Chegava a altura
dos pontos e eu baixava à enfermaria. Academicamente falando, os pontos
eram aquilo a que hoje, suponho, ainda se chama testes, e a enfermaria
já então era o que é - enfermaria. Atenção: eu dava parte de doente não
porque fosse mau aluno mas porque era muito bom preguiçoso. Para além
dos percevejos e do tradicional concurso de punhetas logo pela
manhãzinha e a meio da tarde, o melhor que a enfermaria tinha era a
sineta a tocar para os outros, a comida "de dieta" e o enfermeiro
propriamente dito que na verdade era barbeiro. O Sr. Pimenta, se bem me
lembro. O Sr. Pimenta era enfermeiro porque tinha a bata branca de
barbeiro, trazia os termómetros, via as febres (que eram forjadas na
fricção com os cobertores - chamava-se àquilo "manipular a febre"),
passava raspanetes e dava-nos uns comprimidos de faz de conta que, se
não me engano, eram sobras do Laboratório Militar. Os comprimidos
serviam para tudo e não faziam nada. O Sr. Pimenta dava também muito mal
injecções. E eu contava anedotas.
Figura mítica, consagrada instituição da velha Tamanca e autoridade local, o Sr. Pimenta era uma homem
gordo, de andar pesado e lento, periclitante. A cada passo parecia-me
que ia cair redondo para um dos lados, consoante a perna curta que
avançava. O Sr. Pimenta tinha idade para ser meu avô, achava eu, e uma barbearia
montada como se fosse a sério, mesmo em frente à capela e ao lado da
sala de aulas que era também a loja onde os padres nos vendiam os
"objectos", mas cortava tão mal o cabelo como os tosquiadores fardados
que mo raparam sem dó nem piedade, uns anos depois, quando dei entrada
nos Comandos. O Sr. Pimenta era barbeiro porque tinha a bata branca de
enfermeiro.
Quer-se dizer: o Sr. Pimenta era a bata.
E poderia ter sido, quem sabe, o Homem-Bata, se, derivado aos seus
múltiplos poderes e polivalentes predicados, a Marvel lhe tivesse
deitado a mão em devido tempo. Infelizmente a Marvel não recruta em
Portugal, e é o que perde.
Apesar de ter tudo para ser um super-herói, o Sr.
Pimenta era só Sr. Pimenta para mim, porque a minha mãe tinha-me
ensinado a tratar os senhores por senhores. Para o resto da rapaziada, meninos bem ou matarruanos, o
Sr. Pimenta era o Pimenta, ordens de cima, nada de confianças.
Paradoxalmente. E os outros funcionários ou acoitados, os que nos
serviam no refeitório, certamente lerdos mas filhos de Deus como a
gente, eram "criados". Criados. Ordens de cima. Já nem falo de educação -
a caridade cristã tem definitivamente muito que se lhe diga.
Portanto,
chegava a altura dos pontos e eu baixava à enfermaria. Um ano, o padre
Vilar, o bom padre Vilar, não quis que eu ficasse sem nota a Religião e
Moral. Visitou-me, fez-me duas ou três perguntas que valeriam o ponto,
perguntas do mais elementar possível, só para que eu fizesse boa figura.
Perguntou-me:
- Quem é Deus para ti?
- Deus é o meu pai - respondi.
- Todos somos filhos de Deus - atalhou o padre.
- Mas eu sou mais, porque sou órfão - defendi-me, com uma não ensaiada
porém oportuna lágrima no canto do olho que me valeu para aí um dezoito.
Isto é: sou malabarista desde pequenino.
Na enfermaria havia sempre um bufo que ia contar ao impiedoso padre Coutinho as
minhas anedotas, mas omitia a parte das punhetas, que era regra geral e ideia
não sei de quem, minha é que não. E eu também não sabia a malícia das anedotas que
contava. Fiquei a saber quando fui chamado à pedra por uma orelha - e assim me roubaram
a inocência. O padre Coutinho gostava muito de música clássica e eu
tenho a certeza absoluta de que a música clássica não gostava nada dele.
P.S. - Publicado originalmente no dia 20 de Outubro de 2014. Hoje, quarto domingo da Páscoa, é Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
sábado, 24 de abril de 2021
O Homem-Bata
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