Sentado de lleno sobre el cemento recalentado
del tendido número 3, solitario entre el pleno
multicolor
desentendido, de las caras bonitas de sus
proximidades, enteramente absorbido en su "metier"
asistía a la corrida Don Severo.
Don Severo es francés, revistero de toros de
La Petite Gironde. Este flamenco de la Aquitania es
un hombre sólido, macizo, moreno; tiene encasquetado
el sombrero, lleva chaleco y no desabotona la
americana oscura en aquella atmósfera de horno,
donde tantos pretendidos meridionales se quedan
en mangas de camisa.
En el sol, ocupado enteramente por la joven afición navarra, uniformada en blanco y rojo, como en
un cuadro de los Zubiaurre, que ha corrido esta mañana delante de los toros, entre las vallas que acotan
el camino del encierro, no parecen producir diversas
emociones los incidentes de la lidia. Se aplaude o
se abuchea más por hacer ruido que por premiar
una suerte lucida o por condenar una mala faena, y
entre tanto, aquella gente canta y danza sin descanso con inquietud rítmica y unánime. Es más que
nada, una bella descarga de energía de los mejores
ejemplares de una raza fuerte, sana y buena.
Don Severo, en cambio, concentra en la atención
de sus ojos sabios de lances y técnicas aquilatadas,
toda la fuerza de su cuerpo robusto.
Tiene un cuadernito menudamente cuadriculado
en el que apunta a lápiz breves notas misteriosas,
acaso en cifra extraña y difícil. Está serio y doctoral, como aquellos
señores que, en cierta cervecería de la calle de Sevilla, de Madrid,
constituian
antaño la "parte sana de la afición".
Don Severo posee una de las cuatro o cinco
ciencias enteramente cerradas, esotéricas, inaccesibles, que solo posee
en el mundo una docena
escasa de personas. Con la metafísica, la física teórica y la alta
matemática, la Tauromaquia constituye uno de esos recintos reservados al
ultraespecialismo, de expresión extrictamente técnica, sólo
comprensible después de una larga iniciación de
muchos años invertidos "tras el burladero", en
demoradas discusiones en torno al redondel o en las
mesas de cafés, bares y tabernas, en tertulias taurinas
y en lecturas sostenidas al día de libros y comentarios periodísticos.
"Libro de las Horas", Vicente Risco
(Vicente Risco nasceu no dia 1 de Outubro de 1884. Morreu em 1963.)
terça-feira, 30 de setembro de 2014
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
De costas para a baliza
A crítica dizia que Anselmo jogava muito bem de costas para a baliza. E não admira. Anselmo era guarda-redes.
domingo, 28 de setembro de 2014
O próximo empate do FC Porto
O próximo empate do FC Porto é com o Braga, está marcado para o dia 5 de Outubro, ex-feriado, e vai dar na televisão.
P.S. - Por favor não confundir embate com empate. Es un error.
P.S. - Por favor não confundir embate com empate. Es un error.
Sinais de religiosidade, com Gaspar de Jesus
"Sinais de Religiosidade", exposição de Gaspar de Jesus, no âmbito do Festival de Fotografia de Avintes, que decorre de 3 de Outubro a 1 de Novembro. Para ver no Centro Paroquial de Avintes, Rua do Passal, 70.
Gaspar de Jesus, fotojornalista e professor de Fotografia, trabalhou em A Capital, O Primeiro de Janeiro, A Bola, TV Guia, Notícias Magazine e Autores. Artista premiado, realizou uma vintena de exposições individuais e participou em inúmeras exposições colectivas, dentro e fora do País. Foi formador em cursos do FAOJ e integrou o quadro de formadores do IPF-Porto. É co-autor dos livros "Portugal e o Ambiente", "Reencontros - Portugal em Fotografia", "Daqui Houve Nome Portugal", "21 Retratos do Porto para o Século XXI", "Porto Cidade com Alma" e "Porto sem Filtro". É autor do blogue Arte Fotográfica e promotor das tertúlias Com a Arte no Olhar.
sábado, 27 de setembro de 2014
Eu só queria ir à farmácia
17h15. Fui à farmácia e perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim, assim, e queria ver se me podiam dar qualquer coisa". O meu problema era no olho. Direito. "Ora mostre lá o olho", e eu mostrei, "ui, vai ter de ir ao médico", e eu fui. A pé, da Rua Brito Capelo até ao Centro de Saúde de Matosinhos, que é um pedaço acima da Câmara Municipal.
No centro de saúde fui atendido em menos de uma hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim, assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, e eu vim". "Ora mostre lá o olho", e eu mostrei, "vai ter de ir imediatamente ao oftalmologista, mas, como no Hospital Pedro Hispano não há urgência da especialidade, pegue lá esta carta e vá ao Hospital de Santo António", e eu fui. A pé até à Avenida Serpa Pinto, apanhei o 500 até ao Castelo do Queijo, esperei uma hora pelo 200 e lá cheguei ao Santo António quando o trânsito me deixou.
Na urgência fui atendido em menos de um quarto de hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim, assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, o médico mandou-me aqui, e eu vim". "Ora mostre lá o olho, encoste aí o queixo e olhe para esta luzinha", e eu mostrei, encostei e olhei. "Tome lá esta receita, são umas gotas para colocar de duas em duas horas, vá já à farmácia", e eu fui. Estava de volta à casa de partida, passava pouco das 21h45.
E tudo isto pelos cinco euros da taxa moderadora que paguei no centro de saúde, mais as viagens e os quase catorze euros das gotas, que afinal nem precisavam de receita médica, e que estou a pensar meter como despesas de representação.
Sei que tenho o melhor serviço nacional de saúde do mundo. Raramente lhe dou uso, mas frequento-o assiduamente e vivo de olhos abertos. Querem saber o que é o nosso Serviço Nacional de Saúde? Não são taxas e isenções. São as pessoas: os auxiliares, os médicos e os enfermeiros, que todos os dias trabalham no arame e sem rede, que já lhes tiraram há muito, e fazem funcionar uma coisa que na verdade já nem existe, ou, se quisermos ser bondosos, vai morrendo aos bocadinhos. A minha urgência pareceu-me uma desnecessidade, mas as pessoas quiseram fazer bem - são profissionais. E faço figas para que me tratem sempre assim mas palminhas. Em todo o caso, palavra de honra, eu só queria ir à farmácia.
No centro de saúde fui atendido em menos de uma hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim, assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, e eu vim". "Ora mostre lá o olho", e eu mostrei, "vai ter de ir imediatamente ao oftalmologista, mas, como no Hospital Pedro Hispano não há urgência da especialidade, pegue lá esta carta e vá ao Hospital de Santo António", e eu fui. A pé até à Avenida Serpa Pinto, apanhei o 500 até ao Castelo do Queijo, esperei uma hora pelo 200 e lá cheguei ao Santo António quando o trânsito me deixou.
Na urgência fui atendido em menos de um quarto de hora. Perguntaram-me "então o que é que o traz por cá" e eu expliquei "aconteceu-me isto assim, assim, fui à farmácia, na farmácia mandaram-me ao médico, o médico mandou-me aqui, e eu vim". "Ora mostre lá o olho, encoste aí o queixo e olhe para esta luzinha", e eu mostrei, encostei e olhei. "Tome lá esta receita, são umas gotas para colocar de duas em duas horas, vá já à farmácia", e eu fui. Estava de volta à casa de partida, passava pouco das 21h45.
E tudo isto pelos cinco euros da taxa moderadora que paguei no centro de saúde, mais as viagens e os quase catorze euros das gotas, que afinal nem precisavam de receita médica, e que estou a pensar meter como despesas de representação.
Sei que tenho o melhor serviço nacional de saúde do mundo. Raramente lhe dou uso, mas frequento-o assiduamente e vivo de olhos abertos. Querem saber o que é o nosso Serviço Nacional de Saúde? Não são taxas e isenções. São as pessoas: os auxiliares, os médicos e os enfermeiros, que todos os dias trabalham no arame e sem rede, que já lhes tiraram há muito, e fazem funcionar uma coisa que na verdade já nem existe, ou, se quisermos ser bondosos, vai morrendo aos bocadinhos. A minha urgência pareceu-me uma desnecessidade, mas as pessoas quiseram fazer bem - são profissionais. E faço figas para que me tratem sempre assim mas palminhas. Em todo o caso, palavra de honra, eu só queria ir à farmácia.
