segunda-feira, 29 de maio de 2017

Uma cimeira inútil e de sucesso garantido

Foto Hernâni Von Doellinger

Em 1986, a Pousada de Santa Marinha, na Costa, em Guimarães, recebeu a terceira edição de uma coisa chamada Cimeira Luso-Espanhola. Aníbal Cavaco Silva era o primeiro-ministro de Portugal, Felipe González era o presidente do Governo espanhol e eu era jornalista de O Primeiro de Janeiro. Estivemos lá os três, evidentemente.
Tarde e a más horas, o meu jornal lembrou-se de me mandar para o local do crime. Tarde e a más horas quero dizer, no caso em apreço, já depois de a coisa ter começado. E eu fui todo contente, de braço de fora na Catrel com letras, pendurado no Adélio Santos, que era o homem do volante, das fotografias e de outras habilidades e excessos. Eu tinha muita vaidade na minha profissão.
Consegui credenciar-me, com alguns empenhos e uma sorte do caraças, numa esquina do Toural, que, tenho ideia, era posto de turismo mas tratava do assunto. Cheguei lá acima engatilhadíssimo para colocar umas certas e determinadas questões tanto ao Silva como ao González, que os havia de foder, porém mandaram-me para uma sacristia que era a "sala de imprensa" ibérica. Ficámos lá todos de quarentena a contar anedotas uns aos outros, anedotas de espanhóis e portugueses, "Vale, vale...", diziam eles, "Já me tinhas dito...", dizíamos nós. Os jornalistas somos uns gajos com piada. Somos piadéticos sem fronteiras.
A cimeira eram dois dias. Escrevi um primeiro texto, de lançamento da coisa, na véspera da coisa, ainda na redacção, e assinei, com grande lata, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". Creio que na altura era "enviado-especial" que se usava, com hífen, o que dada uma maior cagança à função. Não fui corrigido por quem devia ter tarimba e mais juízo do que eu - portanto estava certo. É preciso que se note: era a minha primeira saída para o "estrangeiro" e, como estão recordados, eu tinha muita vaidade na profissão. Vai daí, fiz as malas e parti da portuense Rua de Santa Catarina rumo ao fim do mundo, onde cheguei passado um bocado.
Naqueles bons velhos tempos, os jornais pagavam extramente as pernoitas aos seus jornalistas e eu fui dormir a Fafe (eu sou de Fafe). Eu estava para fora, era enviado-especial, estão a perceber? O Adélio é que que não concordava comigo, e veio dormir a casa, que lhe dava mais jeito.
Da cimeira, enquanto lá estive, só soube os recados que os chegamissos do Cavaco nos traziam de vez em quando, que a coisa estava atrasada e que "Eles" estavam a discutir isto e aquilo, tudo a correr muito bem para o nosso lado, Portugal 5-Espanha 3. (Não me custa admitir que os llegamessos do González contavam aos jornalistas espanhóis o mesmo resultado mas ao contrário, e acho justo.) A "Eles" só os vi na conferência de imprensa final. E na verdade nem os vi, estava muita gente à minha frente, mesmo sendo "Eles" maiúsculos. E também não os ouvi, mas isso a camaradagem resolveu, dando-me as notas. E eu voltei a assinar, com grande gabarito e por mais três ou quatro vezes, "Hernâni Von Doellinger - enviado-especial a Guimarães". E voltou a sair assim no jornal.
Resumindo e concluindo: como combinado, a Cimeira Luso-Espanhola de Guimarães de 1986 foi um sucesso e a cobertura do enviado-especial de O Primeiro de Janeiro também. O Adélio Santos morreu há cinco anos, parece impossível, e, caro amigo, realmente já se comia qualquer coisinha...

P.S.: Vila Real celebra hoje e amanhã a vigésima nona edição das cimeiras ibéricas. As cimeiras ibéricas são uma espécie de romaria a que só comparecem os membros da comissão de festas. E os jornalistas. E os membros da comissão de festas só comparecem para comer e para beber. E os jornalistas também, por maioria de razão. Costa e Rajoy e respectivos chegamissos e llegamessos, assim respectivamente chamados consoante o respectivo lado do rio, vão almoçar e jantar, fazer umas merendinhas também talvez, dormir uma soneca ou cumprir a siesta, e no fim eles e os jornalistas contam-nos o que nós já sabíamos: falou-se de Ronaldo, um bocadinho ainda de Luís Figo, Mourinho obviamente, Real Madrid e Benfica, Saramago, Salvador Sobral e Paula Rego, e de la geringóncia, por supuesto. Nas cimeiras luso-espanholas nunca se passa nada, mas são sempre um sucesso. Era a continha, se faz favor...

2 comentários:

  1. Foi exactamente assim Hernâni, eu também lá fui! Estava na altura no vespertino "A CAPITAL", levei o meu Renault5 e o falecido Alfredo Mourão mais a sua pasta debaixo do braço. Viemos pernoitar a casa e voltamos no dia a seguir. Os que lá dormiram tinham tanto para nos contar... rsrsrsrs
    Abraço

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    1. Dormir, neste caso, é uma força de expressão...
      Grande abraço, Amigo Gaspar.

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