quarta-feira, 17 de junho de 2020

Os Calvários de Fafe

Seminário de Braga. Lembro-me de uma Páscoa e a memória até é fácil - foi em 1974 e no sábado do Domingo de Ramos havia Festival da Eurovisão em Brighton, Reino Unido. Era a grande noite, a verdadeira, tempos outros. Os nossos "superiores", como impunham que lhes chamássemos, deixaram-nos ir para a sala da televisão: muito compostos, bico calado, ouvimos as cantigas a preto e branco. Paulo de Carvalho cantou "E Depois do Adeus". Esteve bem, muito bem, Paulo de Carvalho nunca soube cantar mal. Para mim, Portugal ia ganhar. Sem espinhas. Preparei-me para o melhor.
Só que. Já disse: era seminário, Braga e Semana Santa, véspera à noite do Domingo de Ramos. Portanto: só que, na hora da votação, a parte mais emocionante, os do orfeão, à inapelável voz de comando, tocados como gado, desatámos a descer por umas escadas de que nem sabíamos e, num lampo, chegámos à rua. Ia passar a procissão. O Paulo de Carvalho que nos desculpasse, mas era a nossa vez de cantar. O estrado com degraus estava montado logo ao pé da porta, no cantinho do Largo de Santiago, defronte do Governo Civil. Cantámos o "Miserere", como mandava a tradição. E era digno de ser ouvido, minhas senhoras e meus senhores: nós cantávamos a cores.
Cantámos numa fervurinha mas como querubins, como querubins apressados, a procissão parou e passou, em nome do Pai do Filho e do Espírito Santo amém, e toca a galgar a escadaria (que já não era secreta) com o coração aos saltos, quem é que ganhou, quem é que ganhou, mas afinal quem é que ganhou? Foi o Paulo de Carvalho? Foi Portugal? Evidentemente que foi Portugal. Ganhámos, de certeza que ganhámos...

(Ao contrário do que alguém possa ainda pensar, por causa da história das senhas radiofónicas do 25 de Abril, "E Depois do Adeus" é apenas uma notável balada de dor de corno, sem qualquer submensagem política. Muito bem cantada, isso sim, letra de José Niza e com uma orquestração - do maestro José Calvário, também autor da excelentíssima música - do melhor que alguma vez se fez ou virá a fazer no nosso país.)

Mas não. Não ganhámos. Portugal não ganhou e Paulo de Carvalho também não. Ganharam os Abba, com "Waterloo". A nossa canção, "E Depois do Adeus", desenrascou apenas três pontos e ficou em último lugar, empatada com a Alemanha, a Suíça e a Noruega. E vá lá, que a companhia podia ser pior...

Os três parágrafos acima pertencem a um texto um bocadinho mais comprido que publiquei originalmente no dia 30 de Março de 2013, aliás padecente de algumas imprecisões entretanto corrigidas. O assunto era então o bracarense "Miserere" pascal. Hoje o motivo de memória é outro: o maestro José Calvário, que morreu no dia 17 de Junho de 2009, com apenas 58 anos. Extraordinária figura, conhecido sobretudo da televisão, cheguei a vê-lo algumas vezes em Fafe, o que me enchia de orgulho e emoção. Eu era fã, sabia-o de cor. Via-o a passar de carro, sem parar e evidentemente sem me reparar, mas para mim bastava. A família - "os Calvários", que creio que eram do Porto - tinha uma fábrica em Fafe, na Recta, actual Avenida de São Jorge, um pouco depois da Parefa, como quem vai para Armil sem cruzamentos rotundos e semáforos preguiçosos. Eu ligava aquela gente, não sei dizer porquê, ao Jardim do Calvário, e por isso achava que eles, apesar de ricos, famosos, distantes e inacessíveis, também eram dos nossos, embora todas as noites fossem dormir a casa, pelo menos nunca se me constou o contrário. A fábrica chamava-se Coral, Malhas Coral, espero não estar a dizer asneira, ou então sonhei isto tudo.

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