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quinta-feira, 25 de setembro de 2014
O meu bisavô Lindolpho
Um por acaso lembrou-me ontem do meu bisavô Lindolpho, pai do meu avô da Bomba. Fui aos papéis. Lindolpho Von Doellinger, pedagogo, nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, na freguesia de Santo António dos Pobres - tanto quanto consigo perceber na certidão de nascimento do meu avô, assento n.º 71, que guardo com devoção e fita-cola. Dos Pobres, e eu nunca tinha ligado. A minha vida começa finalmente a fazer sentido.
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
"A Generala", de Jorge Monteiro Alves
"A Generala" é o mais recente livro do jornalista Jorge Monteiro Alves e tem lançamento marcado para o próximo dia 4 de Outubro, pelas 16 horas, no portuense Café Guarany. A obra, dedicada ao povo do Porto, retrata a luta heróica das gentes da Invicta durante as Invasões Francesas. Apresentação a cargo do também jornalista Orlando Castro.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
Antonio Tabucchi 2
Todas as noites canto, porque sou pago para isso, mas as canções que ouviste eram pezinhos e sapateias
para os turistas de passagem e para aqueles americanos que se estão a
rir lá ao fundo e que daqui a pouco se vão embora aos ziguezagues. As
minhas verdadeiras canções são só quatro chama-ritas, pois o meu
repertório é escasso, e depois eu estou a ficar velho, e fumo de mais e a
minha voz está rouca. Tenho de vestir este balandrau açoriano que se
usava em tempos, porque os americanos gostam do pitoresco, depois voltam
para o Texas e contam que estiveram numa tasca, numa ilha perdida, onde
um velho com uma capa cantava o folclore do seu povo. Querem a viola de
arame que dá este som de feira melancólica, e eu canto-lhes modinhas
pirosas onde a rima é sempre a mesma, mas tanto faz, eles não percebem
e, como vês, bebem gin tónico. Mas tu, o que é que procuras, que todas
as noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra coisa, porque é a
segunda vez que me convidas a beber, mandas vir vinho "de cheiro" como
se fosses dos nossos, és estrangeiro e finges falar como nós, mas bebes
pouco e depois ficas calado e esperas que fale eu. Disseste que és
escritor e, no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma coisa a ver
com a minha. Todos os livros são estúpidos, há sempre pouco de
verdadeiro neles, e contudo li muitos nos últimos trinta anos, mesmo
italianos, naturalmente todos traduzidos, aquele de que mais gostei
chamava-se Canaviais no Vento, de uma tal Deledda, leste-o? E
depois tu és jovem e gostas de mulheres, bem vi como olhavas para aquela
mulher muito bonita com o pescoço alto, olhaste para ela toda a noite,
não sei se estás com ela, também ela olhava para ti e talvez te pareça
estranho, mas tudo isto acordou em mim qualquer coisa, deve ser porque
bebi de mais. Sempre escolhi o demais na vida e isto é uma perdição, mas
não há nada a fazer quando se nasce assim.
"A Mulher de Porto Pim", Antonio Tabucchi
(Antonio Tabucchi nasceu no dia 24 de Setembro de 1943. Morreu em 2012.)
"A Mulher de Porto Pim", Antonio Tabucchi
(Antonio Tabucchi nasceu no dia 24 de Setembro de 1943. Morreu em 2012.)
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
Para que servem os semáforos do Molhe, na Foz
Foto Hernâni Von Doellinger |
Os semáforos do Molhe, na exacta fronteira entre a Avenida de Montevideu com a Avenida do Brasil, na marginal marítima do Porto, são os semáforos mais desrespeitados a norte do Cabo Bojador. Os semáforos do Molhe são uma comédia e podem ser uma tragédia. Acende-se o amarelo e os carros desatam a acelerar como se a seguir viesse verde, passam o vermelho à seja ceguinho, e quem quiser que fuja. É uma velha tradição.
Nunca percebi, portanto, para que servem os semáforos do Molhe. Para semáforos certamente que não - era o que eu suspeitava -, e ontem fez-se-me luz. Os semáforos do Molhe são um poleiro porreirinho para os pombos e pombas da zona. Que lá pensaram naquela maneira de pensar que só os pombos e pombas é que sabem: se os do rés-do-chão cagam nos semáforos, porque é que nós não havemos de cagar também? E de alto.
Abel Botelho 2
Naquela tarde mormacenta de Fevereiro, João da Silveira embarcara em Lisboa, no Almería, com rota à América do Sul. Considerava-se um sem-pátria, agora, na sua boa e amorável terra, sobre cujo manso e carinhoso seio não fumegavam senão escombros; terra perdida e maldita, pelo jacobinismo vermelho do 5 de Outubro abalada nos seus fundamentos e furtada criminosamente ao seu destino. Todo o ambiente tradicional em que havia sido criado, este parasitário rebento do velho regime vira-o derruir de roda de si com estrondo. Crenças, privilégios, isenções, benesses e preferências, toda essa contrafeita armadura de iniquidade e obscurantismo que sustinha ainda de pé a combalida ficção monárquica, tudo rolara desfeito, num epilepsiado arranco, numa comoção formidável, enquanto invadia ferozmente o espaço em torno um caótico fumo de confusão e de treva... e a visão inquieta do futuro envolta num torvo mistério, como um polvoréu de ruína.
Tudo lhe havia quitado descaroavelmente esta estúpida ideia da Rpública: os cinquenta mil reisitos que ele, mensalmente, ia ou mandava com toda a pontualidade receber, a título dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito Público; as boas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês e pelo pai abominavelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro, já cantava também de papo; e até - o seu pensamento hipócrita rematava -, e até as nobres, as suavíssimas cores da bandeira de seus avós, esse azul calmo e esse branco ingénuo, símbolo irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas cores ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias.
"Amor Crioulo", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
Tudo lhe havia quitado descaroavelmente esta estúpida ideia da Rpública: os cinquenta mil reisitos que ele, mensalmente, ia ou mandava com toda a pontualidade receber, a título dum amanuensado hipotético na Junta do Crédito Público; as boas graças da sua apetecida noiva, a Laurita, filha dum acaudalado burguês e pelo pai abominavelmente educada, a qual agora, com o Afonso Costa no poleiro, já cantava também de papo; e até - o seu pensamento hipócrita rematava -, e até as nobres, as suavíssimas cores da bandeira de seus avós, esse azul calmo e esse branco ingénuo, símbolo irrefragável da alma nacional, ora via suplantadas por um vermelho de açougue e um verde de curral, duas tonalidades irreconciliáveis, duas cores ásperas, irritantes, heréticas, como punhais, como blasfémias.
"Amor Crioulo", Abel Botelho
(Abel Botelho nasceu no dia 23 de Setembro de 1854. Morreu em 1917.)
domingo, 21 de setembro de 2014
De pequenino é que se torce o pepino
Herberto Sales 2
Os dois homens começaram a descer a encosta. O velho Patuá vinha na frente. Era um cabra de ombros estreitos, grande bigode e pernas em arco, muito firmes ainda para a sua idade. O negro Guido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda a capanga de munição. Na semi-obscuridade da madrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos, encaixotando funebremente o rio. Os dois homens saltavam de uma pedra para outra, desciam pelos lajedões talhados quase a pique, subiam por íngremes atalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça de malva ou de velame, com uma agilidade de cabritos monteses. Agora, porém, tinham eles conseguido alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num passo regular, encolhidos nos capotes surrados.
O ar era frio e úmido.
- Será que ele passa hoje? - perguntou Guido.
- Tem de passar - respondeu o outro homem. - Não é possível que o santo dele seja tão forte.
- Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele...
- É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada.
"Emboscada", "Antologia Escolar de Contos Brasileiros", Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
O ar era frio e úmido.
- Será que ele passa hoje? - perguntou Guido.
- Tem de passar - respondeu o outro homem. - Não é possível que o santo dele seja tão forte.
- Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele...
- É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada.
