Estudante sou. Nada mais. Mau sabedor, fraco jurista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado. Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que tenho logrado saber, o melhor devo às manhãs e madrugadas. Muitas lendas se têm inventado por aí sobre excessos da minha vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intelectuais, larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados na água fria. Contos de imaginadores. Refratário sou ao café. Nunca recorri a ele como a estimulante cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei num pedilúvio o espantalho do sono.
Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu trabalho, a relativa exabundância de sua fertilidade, a parte produtiva e durável da sua safra, é às minhas madrugadas. Menino ainda, assim que entrei ao colégio, alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume, e daí avante o observei, sem cessar, toda a vida. Eduquei nele o meu cérebro, a ponto de espertar exatamente à hora que comigo mesmo assentava ao dormir. Sucedia muito amiúde encetar eu a minha solitária banca de estudo à uma ou às duas da antemanhã. Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito; e eu fazia apenas que lhe obedecia, tornando logo após àquelas amadas lucubrações, as de que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável.
Tenho ainda hoje convicção de que nessa observância persistente está o segredo feliz não só das minhas primeiras vitórias no trabalho, mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus concorrentes, em todo o andar dos anos, até à velhice. Muito há que já não subtraio tanto às horas da cama para acrescentar às do estudo. Mas o sistema ainda perdura, bem que largamente cerceado nas antigas imoderações. Até agora nunca o sol deu comigo deitado, e ainda hoje um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador, madrugador impenitente.
"Oração aos Moços", Rui Barbosa
(Rui Barbosa nasceu no dia 5 de Novembro de 1849. Morreu em 1923.)
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