sábado, 29 de fevereiro de 2020

De um sentimento com nozes e com pinhas

Foto Hernâni Von Doellinger

Radiofonicamente falando

Tinha dois rádios muito jeitosos. Depois de um acidente em Vigo, o rádio do braço esquerdo, coitadinho, só apanha a onda curta.

P.S. - A rádio TSF realizou a sua primeira emissão no dia 29 de Fevereiro de 1988. Os do costume estão a ver se acabam com ela.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 150

Foto Hernâni Von Doellinger

Tenho um melro na minha rua

A minha rua adoptiva, em Matosinhos-sur-Mer, é território de gatos e gaivotas. De umas pombas, vá lá, de uns pardejos lingrinhas e de uns cães abundantemente cagões e felizmente sem asas. Mas sobretudo, e historicamente, a minha rua é território de gatos e gaivotas, que vêm ao cheiro da comida que a minha vizinha lhes manda da varanda, besuntando de espinhas, patas de frango, gorduras várias e nojo a estrada e o passeio, mesmo por baixo do meu nariz. (Na minha rua passa bissextamente a procissão do Senhor de Matosinhos e estabeleceu-se há uns meses, colado aqui a casa, o Núcleo do Sporting - exigia-se portanto outro asseio.) A minha vizinha foi quem chamou as gaivotas, mas agora enxota-as a baldes de água fria, porque, não sei se mudou de religião, só quer conversa com os gatos.
Ora bem: há trinta anos que moro na minha rua e foram precisos trinta anos para que me aparecesse na rua um melro. Sim, um melro efectivamente, e apresenta-se todas as manhãs. Melro cantor que dá gosto, e lambão benza-o Deus, também vai à marmita dos gatos, um destes dias desaparece corrido a encharcado pela minha vizinha, se tiver a sorte de não ser cozinhado para alimentar os bichanos.
E eu, perante isto? Eu gostei muito que o melro tivesse dado com a minha rua e com a frente da minha casa. Grande melro! É porreiro, porque assim já somos dois...

P.S. - Texto publicado em Fevereiro de 2017. Entretanto o Sporting desamparou-me a loja e foi não sei para onde, se é que foi. Tenho pena. O melro da minha rua, o meu melro, cantava sem parar o hino do FC Porto. E juro que não fui eu. Os melros, é o que têm, já nascem ensinados.

Offshore, se fashavore 285

Foto Hernâni Von Doellinger

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Álvaro Cunqueiro 8

Con auga de sede vella
namorar eu namoreina,
meu amigo!

Con unha herba lixeira
namorar eu namoreina,
meu amigo!

Namorar eu namoreina
con unha cantiga leda
meu amigo!

Namorar eu namoreina
con áer da primaveira,
meu amigo!


"Cantiga Nova que se Chama Riveira", Álvaro Cunqueiro

(Álvaro Cunqueiro nasceu no dia 22 de Dezembro de 1911. Morreu no dia 28 de Fevereiro de 1981.)

Leden 781

Foto Hernâni Von Doellinger

O chichi do maestro

Nos grandes concertos sinfónicos, o maestro sai sempre no final de cada peça para ir à casinha mudar a água às azeitonas. Depois volta para as palmas e para as vénias, sorridente e aliviado. E os músicos? Os músicos protestam batendo nas estantes e continuam em palco de perninhas apertadas e, quem sabe, a mijarem-se por elas abaixo...

Também faço isto muito bem 337

Foto Hernâni Von Doellinger

Microcontos & outras miudezas 195

O reencontro com o grande Asdrúbal
Encontrei ontem por acaso o Asdrúbal, o velho Asdrúbal, o grande Asdrúbal - aos anos que não nos víamos! Recordámos os tempos antigos, falámos das nossas vidas, da família, dos filhos, dos netos, dos amigos que já morreram, do coronavírus, da eutanásia, do Marega, de projectos para o futuro. Enfim, pusemos a conversa em dia. Despedimo-nos calorosamente trocando abraços e números de telemóvel e apalavrando a marcação de um almoço, cada qual seguiu para o seu lado, e só então é que eu reparei que aquele não é o Asdrúbal, nem sequer é parecido com o Asdrúbal. Na verdade, tenho agora a certeza absoluta de que não conheço este indivíduo de lado nenhum. Em todo o caso, gostei muito de falar com o Asdrúbal.