"Emboscada", "Antologia Escolar de Contos Brasileiros", Herberto Sales
(Herberto Sales nasceu no dia 21 de Setembro de 1917. Morreu em 1999.)
sábado, 20 de setembro de 2014
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
Bacon and egos
O assunto era do mais profundo que pode haver: Talisca. José Mourinho falou e disse. Na passada, Jorge Jesus contou uma laracha que lhe contaram. Mourinho, sobranceiro e malcriado, chamou estúpido a Jesus. Jesus, inusitadamente humilde, ofereceu a outra a face e disse que não queria problemas com Mourinho. Graças a Deus, graças a Deus. Para desgraças já nos bastam a Ucrânia, o Afeganistão, o Iraque, a Síria, o Estado Islâmico, o ébola, o Citius, o BES, a colocação de professores e as primárias do PS.
Alberto de Lacerda
Hino ao Tejo
Ó Tejo das asas largas
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas de Lisboa
Ó coroa duma cidade maravilhosa
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro
Faixa antiga duma cidade mourisca
Fénix astro caravela liquida
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer
Deslizar sem desastres sem fado sem presságio
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicidade das coisas belíssimas
Nas tardes em que o sol te queima passo junto de ti
E chamo-te numa voz sem palavras marejada de lágrimas
Meu irmão mais velho
Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
Ó Tejo das asas largas
Pássaro lindo que se ouve em todas as ruas de Lisboa
Ó coroa duma cidade maravilhosa
Ó manto célebre nas cortes do mundo inteiro
Faixa antiga duma cidade mourisca
Fénix astro caravela liquida
Silêncio marulhante das coisas que vão acontecer
Deslizar sem desastres sem fado sem presságio
Tu ó majestoso ó Rei ó simplicidade das coisas belíssimas
Nas tardes em que o sol te queima passo junto de ti
E chamo-te numa voz sem palavras marejada de lágrimas
Meu irmão mais velho
Alberto de Lacerda
(Alberto de Lacerda nasceu no dia 20 de Setembro de 1928. Morreu em 2007.)
Porto de Leixões de portas abertas
Foto Hernâni Von Doellinger |
Amanhã é Dia do Porto de Leixões, que franqueia as portas a quem o queira visitar. A festa começa às 10 horas, com entrada pela Estação de Passageiros de Leça da Palmeira. Mais informação, aqui.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
Se conduzir não conduza
Havia uma lei que proibia os condutores de falarem ao telemóvel... quando conduziam. Lembro-me disso. Agora há uma lei que obriga os condutores a escreverem e lerem mensagens, a tirarem e a verem fotografias, a actualizarem o Facebook, a consultarem a Wikipédia e a falarem ao telemóvel... quando conduzem. É assim, não é?
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
terça-feira, 16 de setembro de 2014
E se Marinho e Pinto fosse para o caralho?
Marinho e Pinto diz que 4800 euros não dão para viver bem em Lisboa. Recomendo ao Senhor Doutor que mude de residência, por exemplo, para o caralho, onde, segundo consta, o custo de vida está muito mais em conta.
José Régio 2
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar - os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
"Poemas de Deus e do Diabo", José Régio
(José Régio nasceu no dia 17 de Setembro de 1901. Morreu em 1969.)
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Porque me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar - os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
"Poemas de Deus e do Diabo", José Régio
(José Régio nasceu no dia 17 de Setembro de 1901. Morreu em 1969.)
Pedi aos sonhos e saiu-me o Euromilhões
Foi aqui mesmo, acto público, pedi aos meus sonhos e aos meus mortos que me indicassem o caminho para o Euromilhões. Querem saber a melhor? Pedi na quinta e saiu-me na sexta, isto é que é serviço expresso - que é para eu aprender a não negar à partida uma ciência que não conheço, como muito bem me avisou aqui há tempos a extraordinária Alcina Lameiras.
É certo que não recebi mensagem nenhuma, não fui contactado do além, mas saiu-me o Euromilhões: dois números e uma estrela, qualquer coisa como sete euros e trinta e nove cêntimos, que valem muitíssimo mais assim por extenso. Com o devido respeito, e se não for abuso, peço aos meus idos um maior empenho na pontaria para a próxima. Entretanto, vou pôr uma esmolinha nas alminhas e continuo à escuta.
É certo que não recebi mensagem nenhuma, não fui contactado do além, mas saiu-me o Euromilhões: dois números e uma estrela, qualquer coisa como sete euros e trinta e nove cêntimos, que valem muitíssimo mais assim por extenso. Com o devido respeito, e se não for abuso, peço aos meus idos um maior empenho na pontaria para a próxima. Entretanto, vou pôr uma esmolinha nas alminhas e continuo à escuta.
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
Emilia Pardo Bazán
Las nubes, amontonadas y de un gris amoratado, como de tinta desleída, fueron juntándose, juntándose, sin duda a cónclave, en las alturas del cielo, deliberando si se desharían o no se desharían en chubasco. Resueltas finalmente a lo primero, empezaron por soltar goterones anchos, gruesos, legítima lluvia de estío, que doblaba las puntas de las hierbas y resonaba estrepitosamente en los zarzales; luego se apresuraron a porfía, multiplicaron sus esfuerzos, se derritieron en rápidos y oblicuos hilos de agua, empapando la tierra, inundando los matorrales, sumergiendo la vegetación menuda, colándose como podían al través de la copa de los árboles para escurrir después tronco abajo, a manera de raudales de lágrimas por un semblante rugoso y moreno.
Bajo un árbol se refugió la pareja. Era el árbol protector magnífico castaño, de majestuosa y vasta copa, abierta con pompa casi arquitectural sobre el ancha y firme columna del tronco, que parecía lanzarse arrogantemente hacia las desatadas nubes: árbol patriarcal, de esos que ven con indiferencia desdeñosa sucederse generaciones de chinches, pulgones, hormigas y larvas, y les dan cuna y sepulcro en los senos de su rajada corteza.
Al pronto fue útil el asilo: un verde paraguas de ramaje cobijaba los arrimados cuerpos de la pareja, guareciéndolos del agua terca y furiosa; y se reían de verla caer a distancia y de oír cómo fustigaba la cima del castaño, pero sin tocarles. Poco duró la inmunidad, y en breve comenzó la lluvia a correr por entre las ramas, filtrándose hasta el centro de la copa y buscando después su natural nivel. A un mismo tiempo sintió la niña un chorro en la nuca, y el mancebo llevó la mano a la cabeza, porque la ducha le regaba el pelo ensortijado y brillante. Ambos soltaron la carcajada, pues estaban en la edad en que se ríen lo mismo las contrariedades que las venturas.
- Se acabó - pronunció ella cuando todavía la risa le retozaba en los labios -. Nos vamos a poner como una sopa. Caladitos.
- El que se mete debajo de hoja dos veces se moja - respondió él sentenciosamente -. Larguémonos de aquí ahora mismo. Sé sitios mejores.
"La Madre Naturaleza", Emilia Pardo Bazán
(Emilia Pardo Bazán nasceu no dia 16 de Setembro de 1851. Morreu em 1921.)
Bajo un árbol se refugió la pareja. Era el árbol protector magnífico castaño, de majestuosa y vasta copa, abierta con pompa casi arquitectural sobre el ancha y firme columna del tronco, que parecía lanzarse arrogantemente hacia las desatadas nubes: árbol patriarcal, de esos que ven con indiferencia desdeñosa sucederse generaciones de chinches, pulgones, hormigas y larvas, y les dan cuna y sepulcro en los senos de su rajada corteza.
Al pronto fue útil el asilo: un verde paraguas de ramaje cobijaba los arrimados cuerpos de la pareja, guareciéndolos del agua terca y furiosa; y se reían de verla caer a distancia y de oír cómo fustigaba la cima del castaño, pero sin tocarles. Poco duró la inmunidad, y en breve comenzó la lluvia a correr por entre las ramas, filtrándose hasta el centro de la copa y buscando después su natural nivel. A un mismo tiempo sintió la niña un chorro en la nuca, y el mancebo llevó la mano a la cabeza, porque la ducha le regaba el pelo ensortijado y brillante. Ambos soltaron la carcajada, pues estaban en la edad en que se ríen lo mismo las contrariedades que las venturas.
