O senhor querendo saber, primeiro veja:
Ali naquela casa de muitas janelas de bandeiras coloridas vivia Rosalina. Casa de gente de casta, segundo eles antigamente. Ainda conserva a imponência e o porte senhorial, o ar solarengo que o tempo de todo não comeu. As cores das janelas e da porta estão lavadas de velhas, o reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra mesmo as pedras e os tijolos e as taipas de sua carne e ossos, feitos para durar toda a vida; vidros quebrados nas vidraças, resultado do ataque da meninada nos dias de reinação, quando vinham provocar Rosalina (não de propósito e ruindade, mais sem-que-fazer de menino), escondida detrás das cortinas e reposteiros; nos peitoris das sacadas de ferro rendilhado formando flores estilizadas, setas, volutas, esses e gregas, faltam muitas das pinhas de cristal facetado cor de vinho que arrematavam nas cantoneiras a leveza daqueles balcões.
O senhor atente depois para o velho sobrado com a memória, com o coração - imagine, mais do que com os olhos, os olhos são apenas conduto, o olhar é que importa. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mais além do além, no fundo do tempo. Recue no tempo, nas calendas, a gente vai imaginando, chegue até ao tempo do coronel Honório - João Capistrano Honório Cota, de nome e conhecimento geral da gente, homem cumpridor, de quem o senhor tanto quer saber, de quem já conhece a fama, de ouvido – de quem se falará mais adiante, nas terras dele, ou melhor, do pai - Lucas Procópio Honório Cota, homem de quem a gente se lembra por ouvir dizer, de passado escondido e muito tenebroso, coisas contadas em horas mortas, esfumado, já lenda-já história, lembranças se azulando, paulista de torna-viagem das Minas, de longes sertões, quando o ouro secou para a desgraça geral, as grupiaras emudeceram; e eles tiveram de voltar, esquecidos das pedras e do outro, das sonhadas riquezas impossíveis, criadores de gado, potentados, esbanjadores ou unhas-de-fome - conforme a experiência tida ou a natureza, fazendeiros agora, lúbricos, negreiros, incestuosos, demarcadores, ladrilhando com seus filhos e escravos este chão deserto, navegadores de montes e montanhas, políticos e sonegadores, e vieram plantando fazendas, cercando currais, montando pousos e vendas, semeando cidades no grande país das Gerais, buscando as terras boas de plantio, as terras roxas e de outras cores em que o sangue e as lágrimas entram como corantes - nas datas de que, por doação e todos os mais requisitos da lei, se ergueu a Igreja do Carmo e se fez o Largo.
"Ópera dos Mortos", Autran Dourado
(Autran Dourado nasceu no dia 18 de Janeiro de 1926. Morreu em 2012.)
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