Honestidade a toda a prova
Era um chef de uma franqueza que só vista. Tinha um aclamado programa televisivo, e não raras vezes, após confeccionar e provar os seus requintados pratos de assinatura, sentenciava, de colher a meia haste, olhos revirados e boca em biquinho de deleite e aprovação: - Hummm! Que merda!...

O ungido (ou Ele há tipos com sorte)
O seu aniversário calhava todos os anos no mesmo dia. Ele achava que era bom augúrio.

Foi um peido que me fugiu
O Dia dos Enganos era celebrado em Fafe com pompa e circunstância. Era uma tradição. Na minha terra, naquele tempo, festas assim familiares como por exemplo o Entrudo tinham as suas normas, liturgia própria. Pelo Entrudo, se me dão licença, eram os peidos-engarrafados no Cinema, um fedor que eu sei lá mas uma grande risota, ou se calhar um grande risoto, como hoje será mais fino dizer. Durante o resto do ano, no Cinema, só peidos biológicos, caseiros, que, não desfazendo, também eram uma categoria. Eram peidos subversivos, contra o governo, que nos alimentava a couves e tínhamos de as comprar, porque nem os ricos as davam - preferiam deitá-las aos porcos, que infelizmente não éramos nós, os pobres, no caso em apreço. Mas o Dia dos Enganos, que foi ao que vim, evidentemente equivocado: no Dia dos Enganos saíamos para a rua, ali no Santo Velho, estrategicamente colocados entre os tascos do Paredes e do Zé Manco, e dizíamos a quem passava: - Ó senhor, olhe o que lhe caiu!...
- Foi um peido que me fugiu... - levávamos de resposta, que também fazia parte. Um sucesso!
É, bons tempos: pobretes mas alegretes. Os peidos eram o nosso escape natural, o epítome do divertimento que se podia...


P.S. - Pelo Entrudo, em Fafe, queimava-se o Pai das Orelheiras, velha tradição popular, de afirmação de rua, que andou perdida durante anos e que a Câmara Municipal resgatou em 2017, se não me engano.

O mar nada me diz

Foto Hernâni Von Doellinger

Paulo Mendes Campos 4

Cantiga para Djanira

O vento é o aprendiz das horas lentas,
traz suas invisíveis ferramentas,
suas lixas, seus pentes finos,
cinzela seus cabelos pequeninos,
onde não cabem gigantes contrafeitos,
e, sem emendar jamais os seus defeitos,
já rosna descontente e guaia
de aflição e dispara à outra praia,
onde talvez enfim possa assentar
seu momento de areia - e descansar.


Paulo Mendes Campos

(Paulo Mendes Campos nasceu no dia 28 de Fevereiro de 1922. Morreu em 1991.)

Só destes, tenho...

Foto Hernâni Von Doellinger

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Constantino, a fama que vem de longe

Constantino era um tipo algo bizantino, porém completamente levado da breca. Foi imperador romano nos anos trezentos e o seu nome deu nome à cidade de Istambul, como o próprio nome indica. Andar à pancada era com ele: derrotou Magêncio e Licínio, sovou francos e alanos, visigodos e sármatas. Depois abrandou. Abrandou, e nos inícios do século passado voltou à luta, agora sobretudo contra o Macieira, o 1920, o Croft e o L34.

P.S. - Constantino I, também conhecido como Constantino Magno ou Constantino o Grande, para sobressair dos outros Constantinos, que realmente foram mais que as mães, nasceu em 272, há quem diga que no dia 27 de Fevereiro. Foi proclamado imperador pelas suas tropas em 306. Em 337, os seus filhos Constantino II, Constâncio II e Constante I sucederam ao paizinho Constantino original como co-imperadores. O Império Romano foi dividido entre os três augustos. Sobre o outro Constantino, o camisa VII, pode aprender aqui.

Interlúdio fotográfico 227

Foto Hernâni Von Doellinger

Descomporto

Sinto-me bastante desconfortável cada vez que tenho de ir à Baixa do Porto. Eu não sei falar inglês...