- Se acabó - pronunció ella cuando todavía la risa le retozaba en los labios -. Nos vamos a poner como una sopa. Caladitos.
- El que se mete debajo de hoja dos veces se moja - respondió él sentenciosamente -. Larguémonos de aquí ahora mismo. Sé sitios mejores.
"La Madre Naturaleza", Emilia Pardo Bazán
(Emilia Pardo Bazán nasceu no dia 16 de Setembro de 1851. Morreu em 1921.)
domingo, 14 de setembro de 2014
Guerra Junqueiro
A moleirinha
Pela estrada plana, toque, toque, toque,
(Guerra Junqueiro nasceu no dia 15 de Setembro de 1850. Morreu em 1923.)
Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque,
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho
De manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.
Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...
Toque, toque, toque, como se espaneja
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!
Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!...
Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer doutrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me, quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...
Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!
"Os Simples", Guerra Junqueiro
"Os Simples", Guerra Junqueiro
(Guerra Junqueiro nasceu no dia 15 de Setembro de 1850. Morreu em 1923.)
Bocage 2
Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles que não fazem falta,
Verbi gratia o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade;
Não quero funeral comunidade,
Que engrole subvenites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade;
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro".
(Bocage nasceu no dia 15 de Setembro de 1765. Morreu em 1805.)
Mais um daqueles que não fazem falta,
Verbi gratia o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade;
Não quero funeral comunidade,
Que engrole subvenites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade;
Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:
"Aqui dorme Bocage, o putanheiro;
Passou vida folgada e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro".
(Bocage nasceu no dia 15 de Setembro de 1765. Morreu em 1805.)
sábado, 13 de setembro de 2014
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
Natália Correia 2
Já as primeiras cousas são chegadas/I
Tanta foice isto é coice desconfio...
Tanto de marx martelar já cansa.
Adrede é labirinto não me fio
no fio que o comício ao coro lança.
De tanto ruminar tanto Rossio
numa canga aguilhando tanta esperança.
Tanto poder ao povo com feitio
de espezinhá-lo depois da governança.
Tanta denúncia. É a pedagogia
da Revolução que o excremento avia
e não chegámos ao último terceto.
Recém-nascida apenas deste em cabra
Ó Liberdade! Não sei como isto acaba,
não sei como acabar este soneto.
"Epístola aos Iamitas", Natália Correia
(Natália Correia nasceu no dia 13 de Setembro de 1923. Morreu em 1993.)
Tanta foice isto é coice desconfio...
Tanto de marx martelar já cansa.
Adrede é labirinto não me fio
no fio que o comício ao coro lança.
De tanto ruminar tanto Rossio
numa canga aguilhando tanta esperança.
Tanto poder ao povo com feitio
de espezinhá-lo depois da governança.
Tanta denúncia. É a pedagogia
da Revolução que o excremento avia
e não chegámos ao último terceto.
Recém-nascida apenas deste em cabra
Ó Liberdade! Não sei como isto acaba,
não sei como acabar este soneto.
"Epístola aos Iamitas", Natália Correia
(Natália Correia nasceu no dia 13 de Setembro de 1923. Morreu em 1993.)
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Dia do Porto de Leixões 2014
Foto Hernâni Von Doellinger |
De hoje a oito, sábado, dia 20 de Setembro de 2014. O Porto do Leixões abre portas a quem o quiser visitar. Mais informação e programa, aqui.
Aquilino Ribeiro
O vento, que é um pincha-no-crivo
devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim
parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para
fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar.
Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e
imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da
Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que
pára-quedista!
(Aquilino Ribeiro nasceu no dia 13 de Setembro de 1885. Morreu em 1963.)
Precipitado
tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se um instante e ensaiou um
voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a
terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em
cima de uma fraga, ligeiro como um tira-olhos.
Mas
novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a
aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe.
Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do
mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de
homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e
engolisse.
"A Casa Grande de Romarigães", Aquilino Ribeiro
quinta-feira, 11 de setembro de 2014
Os sonhos são como o algodão, hidrófilos
Ultimamente dá-me para sonhar com pessoas que já morreram. Pessoas de quem gosto - familiares e amigos, sobretudo amigos. Sou um simples, acho que são saudades. Mas dizem-me que não, que o assunto é muito mais complicado, garantem-me que os sonhos querem dizer coisas, significam, e que não enganam. Nos sonhos está lá tudo, e tudo acaba por bater certo.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe. Pela merda que me tem calhado em sorte nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado, e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que o Euromilhões é que me convinha. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Passo à escuta.
Sonhar com pessoas amigas que já morreram, falar com elas no sonho, explicam-me que é o melhor que me podia acontecer. É o pré-aviso de que está aí a rebentar-me nas mãos uma fartura de boas notícias, um mar de felicidade e saúde como o aço para mim e para os meus. O que é preciso é estar atento aos recados que os defuntos da corda me querem segredar. Isto é a regra geral, científica, embora possa parecer o horóscopo.
Não sei se esta tão conveniente interpretação dos sonhos com mortos também vale para Portugal e para vivos chamados Hernâni Von Doellinger naturais de Fafe. Pela merda que me tem calhado em sorte nos últimos tempos, suspeito que não, mas cá fico à espera de melhores dias.
Tenho alguma pressa, confesso, porque se uma coisa sei de certeza é que os sonhos padecem de prazo de validade. Um gajo deita-se uma noite moço e convencido de que os sonhos molhados até são um acontecimento, vá lá, engraçaaaaado, e acorda de manhã ancião e alagado em mijo derivado à incontinência urinária. A vida é tão breve, não foi?
Entretanto, gostaria de aproveitar a oportunidade para comunicar aos meus sonhos que o Euromilhões é que me convinha. O jackpot do jackpot, se fazem favor. Passo à escuta.
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
terça-feira, 9 de setembro de 2014
Nicolau Tolentino 2
A carnal tentação desenfreada,
Que ao sangue quente alta justiça pede,
Fez com que eu, embrulhando-me na rede,
Subisse de uma Puta a infame escada.
Ligeiras pulgas saltam de emboscada,
Fartando em mim de sangue humano a sede;
Arde a vela, pregada na parede,
Já de antigos morrões afogueada.
Saiu da alcova a desgrenhada Fúria,
Respirando venal sensualidade,
Vil desalinho, sórdida penúria.
Muito pode a pobreza e a porquidade!
Arriei as bandeiras à luxúria,
Jurei no altar de Vénus castidade.
Nicolau Tolentino
(Nicolau Tolentino nasceu no dia 10 de Setembro de 1740. Morreu em 1811.)
Que ao sangue quente alta justiça pede,
Fez com que eu, embrulhando-me na rede,
Subisse de uma Puta a infame escada.
Ligeiras pulgas saltam de emboscada,
Fartando em mim de sangue humano a sede;
Arde a vela, pregada na parede,
Já de antigos morrões afogueada.
Saiu da alcova a desgrenhada Fúria,
Respirando venal sensualidade,
Vil desalinho, sórdida penúria.
Muito pode a pobreza e a porquidade!
Arriei as bandeiras à luxúria,
Jurei no altar de Vénus castidade.
Nicolau Tolentino
(Nicolau Tolentino nasceu no dia 10 de Setembro de 1740. Morreu em 1811.)
António Sardinha
Velho motivo
Soneto de Jacob, pastor antigo,
- soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!
O que eu servira para viver contigo,
- tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
E vou sofrendo a minha pena amarga,
- pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!
"Chuva da Tarde", António Sardinha
(António Sardinha nasceu no dia 9 de Setembro de 1887. Morreu em 1925.)
Soneto de Jacob, pastor antigo,
- soneto de Raquel, serrana bela...
Oh! quantas vezes o relembro e digo,
pensando em ti, como se foras Ela!
O que eu servira para viver contigo,
- tão doce, tão airosa e tão singela!
Assim, distante do teu rosto amigo,
em torturar-me a ausência se desvela!
E vou sofrendo a minha pena amarga,
- pena que não me deixa nem me larga,
bem mais cruel que a de Jacob pastor!
Raquel não era dele, e sempre a via,
enquanto que eu não vejo, noite e dia,
aquela que me tem por seu senhor!
