No tempo em que Fafe era o Largo com árvores e a covid-19 ainda
não tinha sido inventada, a Senhora de Antime e "os" 16 de Maio eram
festas de rebimba o malho. Havia de tudo: cestinhas, aviões, carrinhos
de choque, carrossel, farturas, fome, apalpões às moças, estaladas de
resposta, barracas de matraquilhos com jukebox, poço da morte,
mulher-serpente, água fresca com longínquo sabor a limão e açúcar
amarelo, parrecas e rebuçados, procissões, promessas, anho assado no
forno, corridas de jericos e pilas. Pilas principalmente.
O bom povo de Fafe jogava ao quino, pelo Natal, no Peludo. Jogavam maus
meninos bem, todo o ano, toda a noite, no Club Fafense, desperdiçando
sorrateiras fortunas de berço. Jogavam os novos cavalheiros da
indústria, desalinhados e ricos a estrear, toda a noite, todo o ano, no
Fernando da Sede, de porta respeitosamente fechada. Para entrar era
preciso saber o santo-e-senha. Eu sabia, entrava, mas não jogava.
Jogava-se aos pinhões em casa, jogava-se ao bilhar, ao dominó, aos flippers,
à sueca, à lerpa, às copas, ao sete e meio, ao montinho e à malha em
todo o lado, a dinheiro, a cerveja ou a vinho, e até se jogava ao pau e à
bola, mas isso já era para predestinados. Em Fafe jogava-se forte e
feio. A tudo. Mas o pilas estava à frente. E na Senhora de Antime era
fatal. E nos 16 de Maio também. E não tenho a certeza se no Corpo de
Deus amém.
O Serafim Lamelas é que era o verdadeiro homem do pilas - a História
nunca o poderá negar. O Serafim Lamelas era o nosso Stanley Ho e também
um bocadinho o nosso Vito Corleone. Tinha a sua famiglia. Montava
casino em todas as festas, grandes feiras e romarias da região,
bastavam-lhe uma esquina, uma quelha, um desvão de escada, onde calhasse
e parecesse invisível. O Senhor Serafim reconhecia-me e respeitava-me,
sendo eu apenas miúdo, mas sabendo ele de quem.
O pilas é, para quem eventualmente o ignore, um jogo de mesa e de rua,
de sorte e azar. Sorte para o banqueiro, azar para o apostador. Regra
geral. É também um jogo evidentemente proibido, e por isso é que se
jogava tanto. Os músicos das bandas filarmónicas eram naquele
antigamente os melhores clientes do pilas, mas eu estaria capaz de jurar
que muitas das vezes eles andariam por ali feitos com a casa, só para
chamar patos.
O casino do Serafim consistia num resumido cavalete manufacturado com
ripas de madeira ultraleve sobre o qual era estendido, a modos de tampo,
um cartão, um papelão, um papel qualquer, uma toalha de mesa, sempre
que possível um rectângulo em cabedal, tudo material facilmente
dobrável, enrolável e sobretudo escondível.
O tampo estava dividido em quadradinhos pintados e numerados de 1 a 6
com tinta vermelha e de uma forma que parecia intencionalmente tosca ou
então andaria ali a mão de Picasso. Apostava-se num número apenas,
"singelo", ou dividia-se a aposta por dois números ou até por quatro, se
bem me lembro, bastando para isso colocar o dinheiro da aposta em cima
das setinhas que indicavam as múltiplas.
Havia depois o copo de plástico, dos de lavar os dentes, e o dado,
provavelmente amestrado, que saíam como que por magia de um dos bolsos
interiores do larguíssimo casaco do Serafim. O copo era agitado por mãos
experimentadas, rápidas e enganadoras, virado ao contrário, suspense,
saía o dado cansado, gasto, desilusão, este já está, não há nada para
ninguém, só para mim, nova corrida, nova viagem. O Serafim era ainda o
nosso Luís de Matos.
O imenso casaco do Serafim Lamelas servia também para guardar o dinheiro
da banca, num enchumaço que engrossava cada vez mais. E ninguém me tira
da ideia: lá dentro estavam escondidas navalhas, pistolas e até
metralhadoras, daquelas de carregadores redondos.
Aquando da Senhora de Antime ou pelos 16 de Maio, que eram dois dias, e
daí decerto tão singular plural, o Serafim chegou a instalar-se
encostadinho às escadas da Arcada, do lado mais esquerdo de quem desce,
curiosamente o local onde ele e a mulher tinham lugar de feira, às
quartas. Os jogadores apareciam ali num repente, como moscas não se sabe
vindas donde. Amagotavam-se à volta da mesa, numa arriscada luta de
cotovelos encasacados, nervosos, cheios de vício e de pressa, um olho
nos números e o outro nas costas, não se desse o caso. O Serafim, que
tinha mais olhos do que o Bruno de Carvalho, soberano no lugar de honra,
reclamando espaço para a função, exibia molhos de notas dobradas no
meio dos dedos lestos e, para desviar atenções, exercitava a lábia,
muita lábia, debitando ladainhas encantatórias. Os seus lugares-tenentes
à coca, um em cada dobrar de rua, tomando conta da polícia, que estava
careca de saber daquilo tudo. Um polícia chegava a correr, dizia, num
susto, "Vinte escudos no 3, rápido, rápido!", saía o 3, mas é claro que
saía o 3, e o polícia desaparecia dali com os bolsos cheios e como se
nunca lá tivesse estado.
Se a polícia fosse a sério, o Lamelas e seus acólitos desmontavam a
banca num relâmpago e evaporavam-se com todo o dinheiro que estivesse em
cima da mesa. Quando o dia estava a correr mal, faziam este número as
vezes que lhes desse jeito. Fingiam que fugiam e mudavam de poiso. E os
clientes ficavam num desconsolo burgesso, sem os cinquenta paus da quase
aposta, sem o prémio que agora é que era e, não vamos mais longe,
porventura também sem a carteira. Era um golpe bem ensaiado. E cinquenta
escudos davam realmente para muito vinho naquela altura. Uma tragédia!
Outras vezes, por malandragem, era comum ouvir-se gritar de cima da
Arcada, anonimamente, "Olha a polícia!", só para se meterem com o
Serafim, e o Serafim, molageiro, aproveitava a deixa ou não, consoante
sentisse o enchumaço do supercasaco.
Embora possa parecer que não, o pilas era um jogo muito completo. Para
além do Lamelas e dos seus soldados, do cavalete e dos números, do copo e
do dado, da polícia e do engano, revestia-se amiúde de pancadaria,
navalhadas e tiros. Mortes, não posso jurar.
Eu joguei uma vez ao pilas. Em adulto praticamente. Apostei cinco
coroas, mas partidas ao meio para dois números. Saíram-me cinco coroas.
Do bolso.
P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Maio de 2020. Esta é uma repetição antipandémica - isto é, contra o esquecimento.
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