Style

Foto Hernâni Von Doellinger

Ruy Belo 7

Contigo aprendi coisas tão simples

Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente


Ruy Belo

(Ruy Belo nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 1978.) 

Mobiliário urbano (propriamente dito) 149

Foto Hernâni Von Doellinger

Baptista-Bastos 4

Violante estava nua, esplêndida, acariciava-lhe os seis, premia-lhe os bicos, ela beijava-me com suavidade, provocando-me a excitação ausente, sentia-lhe o corpo tépido,oferente e ofegante, eu desapossado de relações com o desejo; a escuridão do quarto envolve-me, repousada e confidente. [...]

"Elegia Para Um Caixão Vazio", Baptista-Bastos

(Baptista-Bastos nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1933. Morreu em 2017.)

Ao cheiro

Foto Hernâni Von Doellinger

Albino Magaia 3

Madjuba 

No pick-up arranha-se um disco importado do Djhôni.
É Madjuba!
Músicos de viola tocada com dedo eléctrico
música de negra de bairro
que junta ventre com seio e sorri a dançar ...

Madjuba!
Ancas sobem e descem imitando mar
corpo de rapaz vibra e sofre de grande desejo
enquanto menina de bairro dança com perna bonita
fecha olhos com êxtase de deusa
porque música que toca é Madjuba!
Mamanas não dançam porque anca não aguenta
e cocuana também não porque vida já se foi.
Madjuba é música de gente nova
gente que pode juntar ventre com peito
e fazer anca subir e descer como se fosse mar.
E música que marca tempo
porque no futuro toda a gente dirá:
"No tempo de Madjuba!"

Albino Magaia

(Albino Magaia nasceu no dia 27 de Fevereiro de 1947. Morreu em 2010.)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Vi Bufallo Bill no Texas, e o Texas era em Fafe

Foto Hernâni Von Doellinger

O Texas era um tasco e era em Fafe. Chamava-se também Quiterinha, derivado ao nome da dona, senhora respeitável, ou Pensão Império, e eu nunca soube derivado a quê. Estão a ver a Rua Monsenhor Vieira de Castro, quem vai para o Picotalho, do lado do Cinema, depois da padaria e encostado ao Noré, mesmo em frente à cabine, antes de chegar às Grilas e ainda mais às Turicas, nas barbas da procissão da Senhora de Antime? O Texas era exacta e geograficamente aí, previamente a ter-se instalado de armas e bagagens no sul dos Estados Unidos da América, resvés com o México, segundo vi depois nos filmes a cores.
O Texas, o nosso Texas, o verdadeiro Texas, era a preto e branco e tinha, após o balcão, um reservado com vista para a cozinha e para os campos do Santo, onde hoje se ergue o cimento do Pavilhão Municipal. Foi no nosso Texas, na sala da frente, que eu vi na televisão os jogos de Portugal no Mundial de 1966. Eu e a RTP éramos miúdos da mesma idade. Ao Texas fui com o meu pai, no Texas confraternizei com os músicos antigos da Banda de Revelhe, que tinha casa de ensaio ali a dois compassos, coisa tão a calhar, com o querido Senhor Ferreira do Hospital ou com o Queirós, meu camarada bissexto na fábrica e provavelmente o melhor tintureiro do mundo, desse-se o caso extraordinário de ele aparecer ao trabalho...
Vamos dizer, então, que o Texas, o nosso, era uma casa de pasto - sem ofensa para todos os verdadeiros americanos do faroeste, incluindo gado cavalar e vacum. As portas do Texas eram verdes, mas não eram de saloon. Cobóis, apareciam alguns, sobretudo às quartas-feiras, porém não me lembro de tiros. Naquele tempo em Fafe, terra de paz e amor, matava-se mais à sacholada e a Justiça de Fafe era um postal com quadras bairristas do Zé de Castro, poeta-cauteleiro, o nosso Aleixo. Borracheiras havia-as, e eram acontecimento de alta patente, é preciso que se note. Não tínhamos xerife, mas tínhamos o Chester, tínhamos o regedor de pistolete à cinta e tínhamos o Miguel Cantoneiro, que padecia de uma questão com os erres e, para todos os efeitos, também era autoridade. Às vezes, quando não era precisa, também tínhamos polícia...
Em todo o caso: no Texas, no nosso Texas, um pascácio do calibre de Donald Trump nunca seria eleito sequer para fazer a escrita da sueca...