"Chuva da Tarde", António Sardinha
(António Sardinha nasceu no dia 9 de Setembro de 1887. Morreu em 1925.)
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
domingo, 7 de setembro de 2014
Camillo de Jesus Lima
Solidão uma conversa! eu estou é no meio do mundo.
De que serve trancar a porta?
De que serve botar as mãos no ouvido?
De que serve fazer papel de surdo que não quer ouvir?
Gritos de homens na rua entram, apesar de tudo,
Uivos de seviciados entram, apesar de tudo.
Solidão uma conversa! eu estou é no meio do mundo.
Os enucos estão fazendo flores nas torres de marfim,
Mas eu estou é no meio do mundo.
O rumor das ruas confunde-se ao ritmo do teclado da máquina.
Metralhadoras escrevem poemas no teclado da máquina.
Cavalos estão batendo patas no teclado da máquina.
Gente lutando,
Suando,
Amando, nas cinco partes do mundo.
Quem pode escrever poemas de solidão,
Se portas trancadas nada valem,
Se mãos nos ouvidos nada valem,
Se, fazer o papel do surdo que não quer ouvir, nada vale,
Se os olhos dos morimbundos ficam, no alto, iluminando as páginas,
Se mãos alvas vem acender o cigarro, devagarinho,
Se o rumor da rua vem fazer coro ao ritmo do teclado da máquina?
Solidão uma conversa! eu estou é no meio do mundo.
Camillo de Jesus Lima
(Camillo de Jesus Lima nasceu no dia 8 de Setembro de 1912. Morreu em 1975.)
Camillo de Jesus Lima
(Camillo de Jesus Lima nasceu no dia 8 de Setembro de 1912. Morreu em 1975.)
Não há nada como ter mais que fazer
São 22h44. Acabo de saber que a Selecção da Albânia ganhou 1-0 à Selecção de Portugal. Não é nada que me admire.
sábado, 6 de setembro de 2014
Camilo Pessanha 2
Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
"Clepsidra", Camilo Pessanha
(Camilo Pessanha nasceu no dia 7 de Setembro de 1867. Morreu em 1926.)
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.
Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.
Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.
Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro a olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.
Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.
"Clepsidra", Camilo Pessanha
(Camilo Pessanha nasceu no dia 7 de Setembro de 1867. Morreu em 1926.)
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Pedro Homem de Mello 2
Marcha fúnebre
Vinham dois, vinham quarenta
Vinham já cem mil talvez...
E uma poeira sangrenta
Cobre o solo português
De Este a Oeste, Norte a Sul,
Tais como as ondas do mar,
Olhar negro, ontem azul,
Vinham deitar-se a afogar.
Vinham mudos e sombrios
Com a noite na garganta
Vinham cegos como os rios
Como a sede quando espanta
Vinham sem saber onde iam,
Mergulhando o corpo todo
Nas próprias veias que abriam
Como quem se afunda em lodo.
Eram eles a fronteira
Da pátria sem pensamento
Como escravos sem bandeira
Tendo por bandeira o vento.
Cidade, cidade minha,
Quem o havia de dizer?
Atrás de um, mais outro vinha...
E vinha para morrer!...
"Poemas Roubados", Pedro Homem de Mello
(Pedro Homem de Mello nasceu no dia 6 de Setembro de 1904. Morreu em 1984.)
Vinham dois, vinham quarenta
Vinham já cem mil talvez...
E uma poeira sangrenta
Cobre o solo português
De Este a Oeste, Norte a Sul,
Tais como as ondas do mar,
Olhar negro, ontem azul,
Vinham deitar-se a afogar.
Vinham mudos e sombrios
Com a noite na garganta
Vinham cegos como os rios
Como a sede quando espanta
Vinham sem saber onde iam,
Mergulhando o corpo todo
Nas próprias veias que abriam
Como quem se afunda em lodo.
Eram eles a fronteira
Da pátria sem pensamento
Como escravos sem bandeira
Tendo por bandeira o vento.
Cidade, cidade minha,
Quem o havia de dizer?
Atrás de um, mais outro vinha...
E vinha para morrer!...
"Poemas Roubados", Pedro Homem de Mello
(Pedro Homem de Mello nasceu no dia 6 de Setembro de 1904. Morreu em 1984.)
quinta-feira, 4 de setembro de 2014
Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas 7
Aqui ninguém morre. "Telefones há aí uns sete, mas não trabalham". No Posto e na Adega do Ferreira estão lá, mas apenas pintados em paredes de casas periclitantes. "Quando contece qualquer coisa vou lá fora, subo aos Cubres para telefomar a chamar o médico, mas nunca aconteceu nada de grave", diz-nos o guardador de amêijoas. Quando foi do nascimento da filha, "era para sair para fora mas não houve tempo". Chamou uma tia. Quando a tia chegou, "já a rapariga berrava". Outra vez, uma moça estrangeira "trincou-se na cabeça e foi-se aos Cubres chamar o helicóptero". Estiveram a pé até às cinco da manhã à espera do que não veio, e o médico chegou apenas às seis. E mortes? E o cemitério ao deus-dará? "Não me lembro de alguém ter sido sepultado ali... a não ser um desconhecido que apareceu morto no mar. Do terramoto para cá, não morreu ninguém", presta contas o Senhor Luís.
A Caldeira teve em tempos o seu próprio pároco. Hoje recebe a visita de um padre uma semana em cada ano, a que antecede e prepara a solenidade do Senhor Santo Cristo dos Milagres, no primeiro domingo de Setembro. Então, sim, a fajã enche-se dos naturais, há festa de arromba, "filarmónicas e tudo". Mas estes são católicos dos rijos e de expedientes. Não passam domingo sem missa, e na sua igreja. Um pouco antes das dez, o Senhor Luís pega no rádio e, com a família, cumpre o curto trajecto que o separa do templo. É geralmente acompanhado pelos outros três ou quatro vizinhos, mas já aconteceu muitas vezes estarem ali só os da casa. Sintoniza a RDP-Açores e preparam-se para a missa da Sé de Angra. Tudo ritualmente. "Como se tivéssemos padre à nossa frente, a mesma coisa". As respostas, os silêncios, os gestos, a reverência, a atenção. Justifica: "Gosto de ir à igreja. Nem a televisão me interessa, que dá a missa às três e meia da tarde, vejam lá!, e em casa eu não estou com atenção".
Ao fim da tarde, tempo apertado para mais um cafezinho, "da terra", e uma angélica, "aguardente da terra", que nos anima ao regresso. A hora é de pressas, pretendemos fazer a jornada até aos Cubres, pelo seguro, com a luz do sol. Deixamos para trás, queremos desconfiar que já com saudades, a intrigante Fajã da Caldeira, sítio de memória, do passado, onde a vida corre devagar e a morte parece não ter visto de entrada.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Termino hoje a repetição do texto então publicado.)
A Caldeira teve em tempos o seu próprio pároco. Hoje recebe a visita de um padre uma semana em cada ano, a que antecede e prepara a solenidade do Senhor Santo Cristo dos Milagres, no primeiro domingo de Setembro. Então, sim, a fajã enche-se dos naturais, há festa de arromba, "filarmónicas e tudo". Mas estes são católicos dos rijos e de expedientes. Não passam domingo sem missa, e na sua igreja. Um pouco antes das dez, o Senhor Luís pega no rádio e, com a família, cumpre o curto trajecto que o separa do templo. É geralmente acompanhado pelos outros três ou quatro vizinhos, mas já aconteceu muitas vezes estarem ali só os da casa. Sintoniza a RDP-Açores e preparam-se para a missa da Sé de Angra. Tudo ritualmente. "Como se tivéssemos padre à nossa frente, a mesma coisa". As respostas, os silêncios, os gestos, a reverência, a atenção. Justifica: "Gosto de ir à igreja. Nem a televisão me interessa, que dá a missa às três e meia da tarde, vejam lá!, e em casa eu não estou com atenção".
