O meu barbeiro atacou-me à traição. Falou-me de barcos. Tínhamos uma combinação
tão antiga e cómoda, de só comunicarmos um com o outro por sinais, e
ele apanha-me o ponto fraco e obriga-me à conversa da boca para fora.
Barcos. Nós sabíamos que tínhamos também isso em comum, os barcos, mas
era como se não soubéssemos, disfarçávamos silenciosamente, numa
cumplicidade camarada, coisa de velhos embarcadiços. O Sr. Fernando,
que é um artista de mão cheia, foi, no seu tempo de tropa,
escanhoador-mor a bordo do navio-escola Sagres; e eu, marinheiro de
chuveiro, há três mil duzentos e setenta e três dias que sou contador de
navios a bordo da minha varanda com vista para o mar (se me puser de
lado).
Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora em
Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada,
não é?, apenas deixada no ar, mas ó palavras que me disseste! Leixões e
cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a
língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado.
Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de
facto são mais que as mães, só no ano passado foram oitenta e cinco" e
que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que
"Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, como por
exemplo o Albatroz, o Aurora, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen
Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation, o Costa Pacifica, o Azura
que é irmão gémeo do Ventura, rasam-me aqui a porta de casa, e que "O
Porto de Leixões é um sucesso, um incansável batedor de recordes que
despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto e milhões
de toneladas de mercadorias para o país inteiro, e dei-lhe mais
números, e comparei-lhe períodos
homólogos, e disse mesmo "períodos homólogos", que nunca na minha vida
tinha dito, e meti-lhe percentagens entre parênteses, e disse "entre
parênteses", e desenhei-lhe
gráficos com setas a apontarem para cima, e desabafei que "Um dia destes
um filho da puta qualquer, sentado numa secretária em Lisboa, vai foder
isto tudo". E foi assim que eu falei. Mas em ponto grande.
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe
disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado,
de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a
tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à
pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim"
e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece
impossível". Falámos por mais de trinta anos de silêncio. Mas conversa
sobre barcos leva longe: já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás
e não vi terra, a minha varanda. Tive medo e parei ali. Levantei a mão
direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei até
casa.
Porque na minha rua passa o mar...
À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso.
P.S. - Publicado originalmente no dia 11 de Outubro de 2011, no tempo
em que eu ainda ia ao barbeiro e não havia pandemia. Hoje, 25 de Junho, é
Dia do Marinheiro.
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