P.S. - William Frederick Cod, mais conhecido como Buffalo Bill, um dos meus heróis do Velho Oeste, nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1846. Encontrámo-nos algumas vezes no Texas.

Mobiliário urbano (propriamente dito) 148

Foto Hernâni Von Doellinger

Batoques

Encomendou batoques, mandaram-lhe botox. Ficou com cara de parvo...

Protector

Foto Hernâni Von Doellinger

José Mauro de Vasconcelos 7

Foi uma ceia tão triste que nem dava vontade de pensar. Todo mundo comeu em silêncio e Papai só provou um pouco de rabanada. Não quisera fazer a barba nem nada. Nem foram à Missa do Galo. O pior era que ninguém falava nada com ninguém. Parecia mais o velório do Menino Jesus do que o nascimento.
Papai pegou o chapéu e saiu. Saiu mesmo de tamancos, sem dar até logo nem desejar felicidades. Acho que foi por isso que não deu boas-festas. Dindinha tirou o lencinho e limpou os olhos e pediu para ir embora com Tio Edmundo. Tio Edmundo botou uma pratinha de quinhentos réis na minha mão e outra na mão de Totoca. Talvez ele quisesse dar mais e não tinha. Talvez ele quisesse em vez de dar pra gente, estar dando para os seus filhos lá na cidade. Foi por isso que eu o abracei. Talvez o único abraço da noite de festas. Ninguém se abraçou ou quis dizer nada de bom. Mamãe foi para o quarto. Garanto que ela estava chorando escondido. E todos estavam com vontade de fazer o mesmo. Lalá foi deixar Tio Edmundo e Dindinha no portão e comentou quando eles se afastaram andando devagarzinho, devagarzinho.
- Parece que estão velhinhos demais para a vida e cansados de tudo...
O mais triste é que o sino da igreja encheu a noite de vozes felizes. E alguns foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros.
Quando voltamos para dentro, Glória e Jandira lavavam a louça usada e Glória tinha os olhos vermelhos como se tivesse chorado doído.
Disfarçou e disse para Totoca e eu:
- Está na hora de criança ir para a cama.

"O Meu Pé de Laranja Lima", José Mauro de Vasconcelos

(José Mauro de Vasconcelos nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1920. Morreu em 1980.)

Caminho 780

Foto Hernâni Von Doellinger

Antón Zapata García 3

A crus da Rosa 

[...]
Tampouco lle importaba dos veciños
que, de Laxe, con él, â Cruña, viran,
i-en negros trasatrantes imigraran
pra Habana e Filipinas...,
¡pois os homes de Laxe, a todos ventos,
pol-o mundo se vân, como anduriñas,
máis que nada, por moda, pol-o infruxo
de algún que enriquecío sin legría!,
¡¡case todal-a vida n-un taboeiro
espendendo texidos ou bebidas!!...
[...] 

Antón Zapata García

(Antón Zapata García nasceu no dia 26 de Fevereiro de 1886. Morreu em 1953.)

Calma e descontracção

Foto Hernâni Von Doellinger

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O cancro, entre "vencedores" e "vencidos"

Um dos títulos mais useiramente infelizes na nossa comunicação social são dois: "Fulano venceu o cancro" e "Sicrano derrotado pelo cancro". Os heróis e os falhados. Ultrapassa-se o cancro simplesmente porque se faz muita força, morre-se de cancro por indecente e má figura.
Ora, a realidade lá fora dos teclados e da tabela de vendas não é assim. Sobreviver ao cancro está muito pouco nas mãos de quem o padece. Depende de tantas e tantas variáveis exteriores ao doente e à "coragem" do doente, que só vou citar duas, dinheiro e médicos, e nada é garantido, e tudo se resume, no final, a tempo, sorte ou azar. Não há fortes e fracos, competentes e incompetentes, lutadores e cobardes. Não há vencedores nem vencidos nisto do cancro, assunto sério. É a vida.