Ao fim da tarde, tempo apertado para mais um cafezinho, "da terra", e uma angélica, "aguardente da terra", que nos anima ao regresso. A hora é de pressas, pretendemos fazer a jornada até aos Cubres, pelo seguro, com a luz do sol. Deixamos para trás, queremos desconfiar que já com saudades, a intrigante Fajã da Caldeira, sítio de memória, do passado, onde a vida corre devagar e a morte parece não ter visto de entrada.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Termino hoje a repetição do texto então publicado.)
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas 6
Já foi uma grande aldeia, vê-se. Mil novecentos e oitenta, o terramoto de 1 de Janeiro, foi o tempo da viragem: teve já cerca de três centenas de habitantes regulares, e por ocasião do cataclismo aqui moravam para cima de cem pessoas. Mas esta foi uma das zonas mais flageladas, e o que hoje se vê, se sente, é uma fajã-fantasma. "Casas por consertar, caminhos por amanhar", mostra o nosso cicerone, o cemitério abandonado às silvas e às ervas, ruelas - muitas, ao contrário dos Vimes e de São João - desertas. São somente três as casas ocupadas durantes todo o ano e haverá aí mais uma dúzia em condições de habitabilidade. O resto é ruína.
Fica o cenário, belo, esmagador - a serra, luxuriante, disfarçada de tropical, caindo das nuvens a pique e apertando aquele espaço mínimo contra o mar. A unir as duas paredes, grossos fios de arame, espécie de teleféricos, por onde as lenhas, as mondas para estrumes e as ervagens ou folhagens eram lançadas em molhos, presas a um gancho, da montanha para a fajã.
Por causa das dificuldades de acesso, aqui não há permuta de Inverno com os de cima. Quem está, está; quem não está, não vem. São seis ou sete os habitantes a tempo inteiro, todos idosos, à excepção da casa do Senhor Luís. Passamos por dois deles. Absortos, tristes, resignados.
O guarda da lagoa, nos quarenta, é casado e tem uma filha, Suzete Maria, a fazer dez anos. Cada segunda-feira leva-a "lá fora" à escola e vai por ela à sexta. Mas nem esta separação o impele a desertar. Só a tropa o arrancou da fajã onde nasceu, fez a escola - "no meu tempo havia escola!" - e cresceu. "Por ora não quero sair. Eu gosto de estar aqui, isto é um sossego. Se não gostasse - e remata, pragmático -, já tinha ido".
Luís tem o seu gerador privativo e outros apetrechos da civilização. Para além da função pública, governa-se também com as suas trinta, quarenta cabeças de gado. As provisões vai buscá-las à Calheta ou à Ribeira Seca. Tem dois barquitos, mas raramente são hipótese de transporte. É que, "mesmo quando o mar deixa, não há marinheiros, há pouca gente". Por isso abala com dois cavalos, inteligentemente alinhados e atentos, pelo perigoso caminho que horas antes percorrêramos, até à Fajã dos Cubres. Deixa ali os animais e segue viagem de camioneta. Regressa às vezes pela noite, ele e as bestas carregados. E repete todas as semanas.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado e a fotografia de hoje é mais um extra. Continua amanhã.)
Fica o cenário, belo, esmagador - a serra, luxuriante, disfarçada de tropical, caindo das nuvens a pique e apertando aquele espaço mínimo contra o mar. A unir as duas paredes, grossos fios de arame, espécie de teleféricos, por onde as lenhas, as mondas para estrumes e as ervagens ou folhagens eram lançadas em molhos, presas a um gancho, da montanha para a fajã.
Por causa das dificuldades de acesso, aqui não há permuta de Inverno com os de cima. Quem está, está; quem não está, não vem. São seis ou sete os habitantes a tempo inteiro, todos idosos, à excepção da casa do Senhor Luís. Passamos por dois deles. Absortos, tristes, resignados.
O guarda da lagoa, nos quarenta, é casado e tem uma filha, Suzete Maria, a fazer dez anos. Cada segunda-feira leva-a "lá fora" à escola e vai por ela à sexta. Mas nem esta separação o impele a desertar. Só a tropa o arrancou da fajã onde nasceu, fez a escola - "no meu tempo havia escola!" - e cresceu. "Por ora não quero sair. Eu gosto de estar aqui, isto é um sossego. Se não gostasse - e remata, pragmático -, já tinha ido".
Luís tem o seu gerador privativo e outros apetrechos da civilização. Para além da função pública, governa-se também com as suas trinta, quarenta cabeças de gado. As provisões vai buscá-las à Calheta ou à Ribeira Seca. Tem dois barquitos, mas raramente são hipótese de transporte. É que, "mesmo quando o mar deixa, não há marinheiros, há pouca gente". Por isso abala com dois cavalos, inteligentemente alinhados e atentos, pelo perigoso caminho que horas antes percorrêramos, até à Fajã dos Cubres. Deixa ali os animais e segue viagem de camioneta. Regressa às vezes pela noite, ele e as bestas carregados. E repete todas as semanas.
A descida para a Fajã da Caldeira |
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado e a fotografia de hoje é mais um extra. Continua amanhã.)
Tertúlia fotográfica com Gaspar de Jesus
Dia 11 de Outubro de 2014, das 15 horas às 18h30, no Auditório do Parque Biológico de Gaia. Participação gratuita e limitada a um máximo de 40 pessoas. Inscrições em pereiralopesffa@gmail.com. Iniciativa no âmbito do Festival de Fotografia de Avintes, que decorre entre 3 de Outubro e 1 de Novembro.
Gaspar de Jesus, fotojornalista e professor de Fotografia, trabalhou em A Capital, O Primeiro de Janeiro, A Bola, TV Guia, Notícias Magazine e Autores. Artista premiado, realizou 18 exposições individuais e participou em inúmeras exposições colectivas, dentro e fora do País. Foi formador em cursos do FAOJ e integrou o quadro de formadores do IPF-Porto. É co-autor dos livros "Portugal e o Ambiente", "Reencontros - Portugal em Fotografia", "Daqui Houve Nome Portugal", "21 Retratos do Porto para o Século XXI", "Porto Cidade com Alma" e "Porto sem Filtro". É autor do blogue Arte Fotográfica e promotor das tertúlias Com a Arte no Olhar.
terça-feira, 2 de setembro de 2014
Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas 5
O guardador de amêijoas. É do outro lado da ilha, no norte. Atravessamos a serra de costa a costa e iniciamos a descida pela Ponta Norte Pequena, deslocando-nos para leste. Passamos ao de longe pela Fajã do Ouvidor e, apontados ao destino, obrigamo-nos à paragem para, por momentos, gozarmos uma paisagem verdadeiramente de postal ilustrado: à nossa frente, muito ao fundo, agasalhada pelo leve manto da transpiração da terra, a visão magnífica das fajãs dos Cubres, em primeiro plano, e da Caldeira, ao longe, adornadas pelas suas lagoas. O automóvel desce-nos até aos Cubres e por aí se fica.
A vista alcança a Graciosa e a Terceira, do lado de lá do canal, enquanto desafiamos - encosta acima, encosta abaixo - uma marcha forçada por carreiro tortuoso, íngreme, pedras soltas e traiçoeiras, lajedos puídos, um pé de cada vez. Penedia e mar espreitam perigosamente do abismo, numa companhia incómoda, quase até ao fim do percurso. Na fase terminal, então já ao nível do oceano, vistoriamos as ruínas das fajãs do Belo e dos Tijolos e, num pulo, pomo-nos na Fajã da Caldeira do Santo Cristo.
Fora uma bem suada hora de caminhada. Paramos e respiramos. Vemos, ouvimos, um espaço breve, belo, esquecido.
Passamos pelo exterior de uma lagoa subterrânea, dentro de uma furna abobadada, com acesso por um estreito corredor, também subterrâneo, dizem-nos, mas andamos é para a lagoa de água salgada, onde se reproduzem as célebres amêijoas da fajã. Pelo seu sabor, pelo seu tamanho, são prémio de excelência para o esforço da viagem. Ali nos encontramos com o Senhor Luís, o homem que há sete anos guarda a lagoa. Será o nosso guia e quem nos vai contar as singularidades da mais diferente, típica e misteriosa de todas as fajãs.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado e a fotografia de hoje é um extra. Continua amanhã.)
