Já assumi a solidão dos outros
já provei do enigma insolúvel
já calcei as botas do morto
já tive segredo e foi de água abaixo.
Já fugi ao encontro marcado
já fui banido, já disse adeus
já fui soldado, já fui rapsodo
já tive inocência e foi de água abaixo.
Já fui esperto, já fui afoito
já puxei faca, já toquei pífaro
já fui vaiado depois da briga
já tive saudade e foi de água abaixo.
Já fui árcade, já fui arcaico
já fui pateta, já fui patético
já perdi no jogo e na vida
já tive amor e foi de água abaixo.
Já tive pressa, já sentei praça
já tive ouro, já tive prata
já tive lenda, já tive fazenda
já tive paz e foi de água abaixo.
Já tive herdade, já fui deserdado
já tive episódio, já tive epitáfio
já levei o andor de Nosso Senhor
já tive esperança e foi de água abaixo.
Já tive mando, já corri mundo
já fui a Roma e não quis ver o Papa
já fui pra cama com Ana Bolena
já tive infância e foi de água abaixo.
Já fui Arlequim, já fui Pierrot
já tive herança, já tive prosápia
já tive estrela, já fui primogénito
já tive cabelo e foi de água abaixo.
Já fui feliz, já tive almofariz
já fui a Belém, já comi vatapá
já andei a cavalo no arco-íris
já tive paisagem e foi de água abaixo.
Já pesquei hipocampo de anzol
já fui de trem ver o quebrar da barra
já tive odalisca, já tive andaluza
já tive memória e foi de água abaixo.
(Francisco Carvalho nasceu no dia 11 de Junho de 1927. Morreu em 2013.)
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