Imagine-se o ridículo que seria levar o jargão jornalístico até às últimas consequências e, em casos de atropelamento, escrevermos, elogiando os sobreviventes, "Fulano venceu a motorizada", aos pontos obviamente, ou, injustiçando os mortos, "Sicrano derrotado pelo motociclo". Horrível, não é? Pois com o cancro também.

P.S. - Não posso garantir que esta seja a última vez que republico este textinho de protesto. É a minha luta contra a estupidez.

Interlúdio fotográfico 226

Foto Hernâni Von Doellinger

Indiferença

A noite caiu. E ninguém lhe deitou a mão. É o mundo em que vivemos...

Também faço isto muito bem 336

Foto Hernâni Von Doellinger

Com uma facada, era tiro e queda

Sou dos filmes de cobóis desde pequenino e particular consumidor dos spaghetti de Sergio Leone com molho de Ennio Morricone. Tenho-os na despensa, a colecção completa e indispensável. Gosto. Gosto e assobio. Vejo-os sempre que me apetece, e se dão na televisão (como dão de vez em quando na RTP 2, cada vez menos, ou agora regularmente nestes canais que nos saem do bolso, como por exemplo no Fox Movies ainda aqui atrasado), não mando ninguém ver por mim. Vejo. Vejo e assobio. Porém, ao fim destes anos todos e após milhões de sessões, devo confessar o seguinte: continuo sem perceber a morte dos bandidos. Há ali qualquer coisa que não bate certo. Quer-se dizer - os bandidos é como tordos, morrem uns atrás dos outros até chegar ao chefe, e assim é que está bem, mas já repararam à custa e ao fim de quantos balázios? Já contaram quantas balas são precisas para matar um bandido, um só, nem que seja um simples soldado raso, figurante praticamente? Mais de dezasseis e todas na muche, até que o estafermo do bandido, um só, aceite esticar de vez o pernil, deixando o filme avançar. É muita despesa e má propaganda à inquestionável pontaria, por exemplo, de um atirador da marca de Clint Eastwood. Em contrapartida, quando a coisa é resolvida à facada, o mau da fita morre logo à primeira. Tiro e queda, já viram?
Acho mal. E no entanto assobio. Como dizia o da piza, Ennio Morricone é que sabe...

P.S. - No dia 25 de Fevereiro de 1836, Samuel Colt obteve a patente dos Estados Unidos para o revólver Colt, o dos cobóis. Por outro lado, Ennio Morricone. Ennio Morricone está a despedir-se, aos 91 anos e depois de dar música a mais de 500 filmes e programas de televisão. Passou pela Altice Arena de Lisboa em Maio do ano passado. Não digo adeus Morricone, digo viva Morricone, porque Morricone não vai, Morricone fica. No ouvido. No meu cinema paraíso. E eu assobio...

Music was my first love 56

Foto Hernâni Von Doellinger

Cesário Verde 7

Impossível

Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.

Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.

Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.

Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.

Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.

Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque

E até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola,

Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.

Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China,
O nosso chocolate.

E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas,
No mesmo travesseiro.

Posso ser teu amigo até à morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!

Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,
Lá essa é que eu não caio!


"O Livro de Cesário Verde", Cesário Verde

(Cesário Verde nasceu no dia 25 de Fevereiro de 1855. Morreu em 1886.)

Brinca-na-areia

Foto Hernâni Von Doellinger

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Chamando o Gregório

Ainda que pareça estranho, o dia 24 de Fevereiro foi inventado no dia 24 de Fevereiro. No dia 24 de Fevereiro de 1582, com a assinatura do papa Gregório XIII. Daí é que vem a mais famosa expressão da noitada dos bailes e outras folganças de carnaval - Com licença, menina, vou só ali chamar o Gregório, e venho-me já...

P.S. - Com a bula pontifícia "Inter gravissimas", o papa Gregório XIII anunciou no dia 24 de Fevereiro de 1582 o calendário gregoriano, inicialmente adoptado por Portugal, Espanha, Itália e Polónia. Oficialmente o primeiro dia deste novo calendário foi 15 de Outubro de 1582.

Fui

Foto Hernâni Von Doellinger

Um Carnaval bem passado

Um Carnaval bem passado precisa de pelo menos dois minutos de cada lado.