A vista alcança a Graciosa e a Terceira, do lado de lá do canal, enquanto desafiamos - encosta acima, encosta abaixo - uma marcha forçada por carreiro tortuoso, íngreme, pedras soltas e traiçoeiras, lajedos puídos, um pé de cada vez. Penedia e mar espreitam perigosamente do abismo, numa companhia incómoda, quase até ao fim do percurso. Na fase terminal, então já ao nível do oceano, vistoriamos as ruínas das fajãs do Belo e dos Tijolos e, num pulo, pomo-nos na Fajã da Caldeira do Santo Cristo.
Fora uma bem suada hora de caminhada. Paramos e respiramos. Vemos, ouvimos, um espaço breve, belo, esquecido.
Passamos pelo exterior de uma lagoa subterrânea, dentro de uma furna abobadada, com acesso por um estreito corredor, também subterrâneo, dizem-nos, mas andamos é para a lagoa de água salgada, onde se reproduzem as célebres amêijoas da fajã. Pelo seu sabor, pelo seu tamanho, são prémio de excelência para o esforço da viagem. Ali nos encontramos com o Senhor Luís, o homem que há sete anos guarda a lagoa. Será o nosso guia e quem nos vai contar as singularidades da mais diferente, típica e misteriosa de todas as fajãs.
Luís, guardador de amêijoas, é o senhor da direita |
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado e a fotografia de hoje é um extra. Continua amanhã.)
Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas 4
Tia Maricas e o café. Era a hora da subida. Próxima paragem na Fajã de São João. Muito mais afastada da estrada principal, alcatroada, para lá chegarmos teremos de percorrer uma considerável distância pelo pó de uma via em terra barrenta, mas ainda assim de carro. O pior é a descida propriamente dita. Íngreme de meter medo e, ainda por cima, escangalhada por uma das habituais derrocadas. Restava o velho caminho alternativo, que, logo no seu início, avisava em letreiro artístico: "Descidas: às horas. Subidas: às meias". Esperámos pela hora e descemos, obrigados a complicadas manobras e ao recurso à mais eficiente das perícias. E outra vez encontrámos o mesmo silêncio, o recolhimento de um templo.
A fajã já teve escola e padre, mas hoje não vivem aqui permanentemente mais do que vinte pessoas, velhas quase todas e sobreviventes de pensões e da agricultura. Uma parte importante das cerca de duzentas casas e respectivas propriedades pertence a famílias da freguesia de Santo Antão, da zona alta da ilha, que descem com tudo, haveres e gado, para se guardarem dos rigores de janeiros e fevereiros, ou no Verão para as vindimas. É que - explica-nos os Senhor Libório, conhecedor do que diz - "lá em cima o tempo mata tudo e cá em baixo é o melhor que há para as coisas do cedo".
É assim, divididos entre a fajã e a serra, que vivem os dos Vimes e de São João. Na serra do Topo têm a sua cooperativa de lacticínios, onde é produzido o excelente queijo de São Jorge, de características originais e famoso pela sua qualidade invulgar e sabor único. E cá em baixo estão as sua vinhas - designação genérica para os quintais em socalcos -, ricas em hortícolas e frutos temporãos. Mostra-nos, na Fajã de São João, o Senhor Libório: banana, vinho, tomate, tangerina, trigo, figo e, claro, café.
Terá vindo do Brasil, "há-de haver cem anos", diz-nos a Tia Maricas, que nos vai ensinar tudo sobre o café das fajãs. Num discurso simples mas fluente, inteligente, filosófico às vezes, quase sempre sábio. "O café há que apanhá-lo quando as bagas estão vermelhas, a caminhar para o castanho. É descascado à mão, mas antes disso, quando está bem seco, esfrega-se em cima de uma soleta". Depois vai a queimar, com todo o cuidado, porque não pode ficar "nem muito encruado nem muito torrado". Esta operação é geralmente feita numa meia esfera em ferro, serrada de uma das muitas bóias que vão dando à costa. "Leva-se um ou dois dias ao sol, a secar, senão amarga, e então pode-se relar". A seguir é bebê-lo e - mais pelo paladar do que pela cor ou pelo aroma - apreciá-lo como merece, calmamente, repetindo, enquando vamos aprendendo a vida com a Tia Maricas.
Também ela desce de "lá fora", Santo Antão, para as suas temporadas de fajã, porque "isto é melhor que uma sanatório: já aqui foram curadas muitas tuberculoses". E passa às provas. Por exemplo, a história de "duas raparigas, rapariguinhas de 18 anos, tísicas, mal-enganadas pelo médico, que, ciente da falta de cura, as mandou por descargo" para a Fajã de São João. "O caso é que, tratadas pelo sol e pelos ares, bem comidas e resguardadas, ali ganharam cores e saúde e se apresentaram, tempos mais tarde e sem mancha de doença, ao doutor, que afinal já não as esperava ver vivas". A certidão do que diz atesta-a Tia Maricas com os seus bem vividos e lúcios 92 anos.
São horas e meia, tempo exacto para a subida e o regresso à Calheta. O dia seguinte está guardado para a Fajã da Caldeira do Santo Cristo, empreitada que nos reclama bem descansados.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado. Amanhã há mais.)
A fajã já teve escola e padre, mas hoje não vivem aqui permanentemente mais do que vinte pessoas, velhas quase todas e sobreviventes de pensões e da agricultura. Uma parte importante das cerca de duzentas casas e respectivas propriedades pertence a famílias da freguesia de Santo Antão, da zona alta da ilha, que descem com tudo, haveres e gado, para se guardarem dos rigores de janeiros e fevereiros, ou no Verão para as vindimas. É que - explica-nos os Senhor Libório, conhecedor do que diz - "lá em cima o tempo mata tudo e cá em baixo é o melhor que há para as coisas do cedo".
É assim, divididos entre a fajã e a serra, que vivem os dos Vimes e de São João. Na serra do Topo têm a sua cooperativa de lacticínios, onde é produzido o excelente queijo de São Jorge, de características originais e famoso pela sua qualidade invulgar e sabor único. E cá em baixo estão as sua vinhas - designação genérica para os quintais em socalcos -, ricas em hortícolas e frutos temporãos. Mostra-nos, na Fajã de São João, o Senhor Libório: banana, vinho, tomate, tangerina, trigo, figo e, claro, café.
Terá vindo do Brasil, "há-de haver cem anos", diz-nos a Tia Maricas, que nos vai ensinar tudo sobre o café das fajãs. Num discurso simples mas fluente, inteligente, filosófico às vezes, quase sempre sábio. "O café há que apanhá-lo quando as bagas estão vermelhas, a caminhar para o castanho. É descascado à mão, mas antes disso, quando está bem seco, esfrega-se em cima de uma soleta". Depois vai a queimar, com todo o cuidado, porque não pode ficar "nem muito encruado nem muito torrado". Esta operação é geralmente feita numa meia esfera em ferro, serrada de uma das muitas bóias que vão dando à costa. "Leva-se um ou dois dias ao sol, a secar, senão amarga, e então pode-se relar". A seguir é bebê-lo e - mais pelo paladar do que pela cor ou pelo aroma - apreciá-lo como merece, calmamente, repetindo, enquando vamos aprendendo a vida com a Tia Maricas.
Também ela desce de "lá fora", Santo Antão, para as suas temporadas de fajã, porque "isto é melhor que uma sanatório: já aqui foram curadas muitas tuberculoses". E passa às provas. Por exemplo, a história de "duas raparigas, rapariguinhas de 18 anos, tísicas, mal-enganadas pelo médico, que, ciente da falta de cura, as mandou por descargo" para a Fajã de São João. "O caso é que, tratadas pelo sol e pelos ares, bem comidas e resguardadas, ali ganharam cores e saúde e se apresentaram, tempos mais tarde e sem mancha de doença, ao doutor, que afinal já não as esperava ver vivas". A certidão do que diz atesta-a Tia Maricas com os seus bem vividos e lúcios 92 anos.
São horas e meia, tempo exacto para a subida e o regresso à Calheta. O dia seguinte está guardado para a Fajã da Caldeira do Santo Cristo, empreitada que nos reclama bem descansados.
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado. Amanhã há mais.)
