terça-feira, 18 de outubro de 2016

Álvaro Guerra

Quando eu chegava, a ameixoeira no canto do pátio estava a cobrir-se de pequenas flores brancas, no marçabril de cada ano, e era essa a maneira da Primavera se mostrar, ela que já vinha no vento seco e volúvel de rondar os quatro cantos da casa velha. Era quando a avó falava dos tremores de terra e acendia em azeite novo o pavio, diante da gravura de Santa Bárbara, de modo que a chama dançava no vidro da moldura a embaciar-se de calor e ranço. Então, também a prima punha olheiras azuis e começava o seu consumo de tónicos, ostentando sua magreza como um luxo de dama antiga, cortesã sem corte, livros entreabertos sobre os joelhos, folhas secas, olhar vago, suspiros, tonturas de período. Das suas insónias fui vítima e iniciado quando acordei de um sonho de punhais apontados à minha barriga por onde, afinal, passeavam os seus dedos febris, "Chiu, não faças barulho; está mais quentinho na tua cama; deixa-me dormir contigo", um sussurro, e os dedos em atrevimentos tecendo com os pêlos negros e recentes mornos formigueiros trabalhando a hipnose que me imobilizava no meio de um angustiante prazer que exigia mais, de maneira que ao acordar era como se ela me houvesse contagiado as olheiras azuis e a cama tinha um cheiro excitante de suor e sucos dos nossos corpos enredados.

"Memória", Álvaro Guerra

(Álvaro Guerra nasceu no dia 19 de Outubro de 1936. Morreu em 2002.)

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