O trem apitou, Eduardo deu uma olhada pela janela e viu que faltava menos de um quilômetro para atravessar a ponte sobre o Jacuí, numa zona baixa de campo onde caçavam perdiz. Era só atravessar a balsa, a cachorrada inquieta, as velhas espingardas de dois canos. Ao rever aquele pedaço de terra teve a sensação de enxergar seu pai e o dono do bar Minuano, um homenzinho barrigudo de gorro de lã enfiado até as orelhas, Seu Zeno; o sargento da Brigada Militar e comandante do Destacamento de Polícia, Euzébio Machado, cem quilos de uma mistura de índio com branco, bigodes caídos nos cantos da boca, palheiro nos beiços ou enfiado atrás da orelha; o Dr. Euríclides, juiz de paz, casado com uma mocinha de grandes peitos e olhar sonolento. Quando menino, Eduardo acompanhava as caçadas para carregar os cachorros - não havia um perdigueiro entre eles - e dava um duro no trabalho, voltando para casa, ao cair daquelas frias noites, mais morto do que vivo, sem ter dado um tiro de bodoque. Parecia, agora, tudo no mesmo lugar, as mesmas árvores, as cercas e os caminhos. Ao cruzar a ponte de ferro viu o prédio amarelo, a placa descascada, as letras em alto-relevo, negras, "Estação Abarama". O casario da Baixada, uma zona alagadiça com seu amontoado de favelas de tábuas e pedaços de lata, tudo gente da beira-rio, os moleques embarrados jogando futebol; onde andaria àquelas horas o Edmundo Pescador, o primeiro sujeito que vira com longas barbas de profeta, delegado encanzinado de sua gente? Vivia bebendo nos bares, dando socos no balcão, "um dia a nossa gente descobre a força que tem". Bêbado, não tropeçava e nem andava em ziguezague, era uma reta só até a Baixada.
"Depois do Último Trem", Josué Guimarães
"Depois do Último Trem", Josué Guimarães
(Josué Guimarães nasceu no dia 7 de Janeiro de 1921. Morreu em 1986.)
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