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
Fajãs de São Jorge: as terras esquecidas 3
As colchas dos Vimes. Preparamo-nos para baixar à Fajã dos Vimes, hoje em dia a mais populosa, nas suas perto de cem pessoas. Antes, paramos à beira da estrada e bebemos um pouco de "água azeda" numa nascente tida como de virtudes estomacais. O alcatrão continua, lento, descendo cada vez mais, quase até à fajã. Acompanhando estrada abaixo o Rio dos Inhames, vamos desaguar, agora por poeirento caminho de terra, a uma espécie de terreiro da igreja. Fechada.
Só para ver os inhames do Rio, vale a pena descer à fajã. Mas o que ali nos levara fora a fama das colchas de tear ou colchas de ponto alto, uma das manifestações mais características do artesanato dos Açores.
O inhame é um tubérculo, rico em amido e com um gosto ligeiramente adocicado, muito utilizado e apreciado na cozinha regional. E os dos Vimes são considerados os melhores de São Jorge, talvez do arquipélago. As plantas, de folhas enormes, verdíssimas, ocupam uma considerável porção de terreno encharcadiço - o Rio - situada a meio da fajã, na parte inclinada, regadas pelas águas esparramadas de uma nascente que brota a meio da encosta. Em tempos, iam morrer a pitorescos moinhos de água, hoje parcialmente destruídos.
Mas fôramos pelas colchas. Feitas em pura lã, "lã da terra", de um colorido intenso, laboriosamente confeccionadas em toscos teares de madeira, utilizando técnicas ancestrais. Haveria que visitar as três tecedeiras da fajã, ou ali se arranjaria ciumeira desgraçada. Entornar-se-ia todo aquele sossego, aquela paz de retiro. Cumprimos.
Dona Rosa passou já os 85 anos, que não lhe roubaram a beleza do rosto. Com impecável lucidez, conta que terá sido das primeiras, se não a primeira, a fazer as colchas da Fajã dos Vimes. Estabeleceu-se "há mais de 60 anos, era ainda solteira". Mas começou a tecer com 15. "Com isto", e desvenda, orgulhosa, a sua primeira peça, uma riquíssima colcha religiosamente guardada e a que o tempo parece ter concedido ainda mais encanto. E vai exibindo colchas e toalhas e tapetes e saias de padrões berrantes ou discretos, de ractângulos e quadrados, cornucópias ou flores. "Fiz muitos desenhos, cheguei a ter sete pupilas e três teares a trabalhar". Teares que ela própria alargou, para poder executar obras de maior dimensão.
Lamenta-se é que a saúde que lhe falta a obrigue agora à inactividade. Mas também se queixa da fuga dos da sua fajã. "Até a escola, onde a minha filha é professora, vai fechar: já nem crianças há".
A prosperar está Dona Alzira Nunes. Tem três teares, trabalhados por três adultos mais uma miúda, e, garante, "a procura tem aumentado". Tudo o que faz é venda garantida e quase que não resta tempo para cumprir encomendas. Ideia que, de resto, a última das tecedeiras, Dona Maria Alexandrina, avaliza. "Haja quem teça, que quem compre há sempre", diz. Tece há pouco tempo e, numa sucessão pouco natural, continua a obra da sua filha, Jacinta, essa considerada como artista e por isso a trabalhar e a expor em Ponta Delgada, São Miguel.
Embora existam desenhos com mais de cem anos, que continuam a ser requisitados, cada tecedeira executa, as mais das vezes, as suas próprias criações. Maria Alexandrina folheia alguns dos seus feitios: "rosas e quadrados", "toda branca", "cinzento e branco", "novo", "da Calheta"... E também ela alterou os seus teares, "inventando" o pente alargado, para trabalhos de 2,5 por 3 metros.
Optimismo mora ali. A arte não vai morrer. Alexandrina tem três pessoas nos seus teares, mas "há-de vir mais gente para aprender, que a carreira já cá chega". Pelo que lhe toca, dá o exemplo: "Tenho uma amarração a estas coisas, que não as deixo". Como à fajã - que nem o facto de ter luz eléctrica (por gerador comunitário e de graça) somente duas a três horas por dia, e mais alguma por noite, a desconsola. "Olhe, já estive na América, mas ainda não vi sítio melhor que este".
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado. Amanhã há mais.)
Só para ver os inhames do Rio, vale a pena descer à fajã. Mas o que ali nos levara fora a fama das colchas de tear ou colchas de ponto alto, uma das manifestações mais características do artesanato dos Açores.
O inhame é um tubérculo, rico em amido e com um gosto ligeiramente adocicado, muito utilizado e apreciado na cozinha regional. E os dos Vimes são considerados os melhores de São Jorge, talvez do arquipélago. As plantas, de folhas enormes, verdíssimas, ocupam uma considerável porção de terreno encharcadiço - o Rio - situada a meio da fajã, na parte inclinada, regadas pelas águas esparramadas de uma nascente que brota a meio da encosta. Em tempos, iam morrer a pitorescos moinhos de água, hoje parcialmente destruídos.
Mas fôramos pelas colchas. Feitas em pura lã, "lã da terra", de um colorido intenso, laboriosamente confeccionadas em toscos teares de madeira, utilizando técnicas ancestrais. Haveria que visitar as três tecedeiras da fajã, ou ali se arranjaria ciumeira desgraçada. Entornar-se-ia todo aquele sossego, aquela paz de retiro. Cumprimos.
Dona Rosa passou já os 85 anos, que não lhe roubaram a beleza do rosto. Com impecável lucidez, conta que terá sido das primeiras, se não a primeira, a fazer as colchas da Fajã dos Vimes. Estabeleceu-se "há mais de 60 anos, era ainda solteira". Mas começou a tecer com 15. "Com isto", e desvenda, orgulhosa, a sua primeira peça, uma riquíssima colcha religiosamente guardada e a que o tempo parece ter concedido ainda mais encanto. E vai exibindo colchas e toalhas e tapetes e saias de padrões berrantes ou discretos, de ractângulos e quadrados, cornucópias ou flores. "Fiz muitos desenhos, cheguei a ter sete pupilas e três teares a trabalhar". Teares que ela própria alargou, para poder executar obras de maior dimensão.
Lamenta-se é que a saúde que lhe falta a obrigue agora à inactividade. Mas também se queixa da fuga dos da sua fajã. "Até a escola, onde a minha filha é professora, vai fechar: já nem crianças há".
A prosperar está Dona Alzira Nunes. Tem três teares, trabalhados por três adultos mais uma miúda, e, garante, "a procura tem aumentado". Tudo o que faz é venda garantida e quase que não resta tempo para cumprir encomendas. Ideia que, de resto, a última das tecedeiras, Dona Maria Alexandrina, avaliza. "Haja quem teça, que quem compre há sempre", diz. Tece há pouco tempo e, numa sucessão pouco natural, continua a obra da sua filha, Jacinta, essa considerada como artista e por isso a trabalhar e a expor em Ponta Delgada, São Miguel.
Embora existam desenhos com mais de cem anos, que continuam a ser requisitados, cada tecedeira executa, as mais das vezes, as suas próprias criações. Maria Alexandrina folheia alguns dos seus feitios: "rosas e quadrados", "toda branca", "cinzento e branco", "novo", "da Calheta"... E também ela alterou os seus teares, "inventando" o pente alargado, para trabalhos de 2,5 por 3 metros.
Optimismo mora ali. A arte não vai morrer. Alexandrina tem três pessoas nos seus teares, mas "há-de vir mais gente para aprender, que a carreira já cá chega". Pelo que lhe toca, dá o exemplo: "Tenho uma amarração a estas coisas, que não as deixo". Como à fajã - que nem o facto de ter luz eléctrica (por gerador comunitário e de graça) somente duas a três horas por dia, e mais alguma por noite, a desconsola. "Olhe, já estive na América, mas ainda não vi sítio melhor que este".
(Os Açores vão candidatar as fajãs de São Jorge a Reserva da Biosfera da UNESCO. Fazem bem e já vão tarde. Tive a sorte de palmilhar as fajãs há coisa de vinte anos, e contei o que vi e senti na revista Tempo Livre (n.º 30, Junho de 1993). Estou a repetir o texto então publicado. Amanhã há mais.)
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