Foi assim. Diz-me o meu barbeiro, sem mais nem menos, "Aquilo agora no Porto de Leixões os cruzeiros são uns atrás dos outros". Parece coisa de nada, não é?, apenas deixada no ar, mas ó palavras que me disseste! Leixões e cruzeiros. Senha e contra-senha. Ao ataque!, pensei eu mais com a língua do que com a cabeça, esquecendo-me de que queria estar calado. Esqueci-me também da bóia e afoguei-me no relambório. Que "Pois de facto são mais que as mães, só no ano passado foram oitenta e cinco" e que "Eu é que os vejo passar, estou lá em cima a tomar conta" e que "Até os fotografo" e que "Até já conheço alguns ao longe, só pela pinta, como por exemplo o Albatroz, o Aurora, o Boudica, o Crystal Symphony, o Queen Victoria, o Marina, o Celebrity Constellation, o Costa Pacifica, o Azura que é irmão gémeo do Ventura, rasam-me aqui a porta de casa, e que "O Porto de Leixões é um sucesso, um incansável batedor de recordes que despeja milhares de turistas nas cidades de Matosinhos e Porto e milhões de toneladas de mercadorias para o país inteiro, e dei-lhe mais números, e comparei-lhe períodos homólogos, e disse mesmo "períodos homólogos", que nunca na minha vida tinha dito mas tinha esperança de algum dia dizer, e meti-lhe percentagens entre parênteses, e disse "entre parênteses", e desenhei-lhe gráficos com setas a apontarem para cima, e desabafei que "Um dia destes um filho da puta qualquer, sentado numa secretária em Lisboa, vai escangalhar isto tudo". E foi assim que eu falei. Mas em ponto grande. E disse escangalhar apenas com cinco letras e começando a palavra por fê.
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível", "A sério?", "A sério?". Falámos por mais de quarenta anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe: já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda, o meu farol. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei aflito até casa.
Porque na minha rua passa o mar.
(Mas ainda ouvi. À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso, com a intrañable Lucero Tena castanholando.)
O meu barbeiro, que aqui atrasado não acreditou em mim quando eu lhe disse que não era mudo, estava o barbeiro mais feliz do mundo. Pasmado, de pente e tesoura suspensos no ar, como bailarina sevilhana pronta a tocar castanholas. O paleio ia de vento em popa. O meu barbeiro servia à pinta. Os barbeiros são óptimos a servir à pinta. Que "Sim" e que "Sim" e que "Sim" e que "Sim", "Sim senhor", "Não me diga", "Parece impossível", "A sério?", "A sério?". Falámos por mais de quarenta anos de silêncio. Mas conversa sobre barcos leva longe: já íamos nos fados, vejam bem. Olhei para trás e não vi terra, a minha varanda, o meu farol. Tive medo e parei ali. Levantei a mão direita numa saudação índia atabalhoada, fiz "Ugh!", paguei e nadei aflito até casa.
Porque na minha rua passa o mar.
(Mas ainda ouvi. À roda da cadeira do meu barbeiro começavam a sair os primeiros acordes de La Boda de Luis Alonso, com a intrañable Lucero Tena castanholando.)
P.S. - Hoje é Dia do Marinheiro. Este apontamento foi escrito e publicado aqui originalmente no tempo em que eu ainda ia ao barbeiro.
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