sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Marques Rebelo 4

Havia uma moringa em nossa casa, da qual somente papai lhe bebia a água. Ficava dia e noite, cheia, na varandinha da copa, à sombra plácida da mangueira, para a água ficar mais fresca e se impregnar do leve sabor a barro que papai tanto prezava. Em domingos de verão, se não era infalível, frequentemente aparecia Seu Sousa para palestrar algumas horas; mamãe achava-o extremamente cacete, mas atendia-o com especiais finezas, porque o marido, que ela colocava pouco abaixo das coisas celestes, elogiava-o, com sincero ardor, como sendo um homem de peso e medida! Seu Sousa não escondia, como poderia fazer usando colarinhos mais altos, uma velha cicatriz no pescoço e era bastante enjoado, não variando nunca de conversas - questões de terrenos para vender - e de graças: Você tem água gelada com gelo, compadre?
Papai respondia logo:
- Gelo é um perigo, seu burro! Mas tenho a minha bilha fresquinha - e gritava para dentro: - Onde está a moringa? Olhem que o Sousa também quer.
Como se acabou de ver, este privilegiado senhor era o único mortal com quem meu pai dividia o precioso conteúdo da sua moringa. Este célebre objeto, externamente, não correspondia em absoluto a tão súbitas distinções, comuníssima moringa, dessas que se encontram nas menos sortidas das quitandas. Talvez custasse poucos tostões mais, não duvido, por ser pintada, porque lá isso era ela, com casinhas e beija-flores, dentro de um oval que era uma espécie de grinalda de florezinhas róseas e azuis. - No mais uma banalíssima moringa, como já se disse.

"Oscarina", Marques Rebelo 

(Marques Rebelo nasceu no dia 6 de Janeiro de 1907. Morreu em 1973.)

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