sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Ia falecendo derivado a um equívoco

Vamos supor que era a Grand Central Terminal de Nova Iorque e estávamos no quentinho do cinema. Mas supomos mal: estávamos na verdade em Vila do Conde à chuva e era um tanque público no quarteirão da Santa Casa da Misericórdia. Eu passando. Um carrinho de bebé sem condutor sai lentamente do lavadouro, primeiro em câmara lenta como nos filmes e depois, rapidamente embalado pela força da realidade, adeus passeio, vou para a estrada da morte que se faz tarde. Ia. Naquele momento exacto sinto o primeiro e único impulso de heroísmo de toda a minha vida, voo para o carrinho a pensar na CMTV, na TVI, no YouTube, na medalha do 10 de Junho (pensa-se em muita merda numa fracção de segundos), rezo a Nosso Senhor, peço a mão a Nossa Senhora, falta-me o ar de repente, é o coração que me entope cobardemente a garganta, as pernas tremem-me como varas verdes mas desta vez não falham, voo para o carrinho e agarro-o já no milagroso resvés com um Toyota Yaris que passa nas horas e me enche de nomes, mas isso é o menos. Graças a Deus, muito obrigado Senhora. Respiro enfim. A mãe grita, de mãos espetadas na cabeça desgrenhada - Ai o carrinho, e o pai berra - Olha o carrinho, e dá mais uma puxa no paivante.
- O carrinho?, interpelo eu e repito, mais fodido do que outra coisa, - O carrinho? E a criança, caralho?, A criança?, as palavras saem-me aos soluços e eu preciso de uma cadeira para morrer ali sentado. - Mas qual criança?, dizem-me os dois, pai e mãe, com caras combinadas de quem me manda à merda com a senha número um e portanto sem direito a cadeira, - Qual criança?, e riem-se afinadíssimos da minha agonia. Tinham praticamente razão: olhei para o carrinho que ainda mantinha nas mãos cerradas e aflitas, o bebé eram quatro passadeiras lavadas, enroladas e ainda pingantes - as quatro filhas da puta derivado às quais eu só não faleci prematuramente porque sou um gajo cheio de sorte.  


P.S. - Publicado originalmente no dia 16 de Janeiro de 2014. A famosa cena do carrinho de bebé descendo a escadaria, com a criança dentro, no meio do tiroteio, em "Os Intocáveis", de 1987, já tinha sido vista em "O Couraçado Potemkine", de 1925. A minha cena de praticamente morte em Vila do Conde é baseada em factos reais.

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