- Pai, vem da morte e vamos às perdizes.
Vejo a aurora, que tinge do seu rajo
de dente a dente a Serra de Soajo...
- Ciprestes, desatai-o das raízes!
- Este Inverno as perdizes estão em barda:
criaram-se as ninhadas sem granizo.
Vamos chumbar dos perdigões o guizo,
anda matar securas da espingarda.
A tua Holland... O animal de presa...
O azul brunido... Velha e como nova...
Bem a merecias a alegrar-te a cova.
Penou-te de saudades, com certeza.
Aqui a tens. Porque era ver-te, olhá-la,
sequer um dia que não fosse vê-la.
Olha deluz-se a derradeira estrela,
já folga a luz no lustra aqui da sala.
Trinta anos depois, caçar contigo,
e sempre conversando e à chalaça...
Mais que perdizes, hoje, melhor caça
É matar fomes do caçar antigo.
Ver-te sorrir à escapatória sonsa
da velha que não viu "perdiz nem chasco!"
E o Lorde a anunciá-la sob o fasco,
e tu lambendo o cigarrinho de onça...
Ó pai, se não vivias há trinta anos,
também há trinta eu não vivia, pai!
O sol, reacendido, vem e vai
divagando no aço inglês dos canos.
Ali, agora, o nosso amigo Lorde,
que tornou da raiz a laranjeira...
Dá aos queixos, marrado, na tojeira.
Vê cinco da bandada. Cinco morde.
O amigo espera. Vê. Petrificou-se.
Esperam as perdizes que medusa.
Vai lá tu só. Desacolcheta a blusa.
Secundaste a chumbada! Pai, que fouce!
Como na morte nem perdeste a mão
De pôr a Holland à cara e desfechar!
Na mesa o nosso Lorde o seu narrar,
E a vista, o faro, o tento e a paixão!
Tens sede... Oiço a chamar-nos uma fonte...
Vamos beber de borco, à antiga moda.
Sentemo-nos na relva, amando em roda,
ouvindo as idas falas do horizonte.
À moda muito nossa, de poetas...
Eu a falar de bulhas, bofetões,
a perdigões contando os esporões
e, sob a cauda, as régias pintas pretas.
À nossa moda antiga e hoje a mesma...
Traz-nos o vento lemes de penisco.
Desce a beber na fonte, agora, um pisco,
assustando os pauzinhos duma lesma.
E tu a perguntares dos meus estudos...
Que tal o meu Francês, o meu Latim?
"Ó pai, quando ao Latim, assim-assim..."
Ah! pai, que somos dois soluços mudos!
Lá vejo a nossa casa. Estás a vê-la?
O nosso tanque, a fonte, o laranjal?
E a Maria Velha, no quintal,
com um cesto de roupa e a estendê-la?
Ah! Meu pai, que até vejo pelos muros!
Lá te alcanço, da mesa à cabeceira.
Também deitando achas à lareira
(E todos nós, da vida tão seguros...)
A bica ali da fonte era de vento,
as perdizes, sequer embalsamadas,
o Lorde, sombra de asas afogadas,
falcão de frio e fome, o pensamento.
Ah! pai, que me repassam os nordestes,
que vejo além ferrugens de mil cruzes:
de dia, embora, palpitando luzes
e a palma de verdete dos ciprestes.
Tomaz de Figueiredo
(Tomaz de Figueiredo nasceu no dia 6 de Julho de 1902. Morreu em 1970.)
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