Interlúdio fotográfico 225

Foto Hernâni Von Doellinger

David Mourão-Ferreira 7

Ladainha horizontal

Como se fossem jangadas
desmanteladas,
vogam no mar da memória
as camas da minha vida...
Tanta cama! Tanta história!
Tanta cama numa vida!
Grabatos, leitos, divãs,
a tarimba do quartel;
e no frio das manhãs
lívidas camas de hotel...
Ei-Ias vogando as jangadas
desmanteladas,
todas cobertas de escamas
e do sal do mar da vida...
Tanta cama! Tantas camas!
Tanta cama numa vida!
Já os lençóis amarrados
tocam no centro da Terra
(que o reino dos desesperados
fica no centro da Terra!)
e os cobertores empilhados
são monte que não se alcança!
Só as tábuas das jangadas
desmanteladas
boiam no mar da lembrança
e no remorso da vida...
Homem sou. Já fui criança.
Tanta cama numa vida!
Nem vão ao fundo as de ferro,
nem ao céu as de dossel...
Lembro-vos, camas de ferro
de internato e de bordel,
gaiolas da adolescência,
ginásios do amor venal!
Barras fixas. Imprudência.
Sem rede, o salto mortal
pra fora da adolescência ...
E confundem-se as jangadas
desmanteladas
no mar da reminiscência...
Onde estás, ó minha vida?
Sono. Volúpia. Doença.
Tanta cama numa vida!
E recordo-vos, tão vagas,
vós que viestes depois,
ó camas transfiguradas
das furtivas ligações!
Camas dos fins-de-semana,
beliches da beira-mar...
Oh! que arrojadas gincanas
sobre os altos espaldares!
E as camas das noites brancas,
tão brancas!, tão tumulares!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Ó fragílimas jangadas,
desmanteladas...!
E nelas há quem se arrisque
sobre os pélagos da vida!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Tanta cama numa vida!
E o amor? Tálamo, templo,
conjugação conjugal ..
O amor: tálamo, templo
- ilha num mar tropical.
Mas ao redor, insistentes,
bramam as ondas do mar,
do mar da memória ardente,
eternamente a bramar...
Já no frio dos lençóis
há prelúdios da mortalha;
e, nas camas, sugestões
fúnebres, torvas, pesadas... 

- Sede, por fim, ó jangadas
desmanteladas,
a ponte do esquecimento
prà outra margem da Vida!
Sede flecha, monumento,
ponte aérea sobre o Tempo,
redentora madrugada!
Se o não fordes, sereis nada,
jangadas
desmanteladas,
todas roídas de escamas
da margem de cá da Vida...
Pobres camas! Tristes camas!
Tanta cama numa vida!

"Música de Cama", David Mourão-Ferreira

(David Mourão-Ferreira nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1927. Morreu em 1996.)

Também faço isto muito bem 335

Foto Hernâni Von Doellinger

Rosalía de Castro 9

Non coidaréi xa os rosales
que teño seus, nin os pombos:
que sequen, como eu me seco;
que morran, como eu me morro.


"Follas Novas", Rosalía de Castro

(Rosalía de Castro nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1837. Morreu em 1885.)

Caminho 779

Foto Hernâni Von Doellinger

José Augusto Seabra

Despedida 

Encanecida pátria de joelhos,
aqui te deixo, exausto de sofrer-te.
Vou de olhos secos, cegos de perder-te,
sossegar ódios velhos.
Vou destruir-te as lágrimas de rojos,
nas mãos e mãos inertes.
Aos que sabem a ciência de vender-te
abandono os despojos.
Vou procurar-te ao bafo de outra face
quente, clara e agreste.
Aconchego-te aos restos
da minha pele gasta de afagar-te.
Vou de jornada. Aceno
um lenço breve e incerto.
Voltarei, voltarei. Num gesto
mais rebelde e sereno.
Ergue os teus ombros, pátria de joelhos,
olha-me bem nos olhos para ver-te.
Quero levar-te e ter-te
no meu ódio já velho.

José Augusto Seabra

(José Augusto Seabra nasceu no dia 24 de Fevereiro de 1937. Morreu em 2004.)