me sentia
Um ser extraordinário de contente.
Hoje, o circo perdido na distância
Tantas vezes me vem da alma à tona
Que refloresce em mim a leda infância.
Encantamentos vãos que a mente afaga!
Sonhos que o peito avaro aprisiona
E o coração por alto preço os paga!
"Tempo e Espuma", Santos Moraes
(Santos Moraes nasceu no dia 20 de Setembro de 1920)
quarta-feira, 18 de setembro de 2019
Ora bolas
Mandaram-no dar a volta ao bilhar grande e ele foi. "Bati o recorde?", perguntou no final.
Botar é a direito e um beber cívico
- Botas tu ou boto eu?
- Bota tu, mas bota de alto.
- Boto em consciência.
- Então bonda, que já esborda.
- E agora?
- Agora: dou-lhe um beijinho, mando-lhe uma pescoçada, e a seguir boto eu.
- Bota tu, mas bota de alto.
- Boto em consciência.
- Então bonda, que já esborda.
- E agora?
- Agora: dou-lhe um beijinho, mando-lhe uma pescoçada, e a seguir boto eu.
É hoje!, é hoje!...
Dezanove de Setembro, amanhecendo. A velha prostituta, muito limpa e
organizada, consultou a agenda praticamente vazia e leu baixinho,
soletrando, acariciando as sílabas uma a uma: - Dia do Ortopedista. Às 10h30.
E foi lavar-se.
E foi lavar-se.
Adeus, confrade, até outro dia
E agora, o que vai ser das nossas confrarias? Penso muito especialmente, com o coração pesado e não sem um amargo de boca, na Confraria Gastronómica da Região de Lafões, na Confraria da Carne Barrosã, na Confraria Gastronómica da Raça Arouquesa, na Confraria Gastronómica do Toiro Bravo ou, puxando a brasa à minha sardinha, na Confraria da Vitela Assada à Moda de Fafe, honradas confrarias que destaco ao acaso entre as cento e vinte e três mil novecentas e oitenta e sete confrarias gastronómicas de Portugal. E agora, o que vai ser daquelas fatiotas todas janotas? E dos pins? E das fitas? E dos chapéus tão pândegos? E dos sarrafos? E das tainadas quinzenais? E das viagenzinhas eventualmente de geminação, de preferência ao estrangeiro, sempre que possível ao Brasil, o que vai ser, agora?
Teremos sempre, graças a Deus, a Confraria de Nossa Senhora das Neves e a Confraria da Folha de Alface Repolhuda: mas terão estes dois oásis digamos confreiráticos condições para acolher pelo menos com o conforto devido a uma galinha pedrês os milhões de confrades e confreiras assim de repente despejados dos seus deveres e haveres por esse país fora, como se fossem bandidos, refugiados praticamente?
Estou bastante preocupado.
P.S. - Ciúmes, é o que se supõe. O reitor da Universidade de Coimbra, que também veste as suas roupinhas de festa, posto que mais recatadas, entre o padre e a viúva, rematadas na iluminada cabeça por uma borla com berloques, inveja a garridice carnavalesca das vestimentas das confrarias. Vai daí, faz-lhes a folha.
Já agora. A lengalenga, em Fafe, dizia-se assim: "Pelo sinal, bico real, comi toucinho no teu quintal, se mais me desses, mais eu comia, adeus, compadre, até outro dia."
Teremos sempre, graças a Deus, a Confraria de Nossa Senhora das Neves e a Confraria da Folha de Alface Repolhuda: mas terão estes dois oásis digamos confreiráticos condições para acolher pelo menos com o conforto devido a uma galinha pedrês os milhões de confrades e confreiras assim de repente despejados dos seus deveres e haveres por esse país fora, como se fossem bandidos, refugiados praticamente?
Estou bastante preocupado.
P.S. - Ciúmes, é o que se supõe. O reitor da Universidade de Coimbra, que também veste as suas roupinhas de festa, posto que mais recatadas, entre o padre e a viúva, rematadas na iluminada cabeça por uma borla com berloques, inveja a garridice carnavalesca das vestimentas das confrarias. Vai daí, faz-lhes a folha.
Já agora. A lengalenga, em Fafe, dizia-se assim: "Pelo sinal, bico real, comi toucinho no teu quintal, se mais me desses, mais eu comia, adeus, compadre, até outro dia."
terça-feira, 17 de setembro de 2019
Penteando macacos
Mandaram-no pentear macacos e ele foi. Começou por baixo, evidentemente, mas já é cabeleireiro-chefe em Gibraltar.
Vamos supor que somos amigos
- Vamos supor que eu ganhava as eleições...
- Mas tu vais concorrer?
- Não vou, mas vamos supor...
- Acho que estavas fodido.
- E aquele ordenadão, os subsídios, as mordomias correlativas, as negociatas, a reforma garantida e XXL, o emprego para a minha mulher, para o meu filho, para o meu tio solteiro e para os meu seis sobrinhos, e o conselho de administração do banco no pós-coisa?...
- Pensando melhor, parabéns. E não te esqueças dos amigos, quero dizer, não te esqueças de mim...
- Mas tu vais concorrer?
- Não vou, mas vamos supor...
- Acho que estavas fodido.
- E aquele ordenadão, os subsídios, as mordomias correlativas, as negociatas, a reforma garantida e XXL, o emprego para a minha mulher, para o meu filho, para o meu tio solteiro e para os meu seis sobrinhos, e o conselho de administração do banco no pós-coisa?...
- Pensando melhor, parabéns. E não te esqueças dos amigos, quero dizer, não te esqueças de mim...
O ambientador
Era a gentileza em pessoa. Onde quer que estivesse ou chegasse, criava sempre bom ambiente. Cheirava a alfazema...
segunda-feira, 16 de setembro de 2019
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