terça-feira, 11 de março de 2014

O Astro (ou quando me mandaram atrás dele)

Sou fã de Marcelo Rebelo de Sousa, já disse. Gosto daquele ar cartomante com que o Professor nos revela tudo o que nós já sabíamos. Gosto daquele sorrisinho matreiro, marca já-te-fodi. Gosto da forma como o Professor vai à televisão vender pedaços de nada como se fossem o mundo inteiro. O truque está no poder de concentração e nos embrulhos. Marcelo usa papel de embrulho do melhor: papel de lustro, manobrista e recadeiro. E os fregueses adoram. Marcelo sabe mais que o Papa. Sabe mais que a Irmã Lúcia. Sabe o passado e o futuro. Marcelo é o nosso presente.
A omnisciência sempre me seduziu. Desde miúdo, quando, ainda em Fafe, ia a casa do Bertinho Dantas (o sobrinho) jogar O Sabichão. Depois, ao longo da vida, tive a sorte de encontrar sábios a sério em velhos lavradores, em professores, em camaradas de profissão, em três ou quatro amigos, gente que muito respeito e continuo a admirar. Hoje, porém, no negócio dos que tudo sabem, só me contento com Deus. Deus no Céu e Marcelo Rebelo de Sousa na Terra.

Era uma vez 2005, ano de eleições em Portugal. Luís Filipe Menezes chefiava a lista do PSD por Braga e foi em pré-campanha a Celorico de Basto. O cabeça de cartaz do jantar-comício era Marcelo Rebelo de Sousa. O meu jornal mandou-me atrás dele.
Dos discursos, lembro-me apenas que Menezes "lançou" a candidatura de Marcelo à Presidência da República (as voltas que a vida dá!), oferecendo-lhe um quadro já não sei com que motivos. No final das intervenções, Marcelo andou de mesa em mesa, como noivo em dia de casamento, distribuindo bacalhauzada àquela gente toda a quem fazia questão de fazer de conta que conhecia.
Eu aproveitei a confusão para dizer ao que ia:
- Sr. Professor, eu sou o...
- Eu sei - cortou simpaticamente Marcelo, estendendo-me a mão e um sorriso de orelha a orelha.
- ... o Hernâni Doellinger, do...
- Sei muito bem quem é - insistiu Marcelo, retirando a mão e reduzindo o sorriso.
- ... jornal 24horas - consegui informar, enfim.
- Exactamente, eu sei, sei muito bem, Hernâni, 24horas, eu sabia - concluiu Marcelo, metendo o resto de sorriso no bolso das calças e pedindo licença para continuar com os cumprimentos, que ainda havia muitas mesas para bacalhauzar no salão de cima e que falávamos no fim.
Claro que não falámos. Marcelo Rebelo de Sousa foi-se embora como quem não quer a coisa, sem me dar uma segunda oportunidade e se calhar até fez bem. Também não interessa. O importante é isto: o Professor não me conhecia de lado nenhum, nunca me tinha visto mais gordo nem mais magro, mas apareci-lhe à frente e ele soube logo quem eu era. Não é extraordinário? Agora que penso nisso, devia ter-lhe pedido que me lesse a sina. E os números do Euromilhões.

Ainda hoje guardo religiosamente a mão com que cumprimentei Marcelo Rebelo de Sousa naquele encontro histórico de Celorico de Basto. Os nossos contactos seguintes resumiram-se ao telefone. Ligava eu, por dever de ofício. O Professor atendeu-me quase sempre. E foi sempre amável e útil.

(Texto escrito e publicado no dia 28 de Agosto de 2012, com o título "O Astro". O jornal 24horas nasceu em 1998 e morreu oficialmente em 2010, um ano depois de os seus alegados responsáveis terem liquidado a sangue frio a Redacção do Porto. Podem limpar as mãos à parede. Mas tinha piada o pasquim, que até chegou a ser bem feito, e é a bíblia do jornalismo que hoje se faz em Portugal.)

5 comentários:

  1. Mas então??!!... os números de euromilhões não é com o clã Catroga?

    j.

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    1. Sim, com o Catroga é garantido, sai todos os meses. O que é, convenhamos, uma maçada. Com o Professor há a emoção do palpite: ou é o 3 ou o 33 e se não for nem o 3 nem o 33 então é de certeza o 333. No fundo, o Professor acerta porque cobre todas as possibilidades. O Catroga não: aposta singelo, mas, lá está, os chineses gostam dele...

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  2. Para além de atender o telefone quase sempre, o prof. tinha uma coisa ainda mais engraçada: ligava de volta quando lhe deixávamos uma mensagem. Mesmo que soubesse que não era para coisa boa, como acontecia muitas vezes. E lá dizia ele: "Ora diga lá então em que alhada é que eu me meti!".
    Grande abraço,
    P.

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  3. Isto, sim, é um arquivo histórico e estórico! Brilhante exposição!
    Abraço
    cm

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