Os amigos são para as ocasiões
Um amigo de Lisboa mandou-me uma SMS. Dizia-me que precisava de falar
urgentemente comigo. Não pensei duas vezes. Nem três: meti-me no carro e lancei-me
na auto-estrada a mais de 180 à hora. Só ao chegar a Vila Franca é que
me lembrei que não tenho carro nem sei conduzir...
No tempo em que
No tempo em que não havia telemóveis ligava-se da máquina fotográfica. O que é extraordinário!
Kafka à beira-mar
Entro no metro. Viagem curta, de
Matosinhos Sul até à Senhora da Hora, quinze minutos bem medidos, antes
de mudar de linha para a minha vida em Vila do Conde. Sento-me num
daqueles bancos frente com frente, éramos quatro, dois de cada lado e,
se fosse futebol, a bola era redonda. Ninguém conhecia ninguém. Os dois
rapazes e a rapariga, os três mais para os trinta do que para os vinte,
cabeças para baixo e graves, rapam dos bolsos os respectivos telemóveis
como se se conhecessem de outras encarnações e estivessem combinados, e
jogam, ela, e mensajam, eles, automaticamente, ignorantes uns dos
outros, numa simbiose perfeita. Eu vou à mochila e tiro o livro. "Kafka à
Beira-Mar", de Haruki Murakami. Pensei: é o que diz a minha mãe -
sempre a destoar, eu.
Há palavras que nos beijam como se tivessem boca
A senhora sentada à minha frente faz croché - que raro! Eu leio um livro. O resto do metro espreita o telemóvel, fala para o telemóvel, escreve no telemóvel, joga no telemóvel, tira selfies com o telemóvel, põe o telemóvel entre pernas, aconchegadíssimo às intimidades, em alarmante modo de vibração. O metro inteiro é um telemóvel amarelo de duas carruagens, dois refractários e razoáveis orgasmos. Como quem não quer a coisa, a senhora sentada ao lado da senhora sentada à minha frente que faz croché desvia um olho do telemóvel e procura-me a capa do livro. Chega lá. Abana a cabeça, sentenciosa, faz cara de caso, deita-me uns olhos, ambos, num misto de decepção e de censura. Percebo-a: não leio José Rodrigues dos Santos. Leio "Poesias Completas & Dispersos", de Alexandre O'Neill, calhamaço como os do outro, mas calhamaço sem culpa de autor, calhamaço que dá gosto. Folheio-o com o respeito e o cuidado de quem folheia uma bíblia. E é. Vou naquela parte em que O'Neill me diz "A estouvaca": deitada atravessada / na estrada / a malhada / vai ser atropelada / foi. Palavra do senhor.
Prova de vida
- Está?
- Estou.
- Está?!...
- Estou!
- Ah!
- E aí, está?
- Estou.
- Está?!...
- Estou!
- Pronto, amanhã ligo eu.
Era o Lopes
Eu levo os telemóveis muito a sério (à séria, se lido em Lisboa). Se o meu telemóvel toca, e é raro, eu atendo. Sempre. Ainda ontem: eu estava aqui nas traseiras, por acaso sem o telemóvel à mão, e ouvi-o tocar na cozinha, virada para a rua. Fui lá a correr: não era o telemóvel, era a máquina de lavar roupa, que as máquinas de lavar roupa agora também tocam. O que é que eu fiz? Atendi a máquina de lavar roupa, evidentemente, e era o Lopes...
Quando o telefone toca
O telefone toca, a
gente atende num susto, e o que é que faz? A gente, quero dizer nós
todos, os portugueses de um modo geral. Posto isto - então o que é que a
gente faz? A gente agarra-se ao telefone com as duas mãos numa aflição
que Deus me livre, e pergunta para o outro lado, aos gritos e falta de
ar: - Estou?! Estou??!! Estou???!!! A gente tem medo de não estar.
Precisamos de confirmação. Ó insegurança! Ó angústia existencial! Ó
compinchas caguinchas! Que é das armas e dos barões assinalados? Que é
dos heróis do mar, nobre pobre, nação valente?
E nisto estamos. Ou não estaremos?
Se conduzir não conduza
Havia uma lei que proibia os condutores de falarem ao telemóvel...
quando conduziam. Lembro-me disso. Agora há uma lei que obriga os
condutores a escreverem e lerem mensagens, a tirarem e a verem
fotografias, a actualizarem o Facebook, a consultarem a Wikipédia e a
falarem ao telemóvel... quando conduzem. É assim, não é?
Óculos com a bateria em baixo são uma chatice
É desagradável. Pousar os óculos e depois não saber onde. E precisar deles para os procurar. E pegar no telemóvel para lhes ligar, obrigando-os a darem sinal de si. E então lembrar-me que nunca os pus a carregar.
P.S. - Textos publicados originalmente entre Março de 2012 e Maio de 2020. No dia 20 de Junho de 1877, Alexander Graham Bell abriu o primeiro serviço telefónico comercial do mundo em Hamilton, Ontário, Canadá.
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