segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Ensinadores de letras e de vidas

Esbraguilhado, de acordo com a definição dicionária, é o tipo que "tem a braguilha desabotoada". As braguilhas há que anos não são de botões, mas não posso negar que umas quantas vezes já saí de casa com a ferramenta a arejar, esquecido completamente de puxar o fecho-éclair para cima, por pressa ou por idade - ainda não cheguei a uma conclusão. No entanto foram acasos, excepções, eu morra aqui se não é verdade. Nesse sentido, portanto, não me vejo como um genuíno esbraguilhado.
Porém. Esbraguilhado também quer dizer o tipo que anda "com fralda da camisa saída". E aqui sou eu, todo e completo: esbraguilhado de corpo inteiro, que não meto as fraldas para dentro há mais de quase cinquenta anos, nem nos dias raros, cerimoniosos ou lutuosos de uso de casaco. Jamais.

Bela palavra, esbraguilhado. Nunca lhe tinha posto a vista em cima, até ontem e por acaso, apesar de a língua portuguesa ser uma paixão e o meu ofício. O amor e o respeito pela nossa língua foram-me ensinados primeiro pela minha mãe - analfabeta por culpa da vida, e sábia graças à vida. A minha mãe corrigia-me a leitura, emendava-me as palavras, eu de cabeça enfiada nos livrinhos fascistas da Primária, na mesa da nossa sala que era também o quarto dos meus pais logo à entrada da casinha do Santo Velho, e a minha mãe a ensinar-me Português. Ela não sabia ler nem escrever, e eu achava aquilo extraordinário. Ainda hoje acho aquilo extraordinário.
Depois tive a sorte do professor Correia (Toninho da Cafelândia, se não me engano), que me levou da segunda à quarta classe na Escola Conde Ferreira, tive os extraordinários mestres do seminário, o professor Alberto Alves, que me ensinava livros na Biblioteca Gulbenkian de Fafe, o velho professor Horácio, meu chefe e amigo na revisão do Janeiro. Todos me ensinaram a pedir licença e a tratar com carinho a língua portuguesa. Puxaram pelo melhor de mim, sem estragarem o que a minha mãe tinha feito. Aprendi.

Aprendi, por exemplo, a ter dúvidas quando escrevo. Quem não tem dúvidas tende a escrever asneiras. E eu não sei escrever sem o dicionário, o livro, ao lado; não sei escrever sem a enciclopédia, os livros, ao lado. Molho o dedo, gesto antigo, vou lá ver se é com ésse ou com zê, se a palavra que escolhi quer dizer exactamente aquilo que eu quero dizer - e ainda assim asneio.
Foi num destes exercícios que descobri ontem a palavra esbraguilhado e gostei dela. E, à falta de melhor assunto, veio-me a memória. Ou então sou só eu a dar uso às palavras, que é para o que o Tarrenego! me serve.

P.S. - Publicado originalmente no dia 22 de Maio de 2014, então sob o título "Sou esbraguilhado e não sabia". Hoje, 5 de Outubro, é também Dia do Professor. Muito obrigado! 

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