O senhor Merito, que também era mestre-de-cerimónias do es-tra-or-di-ná-ri-ooo... ex-pe-ctá-cu-looo!!!..., padecia de uns óculos com lentes verdes de fundo de garrafa Carvalhelhos versão 1960, que, aos meus olhos infantis e crentes, justificavam à partida os poderes adivinhatórios de que ele estava evidentemente investido.
Coisas de outro mundo. No circo aprendi palavras sen-sa-ci-o-nais, que gostava de ouvir e de dizer e não sabia o que significavam: funambulista, malabarista, contorcionista, equilibrista, acrobata voador, faquir, trapezista, pirofagista, globista, faquista, mais engolidor de espadas, palhaço e ilusionista - estas três eu ia lá -, e que hoje percebo que todas são afinal meros adereços ou adjectivos para outra palavra do léxico circense que é a palavra... político.
Agora? Agora andam por aí circos com nomes paisanos, insossos, e a magia foi um ar que se lhe deu. Nomes de linha média em quatro-quatro-dois losango: Rúben, Cláudio, Leandro e Walter Dias. Nomes do dia-a-dia, corriqueiros, sem pés nem cabeça, como se fossem nomes de talhos ou retrosarias. Como se fossem: o Circo Almeida, o Circo Brochado, o Circo Ferreira, o Circo Gomes, o Circo Lopes, o Circo Magalhães, o Circo Santos. O Circo Celso. Sem o glamour de um Tony, sem o garbo de um Fredy, sem as lantejoulas de uma Nandy nem as meias de rede de uma Mirita no seu rola-rola, ainda que rotas, porque no circo é importante trabalhar com rede, posto que sem fio, portanto Wi-Fi.
E ainda haverá palhaços excêntricos musicais? E a profissão está devidamente reconhecida e enquadrada? Tem ordem? Carteira profissional?
Era um deslumbramento vivermos - digo bem, vivermos - de coração aos saltos e mãos a tapar os olhos, o perigosíssimo trabalho daqueles artistas cheios de is gregos e cabelo empastado, artistas in-tarrr-na-ci-o-nais de Ermesinde e Freamunde - Cuidado, Dany, cuidado! Res-pei-tá-vel público, silêncio, o mais completo silêncio, por favor, peço o silêncio dos senhores ex-pe-cta-do-reeesss... Vamos, Dany, cuidado, upa, ealé, bravo, bravo, Dany, bravo!...
O sítio do circo em Fafe era na Feira Velha. A Câmara, quando se tornou mercearia para não ficar atrás das outras câmaras, meteu lá carros à hora e é pena.
Por outro lado: O circo somos nós - camelos, ursos, jacarés em camisolas, asnos e leões mansos. Homens-bala de pólvora seca, malabaristas, contorcionistas, ilusionistas, equilibristas, palhaços - somos nós, porque nos mandam e porque somos o único circo a que temos direito. Vivemos na corda bamba e sem rede. Tiraram-nos a rede, esticam-nos a corda, caímos que nem tordos sem capacete.
P.S. - Texto publicado originalmente no dia 17 de Novembro de 2017. Não sei como estão agora os circos com isto da pandemia. Se calhar já não há circos. Por estes dias tristes e desesperançados, socráticos, os circos serão talvez um luxo e uma redundância. Um anacronismo. A magia e o sonho são delito. A felicidade parece proibida por decreto. A gargalhada, se for popular, é considerada um desperdício. Carlos Drummond de Andrade dizia: "Vou ao circo para me sentir em casa com o mundo". E Ferreira Gullar, no poema "Improviso para a moça do circo", do livro "Na Vertigem do Dia", lembrava a infância e contava: "é pouca a vida que a cidade oferece, até que aparece o circo". Quanto à repetição: hoje, terceiro sábado de Abril, é Dia Mundial do Circo.
Sem comentários:
Enviar um comentário