Fala do homem nascido
Venho da terra assombrada,
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.
Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença, com licença,
que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo,
não tenho tempo a perder.
Minha barca aparelhada
solta rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.
Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.
Quero eu e a natureza,
que a natureza sou eu,
e as forças da natureza
nunca ninguém as venceu.
Com licença, com licença,
que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença,
mesmo morto hei-de passar.
Com licença, com licença,
com rumo à estrela polar.
"Teatro do Mundo", António Gedeão
(António Gedeão nasceu no dia 24 de Novembro de 1906. Morreu em 1997.)
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