domingo, 15 de dezembro de 2024

Dom Almirante I

Foto Tarrenego!

As visitas da Veneranda Figura ao Portugal corno manso eram, não raro, momentos de alto fervor nacionalista e profunda reflexão cultural. Sua Excelência o Senhor Presidente da República - ou O Padeiro, na versão abreviada, ou o Cabeça-de-Abóbora, na simpatia do país rural - tinha o condão da palavra certa. Humanista dos sete costados, enciclopedista dado a calendário, geografia e contas de somar, Américo Tomás abria a boca para espirrar e saíam-lhe pérolas, orações de sapiência. Num país de troca-tintas e fala-barato de nascimento, o rigor e o donaire na afirmação são a superlativa herança que o marido de Dona Gertrudes fez o obséquio de nos deixar.
Por exemplos:
1. "Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei."
2. "É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque, estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude."
3. "Comemora-se hoje em todo o país uma promulgação do despacho número cem, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados."
4. "Neste almoço ouvi vários discursos, que o governador civil intitulou de simples brindes. Peço desculpa, mas foram autênticos discursos."
5. "Eu prolongo no tempo esse anseio de Vossa Excelência e permito-me dizer que o meu anseio é maior ainda. Ele consiste em que, mesmo para além da morte, nós possamos viver eternamente na terra portuguesa, porque se nós, para além da morte vivermos sempre sobre a terra portuguesa, isso significa que Portugal será eterno, como eterno é o sono da morte."
6. "Hoje tivemos um dia sumamente positivo: de manhã assistimos à santa missa e de tarde inaugurámos o monumento ao bombeiro."
7. "Pedi desculpa ao Senhor Engenheiro Machado Vaz por fazer essa rectificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Senhor Engenheiro Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Senhor Engenheiro Machado Vaz."
8. "A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance."
9. "O Senhor Professor Oliveira Salazar, ao longo de mais de trinta anos, é uma vida inteiramente sacrificada em proveito do País, e, desconhecendo completamente todos os prazeres da vida, é um homem excepcional que não aparece, infelizmente, ao menos, uma vez em cada século, mas aparece raramente ao longo de todos os séculos."
10. "Esta é a primeira vez que estou cá desde a última vez que cá estive."

Convivi pessoalmente e a uma distância razoável com Américo de Deus Rodrigues Tomás. Uma vez, numa pressinha. Quando a Veneranda Figura foi a Fafe, montado num esplêndido Rolls-Royce descapotável negro como era a vida dos portugueses regra geral e guardado por uma matilha de impressionantes motos brancas da GNR. Era um reizinho. Foi inaugurar por atacado a "nova" Câmara Municipal, o Tribunal, que tinha sido cadeia, e a escola do Santo Velho - estaríamos, se não me engano, nos finais da década de mil novecentos e sessenta. E decerto O Mais Alto Magistrado da Nação por lá deixou algumas das suas proverbiais patacoadas, mas não tenho a certeza: eu teria talvez 11 anos, porém já não lhe botava sentido. Preferia fazer pouco dele, O Padeiro, e a moçarada à minha volta, agitando impostas bandeirinhas nacionais presas por arames e muitos "Viva o Senhor Presidente da República!", e eu escangalhava-se a rir com aquela palhaçada toda, conferindo definitivamente ao acto o significado (ou a in-dignidade) que realmente lhe assistia. A severa Dorzinhas, empregada e dona da escola, ainda tentou repreender-me, mas eu já não lhe dizia respeito, estava a ir para padre, era de outro campeonato.
Embora sem selfies nem banhos no Tejo, Tomás era o circo e mais nada. O Presidente da República nunca encontrou palavras de jeito para falar ao Portugal dos pequeninos, que ele porventura acharia que fosse apenas um sítio em Coimbra, quem vai para Fátima. O Almirante não as sabia, as palavras certas, e ninguém lhas ensinou ou escreveu. Staff e entourage são modernices, estrangeirismos ainda por cima, e a Revista da Armada foi criada em 1971.
 
P.S. - Publicado originalmente, quase assim, no dia 29 de Julho de 2013, sob o título "A visita da Veneranda Figura". O mal do Tarrenego! é o mal de Portugal: repete-se muito.

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