domingo, 1 de janeiro de 2017

Onomástica, toponímia & outros nomes esquisitos 24

                                                                                                Foto Hernâni Von Doellinger

Os intelectuais. Percebo tudo o que eles dizem. E nunca sei do que é que falam.

Era uma mulher espectacular. Parecia um travesti. Estão a ver uma daquelas mulheres espectaculares, tão espectaculares que até parecem travestis? Ela era isso. Mas em mulher, definitivamente em mulher. Mulherão. Vi-me à rasca para segurar o maxilar inferior enquanto lhe tirava as medidas como quem não quer a coisa, e à distância. Até que pousei os olhos na ganga.
Levantei os olhos da ganga e atravessei a esplanada o mais discretamente possível, andando às arrecuas para ninguém suspeitar de que eu ia ter com ela, abalroei uma mesa e três cadeiras, obviamente para disfarçar, accionei o modo de visão periférica, aproximei-me do alvo sem colocar em causa a minha própria segurança e avisei-a ao ouvido, quase num sussurro, mais segredo era impossível:
- A senhora desculpe, não deve ter reparado, mas tem as calças deveras rotas nos joelhos. E, agora que estou aqui à beira, verifico que também estão razoavelmente esgaçadas nas coxas. Caiu?...
Ui, levei uma data que nem queiram saber. E em versão megafónica. Eu, que só queria ajudar...

Eu, que só quero ajudar... (ou uma história de acentos). Era um rapaz dos seus 16-17 anos, se calhar 15 ou 18, ou 13, nunca fui bom nisto. Encarei o meu melhor sorriso e chamei o rapaz à atenção:
- O caro jovem fará o favor de me desculpar, não deve ter reparado, mas acontece que tem as calças a caírem-lhe, com licença, pelo cu abaixo. Vêem-se-lhe as cuecas inteiras, são de marca e ficam-llhe muito bem, é verdade. Às tantas, porém, se não lhes deita a mão, as calças arriam-se-lhe até aos artelhos, o caro jovem enrodilha-se nelas e ainda dá um tombo dos antigos, com consequências que lamentavelmente poderão redundar em consideráveis danos físicos e materiais.
O rapaz, talvez 19 anos, ou 12, não sei, olhou-me da cabeça aos pés com assinalável fastio, viu-me o cabelo branco e desorganizado, a barba grisalha de mês e meio, a mochila desengonçada às costas de uma T-shirt que há muito, muito tempo foi azul, as calças de fato-treino de cor incerta e largas como as dos palhaços, as sapatilhas brancas, a esquerda furada na biqueira (eram do meu filho), tentou adivinhar-me a idade e deve ter acertado em cheio, lançou o cigarro ao chão, o escarro seguiu o mesmo caminho, e respondeu-me um cagasésimo de segundo antes de me virar costas:
- Vai-te foder, ó velho do caralho...
Francamente, o que é que o rapaz pretenderia dizer com aquilo? Eu, que só quero ajudar...

(Moral da história: chama-se a atenção quando se pretende despertar interesse ou curiosidade, quando se quer dar nas vistas; chama-se à atenção quando se deseja fazer uma crítica ou algum reparo. É. Os acentos fazem uma certa e determinada diferença.)  

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