quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Graciliano Ramos 4

Naquela noite de lua cheia estavam acocorados os vizinhos na sala pequena de Alexandre: seu Libório, cantador de emboladas, o cego preto Firmino e Mestre Gaudêncio curandeiro, que rezava contra mordedura de cobras. Das Dores, benzedeira de quebranto e afilhada do casal, agachava-se na esteira cochichando com Cesária.
- Vou contar aos senhores... principiou Alexandre, amarrando o cigarro de palha.
Os amigos abriram os ouvidos e Das Dores interrompeu o cochicho:
- Conte, meu padrinho.
Alexandre acendeu o cigarro ao candeeiro de folha, escanchou-se na rede e perguntou:
- Os senhores já sabem porque é que eu tenho um olho torto?
Mestre Gaudêncio respondeu que não sabia e acomodou-se num cepo que servia de cadeira.
- Pois eu digo, continuou Alexandre. Mas talvez nem possa escorrer tudo hoje, porque essa história nasce de outra, e é preciso encaixar as coisas direito. Querem ouvir? Se não querem, sejam francos: não gosto de cacetear ninguém.
Seu Libório cantador e o cego preto Firmino juraram que estavam atentos. E Alexandre abriu a torneira:
- Meu pai, homem de boa família, possuía fortuna grossa, como não ignoram. A nossa fazenda ia de ribeira a ribeira, o gado não tinha conta e dinheiro lá em casa era cama de gato. Não era, Cesária?
- Era, Alexandre, concordou Cesária. Quando os escravos se forraram, foi um desmantelo, mas ainda sobraram alguns baús com moedas de ouro. Sumiu-se tudo.
Suspirou e apontou desgostosa a mala de couro cru onde seu Libório se sentava:
- Hoje é isto. Você se lembra do nosso casamento, Alexandre?
- Sem dúvida, gritou o marido. Uma festa que durou sete dias. Agora não se faz festa como aquela. Mas o casamento foi depois. É bom não atrapalhar. 

"Alexandre e Outros Heróis", Graciliano Ramos

(Graciliano Ramos nasceu no dia 27 de Outubro de 1892. Morreu em 1953.)

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