Antes que o mundo acabe
O mundo vai acabar amanhã, domingo, dia 21 de Junho de 2020. Depois de 21 de Maio e 21 de Outubro de 2011, depois de 21 de Dezembro de 2012 e depois de 20 de Setembro de 2017, só nos últimos tempos, o mundo torna a acabar amanhã, mas não sei dizer precisamente a que horas. Pelas contas do alegado cientista alegadamente norte-americano Paolo Tagaloguin, que decerto nem existe, deste vez é que é. Foi o que ele disse aos seus discípulos. E eu só quero que ninguém se aleije. Mas não ficou claro, pelo menos para mim,
se o fim do mundo é o fim da América, porque, para os americanos, a
América é o mundo, ou se nos toca a todos, incluindo o principado de
Sealand e essa pequena adjacência chamada China.
Antes
que o mundo acabe, quero, porém, esclarecer o seguinte: bacalhau à
espanhola não é caldeirada de bacalhau, tão-pouco ensopado de bacalhau.
Bacalhau à espanhola é um prato que pede azeite e não água. É quase um
guisado, de molho grosso e aveludado, e com o tempero apurado até aos
limites legais de sal, pimenta, alho, louro e salsa. Por
mim, também malagueta. Colorau, um nada só para dar cor. E, tomem nota, o pimento e
o tomate são duas desnecessidades usadas apenas por quem pensa, mas não
sabe, que só assim é que é "à espanhola". Erro crasso. O bacalhau à
espanhola é à portuguesa!
O bacalhau até pode ser de quarto,
daquele que, inteiro, não mede mais do que um palmo. E pode ser pouco.
Não faz diferença nenhuma. O importante é o gosto que o bacalhau
empresta, o equilíbrio do tempero geral, a consistência
da molhanga. Quando eu era pequeno e os tempos eram de pobreza como os
de agora, a minha mãe fazia um bacalhau à espanhola a que, honestamente, chamava batatas à espanhola. E vocês não fazem
ideia do que perderam por nunca terem provado as batatas à espanhola da
minha mãe...
E pronto, era isto. O mundo já pode acabar. Estou preparado, enfim de
consciência tranquila. Andava com esta espinha atravessada na garganta, mas está o assunto resolvido. E agora, se me dão
licença, vou à cozinha salgar uns ossinhos da suã para o almoço de segunda-feira.
O fim do mundo
Quando lhe disseram que vinha aí o fim do mundo, comprou setecentos e
noventa e três rolos de papel higiénico e declarou: - Estou preparada!
Fafe era o fim do mundo
Houve um tempo em que Fafe era o fim do mundo. Tenho testemunhas. Gente que se metia no comboio em Ouagadougou ou em Anchorage, vamos um supor, às tantas desprecatava-se, passava pelas brasas e quando acordava já estava em Fafe, porque não havia volta a dar, o mundo acabava ali, numa parede à frente do nariz, rés-do-chão da Rua do Retiro. Era também o fim da linha da CP. Ou o princípio, consoante o ponto de vista. Mas, chegando a Fafe, saía-se do comboio e da estação, subia-se a rampa até ao Zé da Menina, respirava-se fundo, olhava-se para o Largo e fazia-se vida. Se forem num instante à minha terra, ainda vão encontrar quem conte como fez. Perguntem ao Gino.
Depois a automotora começou a madrugar só para mim, para me trazer ao namoro ao Porto e tornar-me a casa à noite, Fafe desistiu do comboio e queixou-se muito quando lho "tiraram".
Hoje o fim do mundo é em Guimarães. É lá que está o muro. Para além dali, nada. É um fim do mundo indoor, asmático e com luzinhas de discoteca, uma boa merda à beira do nosso fim do mundo antigo, que era outra categoria - ao ar livre, com couves, tomates, cheiro a alfádega e só saúde. Ainda por cima, o nosso fim do mundo era feminino: dizia-se em Fafe, não sei explicar porquê, "a" fim do mundo.
O mundo está, portanto, mais pequeno. Isto é científico. Mingou 14 quilómetros. Este aperto mundial, de mais a mais num tempo em que os bons vão caindo como tordos, daria jeito para que nos aconchegássemos um bocadinho, trocássemos olás de boca, para que nos abraçássemos se fosse o caso, e no entanto apartamo-nos cada vez mais uns dos outros, de cabeças enfiadas em caixinhas de cores com teclas ou figurinhas de arrastar com os dedos.
Ia-me esquecendo: a outra conclusão a tirar, e igualmente científica, é que Fafe já não é deste mundo.
Sobreviventes do fim do mundo (a falácia)
Gosto destes filmes da moda que contam o fim do mundo, os diversos
modelos de fim do mundo, e a luta heróica dos sobreviventes. Catástrofes
de proporções apocalípticas, cenários dantescos, a estrada da morte, a cinza, a escuridão, a asfixia, o nada, o-drama-a-tragédia-o-horror. O planeta desaparece e, no seu regenerador
desaparecimento, traz à tona os melhores dos melhores de todos nós,
americanos por certo. O pai-herói, a mãe-coragem, o bebé-milagre, o
Sepúlveda-Taberneiro, de quem ninguém sabia há mais de quarenta anos,
desde que pôs os cornos à mulher no Sabugal e fugiu com a espanhola.
Para a América. Dão bons títulos nos jornais.
Estes filmes fazem-me acreditar na redenção da humanidade. Os
sobreviventes são a esperança num futuro melhor. Espera... - mas qual
futuro e quais sobreviventes? Se o mundo acabou, como é que há
sobreviventes?...
P.S. - Textos publicados originalmente entre Outubro de 2012 e Abril de 2020. Daí os "anacrónicos" abraços e duas ou três pequenas adaptações necessárias.
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