sábado, 1 de outubro de 2016

José Cardoso Pires 4

Num dia de Abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um automóvel aberto, rápido como o pensamento.
Já alguém tinha dado por ele quando ainda vinha à distância, roncando pela estrada fora. De longe, como era vermelho, vermelho‑vivo, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto por entre mar e cabeços.
"Que terra é aquela?", perguntou uma rapariga que vinha lá dentro.
"São Qualquer Coisa", respondeu‑lhe o homem que a acompanhava. "São Rafael, parece‑me."
Era pessoa dos seus quarenta anos ou nem isso. Guiava de largo, cabeça para trás, mão pousada no volante. À parte o cabelo ralo e o olhar suave, todo ele, pele e gestos, tinha um aspecto terra‑a‑terra: dedos ossudos, pulsos chatos, unhas rasas, cor e modos de camponês - melhor: de descendente de camponês. Vinha de camisolão grosso, cachimbo nos dentes.
Este ar de terra‑a‑terra é fácil de perceber‑se nalguns infantes da lavoura que gastam a maior parte da vida nas grandes capitais. Nesses, as falas provincianas e o tom com que se dirigem aos criados são coisas cultivadas, uma espécie de marca de estirpe para os diferenciar do resto dos mortais que não têm terras nem passado para lá da cidade. São outra gente; gozam a paz da fortuna e das famílias, bebem vinho tinto nos bares do Guincho ou de Cascais sem que alguém lhes leve a mal. Julgam, em suma, a cidade à medida da aldeia. E passeiam‑se nela.
"Como os velhos reis", costumava dizer o homem do carro vermelho; e nisso havia uma pontinha de desdém até por ele próprio. "Como os monarcas que desciam à rua para enriquecer o sangue nos ventres populares."

No entanto, ele, indivíduo de modos terra‑a‑terra, não se podia comparar a qualquer dos ditos infantes da lavoura. Se tinha esse à‑vontade seria em parte pelo descuido que dá a segurança, e muito principalmente por cansaço, por desencanto.
Ia, pois, este homem ao volante e ao lado dele a rapariga. Saíram da estrada por um atalho abandonado, todo pedras e buracos, e a companheira leu numa placa à entrada do povoado:
"São Romão."
"Exactamente, São Romão."


"O Anjo Ancorado", José Cardoso Pires

(José Cardoso Pires nasceu no dia 2 de Outubro de 1925. Morreu em 1998.)

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