Foi desse germe de humanitarismo que nasceu Isaura, a escrava.
É o inverno de 1874. A tarde cai com o frio pronunciativo de geadas. Bernardo, que há mais de duas horas deixara Queluz, a terra do Conselheiro Lafaiete, cavalga por uma estrada sombria do interior mineiro, rumo a Ouro Preto. Já que a noite o apanha muito antes de chegar ao lar, resolve hospedar-se em uma fazenda. Aproxima-se da porteira do curral, já apeado, conduzindo o animal pelo cabresto. Uma cena de nefanda crueldade demove-o de transpor aquela cancela. O escritor tem de presenciar o gesto horripilante e monstruoso que sobremaneira o contrista e revolta.
A um canto do pátio, em frente à porta da senzala, está um preto velho, de costas nuas, amarado a um esteio. A cada chibatada do bacalhau já rubro de sangue, o mísero escravo deixa escapar um gemido, que não consegue abafar. Ao lado está uma outra vítima, uma inditosa mucama, de pulsos unidos pelos ferropéias, de fronte pendente, com os olhos cravados no chão, aguardando a sua vez.
O instante é de extrema atrocidade. O algoz, um português implacável e corpulento, banhado de suor, descarrega, com o peso dos grossos braços, a vergasta sobre o lombo indefeso do desgraçado.
Bernardo Guimarães, cuja presença ninguém nota, está gelado, não pela algidez da noite, porém pelo ignominioso ato de tortura e monstruosidade de que acaba de ser casualmente o indignado espectador. Monta de novo o seu alazão, ganha a estrada que há dez minutos deixara, e some-se nas trevas. Aquela casa é, na realidade, indigna para agasalhar um coração nobre e de substrução cristã, e uma alma afeita aos preceitos da liberdade!
"Assim Nasceu a Escrava Isaura", Armelim Guimarães
(Armelim Guimarães nasceu no dia 6 de Março de 1915. Morreu em 2004.)
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