Eu também fui preso antes do 25 de Abril. Sim, no meu tempo de
estudante, em pleno turbilhão da crise académica de 1969, andava na
quinta classe e ia para a Escola da Feira Velha
quando fui detido pelo polícia, preso pelo cachaço. (A quinta classe que fiz com o professor Fernando - "Conhé" para os alunos -, e não há engano, houve realmente um tempo em que a quinta e a sexta classes eram o liceu dos pobres). Mas o meu o crime, é isso que querem saber, não é? Pois bem: achei um
bocado de giz no chão e escrevi "Senhoras Donas Grilas" na parede da
casa das Grilas propriamente ditas. Há horas do diabo e o cívico estava
lá, pontual e flagrante, mesmo atrás das minhas costas. Apanhei um susto
que ainda hoje tremo, e digo isto sem peneiras: ia-me borrando todo.
A história precisa de ser melhor contada, não precisa? Vamos lá então ver se sei, e por partes:
Primeiro, para que nos situemos, é essencial não confundir as Grilas com
as Turicas, erro crasso e muito comum entre os especialistas locais. As Grilas
eram mesmo ao lado do prédio do Café Chinês, que então se construía.
Irmãs, velhas no meu critério de criança, solteironas, desgrenhadas,
professoras e misteriosas. Raramente vistas na rua, espreitavam apenas à
porta, defendida por um portão baixinho em ferro forjado, e quando meteram o
telefone em casa ligaram ao meu avô a perguntar se o telefone dos Bombeiros "também tocava em português" como o delas. Eu morava ali à beira, ao dobrar da esquina, no Santo,
e as senhoras até gostavam de mim. Mesmo depois da tratantada que lhes perpetrei e que graças a Deus nunca lhes chegou aos ouvidos. Sabiam que eu era filho da "viúva da Bomba"
e isso valia muito em Fafe. Quando eu passava, as Grilas diziam-me sempre
qualquer coisa simpática, só com a guedelha grisalha e o nariz de fora, e
uma vez deram-me um santinho. Obviamente não mereciam a traição que
lhes cometi...
Isto as Grilas. Agora as Turicas, na mesma Rua Monsenhor Vieira de Castro e do mesmo lado, direito para quem desce para o Picotalho ou para a Recta, mas depois do cruzamento dos tascos do Paredes e do Zé Manco,
nem 50 metros de distância entre umas e outras, e daí a lamentável e inexplicável
confusão numa terra tão prenhe de historiadores. As Turicas eram também irmãs. Pequeninas e idosas, resmungonas
e prendadas para os mais delicados lavores, faziam renda de bilros
sentadas num banquinho junto às enormes portadas que davam para a rua. Tinham
uma loja mais antiga do que elas e que cheirava a um mofo muito bom.
Vendiam botões e tafetás, fitas de nastro, fechos, linhas, lãs, chitas,
agulhas e flanelas. Vendiam também vinho ao garrafão nas traseiras do
estabelecimento. As boas senhoras tinham uma "criadita" que abria a
porta a quem ia comprar vinho. E a miúda tinha umas mamas. A minha mãe
mandou-me ao vinho e eu pedi à rapariga se me deixava apalpar-lhe as
mamas. Ela não deixou e eu apalpei. As mamas eram de papel e foi um
desgosto muito grande.
Que se segue: o prédio do Café Chinês estava a ser construído e as
Grilas, que já lá moravam resvés, queixavam-se das obras e dos
operários. Queixavam-se do barulho e da insegurança, de tudo e de nada, barafustavam que a casa ia abaixo, era berraria o dia inteiro, guinchos
de um lado e palavrões do outro, que até foi preciso chamar a Polícia. A
Polícia veio e ficou. Dias e dias. Um agente sempre a rondar e a deitar
os olhos ao conflito durante as horas de expediente, não fosse a coisa
passar a vias de facto.
Ora, foi exactamente o desprezo por este pequeno pormenor que me tramou.
Quando o toco de giz me apareceu aos pés a tentar-me e eu não resisti a
apanhá-lo e a sarrabiscar "Senhoras Donas Grilas" na parede das ditas,
palavras não eram escritas e já estava a ser levantado por um potente
garibalde (cá está) que me agarrou em tenaz pelo cachaço e perguntou - O que é que o senhor está a fazer?
Olhei para trás e o garibalde era um polícia. O senhor era eu mais os
meus onze anos, o que me fez desconfiar que estava metido em caso sério.
Com o giz na mão e a última perninha do "s" final ainda a fumegar,
respondi - Nada...
Ainda hoje acho que respondi com grande categoria.
E o polícia - Onde é que o senhor mora? E eu, que não queria a minha mãe metida na ocorrência, até porque era melhor para mim - Moro longe. E ele - Então, vamos para a esquadra.
(Para a esquadra? Mais polícias? Isso é que não me dá jeito, pensei,
rápido como um fósforo, derivado ao que se ouvia dizer. Porque a Polícia
daquele tempo.... bem, a Polícia daquele tempo vestia uma farda de
terilene cinzento, que era a cor da Autoridade e do País. Os carteiros
também vestiam de cinzento, mas em cotim. A outra diferença é que os
carteiros eram nossos amigos.)
E eu - Enganei-me, senhor polícia, desculpe, moro já aqui no Santo...
O polícia deixou-me finalmente aterrar, empurrou-me para casa, ainda com
a tenaz no meu cachaço, o João do Zé Manco viu, veio a correr acudir
por mim e foi à frente avisar a minha mãe de que eu não tinha feito mal
nenhum. Fiquei a dever uma ao João. Dessa vez a minha mãe não me bateu. E
ainda agora me diz que, para além da cunha do João, levou em devida
conta o facto de eu ter escrito "Senhoras Donas Grilas" e não "Grilas"
simplesmente. "Senhoras", evidentemente. Para a minha mãe, respeito e educação acima de tudo.
Fui condenado a limpar a parede com um pano molhado, cumpri pena e segui
para a escola, de coração a mil e tremente como varas verdes. As varas
verdes eram também uma especialidade da minha mãe. Livrei-me de boa...
Bom dia, estava a ler sua história e faz referencia a um tempo, idos de 1969, onde aqui no Brasil as coisas aconteciam mais ou menos como aí, respeito e educação acima de tudo, senão..Huuuu...descia a vara, da mamãe ou da Policia,por aqui anos de mãos de ferro., contudo tenho o prazer de ler seu relato e pormenores.Parabéns pelo blog
ResponderEliminarMuito obrigado, caro amigo. Volte sempre.
EliminarComo sempre um texto deliciosamente desconcertante!Devemos ter uma diferença de idade... bem o melhor é mesmo não dar nome aos números, ninguém precisa de saber, e as senhoras ficam expectantes! Mas sendo mais novo ainda conheci as Turicas, por força da minha mãe ser costureira, devia ser muito novo, muito mesmo... mas tenho por cá uma tênue recordação. Grande abraço! Visito frequentemente o Blogue do amigo Hernâni à procura destas pérolas.
ResponderEliminarMuito obrigado, caro amigo, e uma grande abraço também para si.
EliminarIsto é história, sociologia... A história completa de Fafe, usos e costumes, tem de pegar nestes textos. Abraço
ResponderEliminarAbraçório, caro Pedro Sousa.
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